Política

A igualdade de gênero no âmbito político

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Capítulo 1

Introdução

Em novembro de 2015, o novo Primeiro Ministro do Canadá, Justin Trudeau, montou seu gabinete de Ministros levando em consideração o critério de igualdade de gênero. São 15 homens e 15 mulheres, que estão auxiliando o Chefe do Poder Executivo a administrar o país, um dos integrantes do G7, o grupo dos países mais industrializados e desenvolvidos do mundo. Na ocasião em que foi questionado por jornalistas acerca da razão pela qual ele havia montado uma equipe de trabalho utilizando também o critério de equidade de gênero, Justin Trudeau respondeu: “Porque estamos em 2015”[1].

A luta para assegurar espaço às mulheres no âmbito político está longe de chegar a seu fim, entretanto medidas como esta, especialmente vinda de países influentes na comunidade internacional, serve de exemplo para outros e têm um grande valor simbólico.

Se olharmos para trás, na evolução da história das nações, podemos constatar que avançamos muito nessa seara. Porém, ainda há muito o que fazer. No mundo contemporâneo, em pleno século XXI, as mulheres de alguns países ainda não podem exercer livremente o sagrado direito de voto.

2015 já chegou, como disse Trudeau, mas na Arábia Saudita as mulheres estão começando a votar pela primeira vez, e somente para eleições locais. Ainda assim, há muitas barreiras a serem vencidas, porque as mulheres candidatas nessas eleições locais não podem sequer se dirigir aos homens pedindo votos[2]. A transformação do papel das mulheres no sistema político avança de forma lenta na Arábia Saudita, pois existe um costume derivado da religião islâmica sunita, que legitima um sistema informal de superioridade e primazia dos homens sobre as mulheres. Elas devem estar sempre acompanhadas por um homem até para atividades simples, como viajar ou ir à escola.

Por outro lado, os Estados Unidos são um país reconhecidamente democrático e liberal, que não está submetido a leis islâmicas. Sem embargo, a história revela que o debate sobre a igualdade de gênero também ocupou o espaço público desde os primórdios na nação norte-americana, também tendo encontrado severos obstáculos.

No embate pela independência dos Estados Unidos, houve um homem que se destacou por sua defesa do novo país. John Adams, que posteriormente veio a se tornar o segundo Presidente dos Estados Unidos da América, é considerado um dos “pais fundadores” (founding fathers) da nação americana em razão de sua contribuição na fixação dos alicerces políticos da República. Ele foi um teórico político, tendo auxiliado inclusive na formatação da declaração de independência de 1776. Em seguida, teve participação fundamental na nascente diplomacia do país, quando discutiu os termos do estabelecimento de paz com a Inglaterra. Nesse período, enquanto estava na Europa, escreveu muitas cartas a sua esposa, Abigail Adams. Estas cartas ficaram registradas na história, para conhecimento pela posteridade. Nessas correspondências, John e Abigail trataram também do papel das mulheres na política.

Em 31 de março de 1776, Abigail Adams escreveu carta para John Adams, da qual se destaca o seguinte trecho: “Eu tenho a esperança de ouvir que vocês declararam a independência. E, por isso, nesse novo código de leis que suponho seja necessário fazer, desejo que você se recorde das senhoras e seja mais generoso e favorável que seus ancestrais. Não ponha tal poder ilimitado nas mãos dos maridos. Lembre-se que todos os homens seriam tiranos se pudessem. Caso não se dê cuidado e atenção especial às damas, nós estaremos determinadas a por em marcha uma rebelião, e não estaremos obrigadas por nenhuma lei na qual não tenhamos voz e nem representação.”[3]

Apesar dos esforços argumentativos de Abigail para convencer John Adams a dar mais atenção ao tema da igualdade de gênero durante o projeto de construção dos Estados Unidos enquanto nação, a resposta não veio como se esperava. A Constituição norte-americana, de 1787, não definiu o sufrágio universal e nem tratou da questão da participação política das mulheres, relegando o tema para os Estados federados. Apenas no início do século XX, em 1920, foi aprovada a Emenda XIX à Constituição dos Estados Unidos da América, com os seguintes dizeres: “O direito de sufrágio dos cidadãos dos Estados Unidos não será ignorado ou limitado pelos Estados Unidos ou por Estado algum por razão de sexo”[4]. Abigail foi uma mulher vanguardista, com ideias adiantadas ao seu tempo. Seus desejos políticos de igualdade de gênero só foram cristalizados na Constituição norte-americana mais de cem anos depois de suas cartas.

A participação das mulheres no sistema político não é simplesmente uma reivindicação de matiz feminista. Trata-se, em verdade, de uma integração necessária para que nós enquanto seres humanos que vivem em sociedade sejamos completos em nossa capacidade de diagnóstico do mundo em que vivemos e para que possamos alcançar todo o nosso potencial de desenvolvimento.

