Eu nasci em Presidente Bernardes. Meu pai era lavrador e trabalhou durante alguns anos nas plantações de algodão, de café e no cultivo de hortelã na região. Muitas vezes, por não ter condições financeiras, aceitava trabalhar em sistema de meação com um grande fazendeiro de lá. Era uma época difícil, pós-guerra e a lavoura mal permitia o sustento da família. Japonês rigoroso que fazia da honra e da honestidade valores máximos da vida, meu pai teve que deixar Presidente Bernardes entristecido porque não conseguiu saldar uma conta que tinha em um armazém, daqueles que vendiam “fiado”, anotando as compras em uma caderneta. Até alguns anos antes de sua morte falava da conta que continuava em aberto. Fui certo ano, muito antes de ser secretário, com Rosa, minha irmã, ao local onde ficava o tal armazém, na expectativa de encontrar alguém para saldar a dívida. Não tivemos êxito. O armazém fora fechado e seus proprietários mudaram-se, foi a informação que conseguimos.
Pois bem. No dia da inauguração do CRP, de cima do palanque, perante dezenas de pessoas, inúmeros repórteres, não consegui me conter e acabei contando a história da dívida. E solicitei que me informassem, se alguém soubesse do credor, ou de seus parentes, pois eu estava disposto a pagar a dívida. Tudo bem que com quase 50 anos de atraso… Mas, como diz o ditado popular, antes tarde do que nunca… Ninguém apareceu até hoje.
* * * *
A internação em RDD enquanto disciplinada pela resolução da secretaria, era extremamente rápida. Diante de provas ou indícios veementes de envolvimento de algum preso em atos que tivessem subvertido ou pudessem subverter a ordem nas penitenciárias de forma grave, o diretor fazia a comunicação ao coordenador e este pedia a internação ao secretário-adjunto. Tudo on-line, sem nenhuma burocracia. O secretário-adjunto examinava o pedido e o decidia imediatamente. A transferência do preso para o RDD se dava quase sempre no mesmo dia, ou no máximo no dia seguinte à formulação do pedido.
A fama do rigor no RDD começou a se espalhar pelo sistema: não havia visita íntima, nem televisão, rádio, jornais ou revistas. O banho de sol era de uma hora por dia. A saída das celas para o pátio era acompanhada por quatro agentes penitenciários, proibidos de dirigir a palavra aos presos.
O rigor do regime e a rapidez nas decisões de transferência, começaram a causar medo aos mais perigosos criminosos do sistema. Muitos agentes me contaram que viram presos famosos, daqueles que nada temiam, chorando e pedindo quase de joelhos para não serem mandados para lá. Fábio Brandão Martins, que é diretor da penitenciária de Potim, um servidor muito interessante, daqueles que vibram e choram de tanto gostar da profissão, dizia sem parar:
— “Dr. Nagashi, essa foi a melhor coisa que o senhor inventou. Antes os presos saíam das penitenciárias destruídas nas rebeliões e deixavam escrito nas paredes – ‘PCC – 1533 – destruímos mais uma – he, he, he’. Dava vontade de quebrá-los com cano de ferro. Nunca fiz isso, mas vi colegas fazendo. Agora não. Mais que cano de ferro, eles temem três letrinhas: RDD. Agora quem ri sou eu – he, he, he”, contava, com os punhos cerrados, balançando os braços, os olhos brilhando de entusiasmo.
Certamente a diminuição das rebeliões não foi decorrência só do RDD. Outros fatores contribuíram para isso. Mas que o RDD teve decisiva importância nesse resultado, não tenho nenhuma dúvida.
Mais ou menos ao mesmo tempo em que as rebeliões diminuíam, assim como as reclamações sobre maus tratos e torturas aos detentos (o Fábio tinha razão — o número de funcionários que agrediam presos caiu bastante, diria que quase acabou), começaram a surgir os primeiros artigos sobre a inconstitucionalidade do RDD. Creio que o IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais foi o primeiro a se manifestar. E o fez de forma dura, severa, ácida, em editoriais do seu boletim. Depois, vários juristas começaram a escrever sobre o assunto, a maioria contra o novo regime. O CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária também manifestou-se oficialmente entendendo que o RDD era inconstitucional, divulgando o parecer de um dos seus conselheiros (aquele que foi, depois, copiado no manifesto do PCC, e exibido pela Globo).
A maior crítica era relativa à competência para instituir um regime novo de cumprimento da pena de privação da liberdade: entendiam que o Poder Executivo, por meio de resolução de secretário de Estado, não tinha competência para a matéria. Havia necessidade de Lei Federal.