Já chegamos em 2015, porém ainda há distintos espaços públicos que necessitam ser devidamente ocupados pelas mulheres, especialmente no sistema político, onde há um âmbito institucional próprio para o debate e para a formulação de políticas públicas, que têm o condão de influenciar, para o bem ou para o mal, a vida de todos os cidadãos. Esse debate público de ideias e perspectivas deve ser o mais amplo possível, alimentado por diversas visões de mundo, com um viés pluralístico e construtivo. Não basta, assim, que o Poder Legislativo produza normas jurídicas destinadas a reconhecer primazia à igualdade de gênero. É necessário que a própria formulação dessas normas sejam precedidas, em sua origem, por um debate fortalecido pela participação efetiva dos distintos gêneros. É dizer: as mulheres têm que ter voz própria no âmbito político, tanto no Poder Legislativo quanto no Poder Executivo.

No presente artigo, pretende-se estudar a evolução da participação política das mulheres tendo por parâmetro uma análise comparativa em países democráticos. Em seguida, prossegue-se na linha de pensamento segundo a qual revela-se de fundamental importância a integração de homens e mulheres nos distintos campos políticos e nas múltiplas esferas de influência da sociedade. Ao final, conclui-se trazendo como referência teórica para essa análise os estudos das acadêmicas Carol Gilligan e Blanca Rodriguez.

Capítulo 2

Brasil e Inglaterra

A participação política das mulheres sob uma ótica comparativa

Brasil

O Brasil é uma nação nova se comparada com os milênios de história dos países europeus. Como antiga colônia de Portugal, recebeu toda a influência cultural masculina europeia. Nesse sentido, cabe aqui abrir parênteses para destacar que um dos principais teóricos do Estado moderno, que com suas ideias influenciou a concepção política de governo contemporânea na Europa e no Brasil, demonstrou que não estava muito preocupado com igualdade de gênero.

Jean Jacques Rousseau, famoso por sua obra clássica “Do Contrato Social”, nesse mesmo período também escreveu outro livro intitulado “Emilio”. No último capítulo do livro, chamado “Sofia”, trata das relações entre homens e mulheres: “Quando a mulher se queixa da injusta desigualdade em que foi posta pelo homem, ela comete um erro; esta desigualdade não é uma instituição humana, ou ao menos não é obra de preconceito, mas da razão.”[5]. Rousseau, nesse tópico, concluiu suas ideais com a seguinte sentença: “A mulher foi feita para submeter-se ao homem e para suportar inclusive a injustiça. Nunca reduzirão os jovens [homens] ao mesmo ponto; o sentimento interior se levanta e se revolve neles contra a injustiça; a natureza não os fez para tolerá-la”[6]. Essa concepção quanto à igualdade de gênero esteve fortemente arraigada nos fundamentos e gênese do Estado contemporâneo. Por isso também esse meio político esteve ocupado por séculos quase que exclusivamente por homens. E isso vai da Europa ao Brasil.

O Brasil declarou sua independência em 1822 e proclamou a República em 1889. Mas tão somente em 1932, já em meados do século XX, as mulheres foram autorizadas a exercer o direito de sufrágio. Após um longo período de regime militar (1964-1985), foi criada Assembleia Constituinte, que culminou por promulgar a Constituição democrática de 5 de outubro de 1988. Em seu artigo 5º colhem-se os seguintes dizeres: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

No entanto, essa igualdade meramente teórica precisa saltar do texto constitucional e obter vida própria, regulando as relações sociais e políticas em nosso cotidiano cívico. Para isso, é preciso que as mulheres ocupem postos estratégicos no âmbito público e privado.

Segundo Sikora e Angelin[7], “a igualdade que as mulheres reclamam para pôr fim à subordinação social e à violência de gênero, não é só a igualdade de tratamento ou a igualdade de oportunidades, é também a igualdade no exercício e desempenho da cidadania e do poder. É o complemento do Princípio da Igualdade política sobre o que se assenta e se desenvolve toda a sociedade democrática.”.

A concretização dessa igualdade política só ocorrerá quando as mulheres tiverem voz firme e própria no espaço de debate público institucional e no desenvolvimento de políticas públicas.

Nesse sentido, concretizando o mandamento constitucional de equidade, a Lei Eleitoral brasileira dispõe que nas eleições gerais, o percentual mínimo para cada gênero nas candidaturas é de 30%[8]. Entretanto, realizado diagnóstico da atual composição do Congresso Nacional brasileiro, obtém-se o seguinte quadro:

  1. a) Senado (81 vagas): 70 homens e 11 mulheres (13,5% de mulheres na composição do Senado)[9] ;
  2. b) Câmara dos Deputados (513 vagas): 460 homens e 53 mulheres (10,3% de mulheres na composição da Câmara dos Deputados)[10].