Diante dessas críticas que aumentavam cada vez mais, resolvi levar o assunto ao ministro Márcio Thomaz Bastos. Muitos Estados da Federação já estavam copiando a resolução de São Paulo, criando seus próprios RDDs, às vezes com outros nomes. Era conveniente que a matéria fosse disciplinada por Lei, alterando-se a Lei de Execução Penal. O ministro aceitou meus argumentos e colocou seus assessores em contato comigo para que fizéssemos um anteprojeto propondo as mudanças. Nesse mesmo anteprojeto se incluiria também a eliminação do exame criminológico para fins de progressão de pena e concessão do livramento condicional.
Este último tema (eliminação do exame) é outra grande polêmica. As críticas, principalmente do Ministério Público, persistem até hoje. Alguns juízes também não se cansam de descumprir a nova Lei. Tentaram até apelidar o texto de “Lei Nagashi”. Felizmente não pegou em lugar algum. Acho melhor falar disso em outro capítulo.
A verdade é que, acolhida a idéia pelo ministro Márcio, com apoio do governador Alckmin, como falei, o projeto acabou tornando-se Lei que recebeu o nº 10.792 e foi sancionada pelo Presidente Lula em 01 de dezembro de 2003 e publicada no dia seguinte.
Assim foi concebido e assim nasceu o RDD, que ainda hoje continua a gerar polêmica. Continua revoltando as facções criminosas. Não querem o regime de jeito nenhum. São capazes de seqüestrar para dizer ao País, na marra e na chantagem, que a medida é inconstitucional.
A administração penitenciária é uma atividade ingrata: não consegue agradar a ninguém. Os integrantes de facções criminosas não se conformam com o RDD. As entidades que defendem os direitos humanos também reclamam do rigor do regime. Institutos respeitáveis e juristas de escol, como Alberto Silva Franco, Sérgio Mazina, Kenarik Boujikian Felipe e outros jamais nos perdoaram pelo fato de termos criado o RDD. Eu e Pedro Egydio, que sempre fizemos parte desses grupos tidos como mais liberais na interpretação das leis penais, passamos a ser execrados pelos nossos antigos companheiros de luta. Ao mesmo tempo, os mais conservadores, os chamados “de direita”, diziam que éramos muito “moles” com os presos e queriam mais rigor.
Em suma: conseguimos desagradar a todos, sem exceção. Da direita à esquerda…
A Lei 10.792/03, contra nossa vontade, criou a necessidade de decisão judicial para internação em RDD. O que antes podia ser feito com rapidez por decisão administrativa, em um dia ou dois, depende agora de decisão do juiz da execução penal. Houve caso em que o pedido só foi decidido 7 meses após protocolado. A medida perdeu muito sua força, principalmente a preventiva. Os presos, especialmente estes que comandam facções criminosas, não são bobos. Perceberam rapidamente a mudança e recomeçaram as rebeliões.
É uma pena, como diz o “Estadão”, que o Poder Judiciário não esteja mais sintonizado com as necessidades do momento e com o que acontece no mundo. Esse tipo de regime existe em quase todos os países, até com muito maior rigor do que no nosso.
Porém, como dizem, em Estado Democrático de Direito não se discutem decisões judiciais: cumprem-se.
* * * *
Não vou escrever aqui razões jurídicas sobre a constitucionalidade do RDD. Os argumentos são vários e a finalidade dessas minhas anotações não é a de fazer considerações jurídicas sobre o tema.
Todavia, para que entendam um pouco mais no que consiste o RDD, peço licença para explicar mais um pouco.
Existem três regimes de cumprimento da pena privativa da liberdade: o fechado, o semi-aberto e o aberto. Normalmente os condenados começam a cumprir a pena em regime fechado e vão progredindo para regimes menos rigorosos, dependendo da sua conduta e do tempo de cumprimento da pena. Os doutrinadores costumam chamar esta forma de aplicação da pena de sistema progressivo (às vezes, dependendo da natureza do crime, podem começar no regime aberto ou no semi-aberto). No regime fechado comum, o preso fica recolhido em penitenciárias e tem direito de trabalhar, de assistir televisão, de receber visitas íntimas, ler jornais, ouvir rádios e ficar no pátio de sol, durante 6 a 8 horas por dia. No regime semi-aberto – também chamado de regime intermediário –, que é cumprido em colônias agrícolas ou industriais, os presos podem sair sem vigilância para trabalhos externos e devem voltar à noite para o estabelecimento penal. É nesse regime que recebem autorização para saídas temporárias cinco vezes ao ano, para visitas aos familiares, e que a imprensa insiste em chamar de indulto. No aberto, a pena é cumprida na residência do apenado, no chamado “albergue domiciliar”. Só não podem sair de sua residência à noite e nos dias em que não houver trabalho. Esse regime está completamente desmoralizado, porque não há fiscalização.
Antes do RDD, a Lei de Execução Penal só permitia o isolamento preventivo de quem cometia graves faltas disciplinares, pelo prazo de 10 dias (art. 60 da LEP), para apuração dos fatos. O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos, como sanção, não podiam exceder a 30 dias (art. 58), em hipótese alguma.