2015 já chegou, porém o Poder Legislativo do Brasil, que edita as leis do país e toma importantes decisões políticas, que afetam toda a população, ainda é majoritariamente ocupado por homens, em uma taxa de aproximadamente 90%. As mulheres ainda buscam seu espaço e sua voz no Parlamento brasileiro.

Recentemente foi criado no sistema político brasileiro o Partido da Mulher Brasileira – PMB, supostamente com a missão de lutar pela igualdade de gênero. De modo inusitado, o único representante do referido partido no Congresso Nacional é um homem. Ainda há muito o que avançar além do mero discurso.

No Poder Executivo a situação não é muito diferente. Embora em 2011 o Brasil tenha elegido a primeira mulher como Presidente da República, é interessante notar como as forças políticas no Executivo também tendem para a supremacia masculina, mesmo quando a Chefe do Executivo é uma mulher. A Presidente Dilma Rousseff escolheu uma equipe de Ministros de Estado com 27 homens e apenas 4 mulheres.

 

Inglaterra

 

A Inglaterra é o berço europeu do desenvolvimento econômico, político, industrial e social. A chamada Revolução Gloriosa, ainda em 1689, limitou os poderes da monarquia, sentou bases ao direito de propriedade e centralizou o poder nas mãos do Parlamento Britânico. Essas circunstâncias estimularam o precoce desenvolvimento da revolução industrial. Com as inovações oriundas desse estado de coisas, que implicou também em uma revolução comercial, a Inglaterra consolidou seu poderio econômico e converteu-se em uma potência mundial, com influência em todos os continentes. Hoje em dia é possível identificar ex-colônias da Inglaterra e países que estiveram ou continuam fazendo parte do “British Commonwealth”: Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Índia, Hong Kong, entre muitos outros.

Nos primórdios do século XX, este império Britânico, entretanto, ainda não havia assegurado a devida participação política das mulheres. Essa omissão deliberada gerou focos de insurreição. Grupos de mulheres inglesas insatisfeitas com a exclusão política começaram movimentos de protesto e rebelião, tal como havia previsto séculos antes Abigail Adams. O protesto tomou forma com a fundação, em 1903, da “União Social e Política das Mulheres”[11] (Women´s Social and Political Union), encabeçada por Emmeline Pankhurst, que tinha como objetivo primordial assegurar o direito de voto às mulheres. Nesse período, na Inglaterra, surgiram dois grupos que defendiam o direito de sufrágio para o gênero feminino: as “sufragistas”, que utilizavam métodos pacíficos de pressão, como o lobby; e as “sufragetes”, ala mais radical, que estava determinada a ganhar o direito de voto por qualquer meio, inclusive por meio de protestos violentos[12]. Quanto a esse momento histórico, assim registra a doutrina[13]: “Pankhurst enfrentou a campanha antisufragista segundo a qual o sufrágio desvirtuaria a essência feminina, transgredia a divisão sexual estabelecida e levava a infelicidade aos lares; o voto representava, ademais, uma ameaça à virilidade do império britânico. De fato, o fato de as mulheres não pegarem em armas como soldados era um dos fatores que impedia seu acesso à cidadania”.

O confronto de ideias e de visões de mundo nesse período foi forte, pois havia uma forte tradição de supremacia do sexo masculino, como se as mulheres não tivessem capacidade de ocupar espaços públicos no Governo e nem de opinar sobre os destinos da nação através do voto.

Apenas em 1918, depois do final da Primeira Guerra Mundial, o movimento sufragista obteve uma vitória, com a aprovação no Parlamento Britânico da Lei de representação do povo (“Representation of the People Act”). Por esta lei se iniciou a gradual inclusão das mulheres no direito de sufrágio. O ato legislativo permitia apenas que mulheres maiores de 30 anos e detentoras de propriedade votassem. Mesmo com esse avanço, apenas 40% das mulheres cumpriam esses requisitos para poder votar[14].  Somente em 1928, com a edição da Lei de franquia da igualdade (“Equal Franchise Act”)[15] foi que as mulheres se equipararam aos homens no que concerne ao direito de voto, aos 21 anos de idade.