Pois bem, imagine o leitor que um preso é condenado a cumprir pena de 300 anos de reclusão, porque, digamos, matou 10 pessoas. Ele não cumprirá mais que 30 anos. É o que determina o art. 75 do nosso Código Penal. Esse preso, que não tem mais nada a temer, já que sua pena não poderá ser aumentada, resolve matar alguns dos seus companheiros, ou funcionários. Resolve promover violentas rebeliões, como aconteceu muitas vezes em São Paulo. A única consequência é nova unificação das penas, iniciando-se novo período de contagem, observando-se sempre o período máximo de 30 anos.
Explicando melhor: o preso matou 10 pessoas quando estava solto e foi condenado a cumprir pena de 300 anos de reclusão. Daí ele foi preso e um ano depois mata mais 10 dentro da penitenciária. Por essas 10 mortes recebe mais 300 anos de pena, totalizando 600 anos de reclusão. Ele só cumprirá 31 anos, porque a unificação das penas será feita com base na data dos últimos delitos, “desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido” (art. 75, § 2º do Código Penal).
O Estado, como “castigo” a esse preso só podia deixá-lo isolado pelo prazo máximo de 30 dias, antes do RDD. Essa sensação de impunidade e de falta de resposta do Estado estimulava (ou pelo menos não criava freios) várias situações absurdas de insubordinação, de formação de facções criminosas e de quadrilhas organizadas dentro dos presídios.
Com a criação do RDD, o preso que comete delito grave, capaz de subverter a ordem nas penitenciárias, passa a sujeitar-se a esse novo regime, que se diferencia do comum pelo fato de não permitir visitas íntimas, televisão nas celas, rádio, jornais, revistas e nem contato físico com seus parentes. O tempo de banho de sol, que é de 6 a 8 horas no regime fechado comum, no RDD é de 2 horas por dia (antes da Lei, pela resolução paulista, era de uma hora). Ao invés de celas coletivas, no RDD, as celas são individuais. O “bate-papo” entre eles, o planejamento de novos crimes, a extorsão contra presos mais frágeis, fica muito mais difícil, quase que inviabilizado. O tempo de isolamento, antes de 30 dias, agora pode se estender até um ano.
Basicamente são essas as diferenças entre o regime comum e o diferenciado. O fato de o preso ficar isolado a maior parte do tempo, sem poder falar com outros presos e sem poder receber notícias do mundo exterior, por meio de TV, rádio e jornais; por não poder receber seus cônjuges ou companheiros em visitas íntimas, levou muitos juristas a sustentar que a pena é cruel e degradante. Esse regime, segundo essa interpretação, leva os condenados à loucura, ao desequilíbrio psíquico e, por isso, fere a Constituição Federal.
Da minha parte, tenho firme convicção de que o RDD não fere a Constituição. Mesmo buscando no mais íntimo da minha alma, apelando para minha formação humanística e “romântica”, não consigo sequer de leve vislumbrar crueldade ou degradação nessa modalidade de cumprimento da pena. Pena cruel e degradante, vedada pela Carta Magna, é outra coisa. É aquela cumprida em celas escuras, sem ventilação e sem higiene. Este tipo de cela, sem higiene, molhada, sem ventilação, não existe mais em São Paulo.
A verdade é que alguns criminosos, que não têm mais nada a temer, precisam saber que no ordenamento jurídico do País existe uma medida dentro da Lei e da Constituição, capaz de tornar a vida prisional mais dura do que normalmente já é. Lamentavelmente algumas pessoas só entendem essa linguagem.
Não havendo medida dessa natureza, continuarão a quebrar penitenciárias, a extorquir seus companheiros; continuarão a cortar cabeças e a jogar futebol com os crânios. Às vezes até resolvem exibir cabeças cortadas espetadas em cabos de vassoura para as emissoras de televisão. Isso já ocorreu em São Paulo por muitas vezes… Continuarão a comandar facções criminosas e a afrontar o Estado.
Ainda assim, na linha de nunca afastar a administração penitenciária do objetivo de reintegrar o condenado à vida social, ao se criar o RDD tivemos a preocupação de fixar o tempo máximo da internação em seis meses. A Lei Federal ampliou este prazo para um ano.
Em resumo, esta é a história do Regime Disciplinar Diferenciado – RDD.
Nas conclusões dessas minhas anotações vou escrever sobre as medidas que entendo necessárias para combater de forma mais eficaz as ações das facções criminosas. Estou convencido de que o RDD precisa de aperfeiçoamento, com criação de outras regras, principalmente relativas às visitas de familiares e de advogados.
_______________________________________________________________________________
* O autor esclarece, ante a dúvida de muitos leitores, que os textos que estão sendo publicados foram escritos no segundo semestre de 2006 e que não foram atualizados.