Nesse mesmo quadrante histórico, em 1918, as mulheres obtiveram também a elegibilidade, podendo concorrer a assentos no Parlamento britânico. Nas eleições gerais de 1918, de 1623 candidatos, 17 eram mulheres. Uma única mulher foi eleita mas sequer assumiu o mandato[16]. Desse momento em diante a participação das mulheres no Parlamento Britânico tem avançado pouco a pouco, como se percebe no seguinte quadro[17]:

Mulheres membros do Parlamento Britânico: 1918-2015

Data das eleições gerais Numero de mulheres eleitas Percentual em relação ao total
14 Dec 1918 1 0,1%
15 Dec 1922 2 0,3%
6 Dec 1923 8 1,3%
29 Oct 1924 4 0,7%
30 May 1929 14 2,3%
27 Oct 1931 15 2,4%
14 Nov 1935 9 1,5%
5 Jul 1945 24 3,8%
23 Feb 1950 21 3,4%
25 Oct 1951 17 2,7%
26 May 1955 24 3,8%
8 Oct 1959 25 4,0%
15 Oct 1964 29 4,6%
31 Mar 1966 26 4,1%
18 Jun 1970 26 4,1%
28 Feb 1974 23 3,6%
10 Oct 1974 27 4,3%
3 May 1979 19 3,0%
9 Jun 1983 23 3,5%
11 Jun 1987 41 6,3%
9 Apr 1992 60 9,2%
1 May 1997 120 18,2%
7 Jun 2001 118 17,9%
5 May 2005 128 19,8%
6 May 2010 143 22,0%
15 May 2015 191 29,3%

 

Os números acima permitem entender como é lento o processo de integração das mulheres na busca de uma participação política ativa. Quase um século depois da primeira eleição de uma mulher no Parlamento da Inglaterra, o total de membros mulheres na atual composição do Legislativo sequer alcançou um terço. Na Nova Zelândia, por exemplo, que foi um dos primeiros países do mundo a adotar o sufrágio feminino, em 1893, o Parlamento está composto por um total de 33% de mulheres[18].

Os resultados que hoje se veem são frutos da luta das gerações anteriores. No Parlamento da Inglaterra, as mulheres, com suas próprias perspectivas e visões de mundo, já deram sua contribuição legislativa em variados temas: a) em 1960 foi aprovada uma lei, proposta por Margaret Thatcher, que incrementou a política de transparência no Governo Britânico, permitindo o acesso de cidadãos a atos públicos de governo (“The public bodies – admission to meetings – act”); b) em 1985 foi editada uma lei proibindo a mutilação genital feminina, proposta por Marion Roe (“Prohibition of Female Circuncision Act 1985”); c) em 1976 a parlamentar Jo Richardson encampou a criação de uma lei que transformou a violência doméstica em crime (“Domestic Violence and Matrimonial Proceedings Act 1976”). Além desses, as mulheres parlamentares tiveram participação efetiva na mudança de diversos outros temas de interesse da sociedade[19].

Capítulo 3

Os estudos das acadêmicas Carol Gilligan e Blanca Rodriguez

Igualdade e diferença

O professor Boaventura de Sousa Santos escreveu que “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”[20].

As mulheres necessitam ter espaço no âmbito político. Nesse sentido, preliminarmente, cabe uma indagação retórica: quando as mulheres ocuparem em pé de igualdade essas esferas de influência, todos os problemas dos países serão milagrosamente resolvidos? Óbvio que não. Mas essa não é a pergunta adequada a se fazer, pois não se trata apenas de dar espaço e voz à mulher no espaço político, em uma busca vazia por igualdade. Ainda que o mundo continue com seus conflitos e adversidades diárias, a partir do momento em que há verdadeiro e efetivo empoderamento político das mulheres, ganharemos em pluralismo, com distintas perspectivas, valores e visões de mundo para a construção das soluções. Esse é o ponto, assegurar a igualdade e a diferença quando seja necessário.

Nesse sentido, ensina Campillo que as mulheres são um “coletivo em que as demandas são tanto de justiça distributiva como de reconhecimento (Nancy Fraser); […] em última instância, o que se está pondo em relevo são as demandas de pluralidade sem deixar de lado as de igualdade e de justiça. […] Da cidadania social vai-se em direção à cidadania participativa. A cidadania como participação leva implícita a ideia de que o interesse das mulheres não pode ser conhecido à margem de sua participação na política.”[21]

Na obra de Carol Gilligan (La moral y la teoría: Psicología del desarrollo femenino) propõe-se a execução de um experimento social que demonstra com claridade as distintas formas de pensar e agir dos homens e das mulheres. Solicitou-se a duas crianças de onze anos (Amy e Jake) que respondessem a um dilema, em que havia conflito entre normas morais, para se explorar a lógica de resolução de cada um. Neste conflito, um homem chamado Heinz vai até um farmacêutico pedir a entrega gratuita de um medicamento para salvar a sua esposa enferma, visto que não tinha dinheiro para comprá-lo. Ante a negativa do farmacêutico em entregar de graça o medicamento, Heinz reflete se deve ou não roubar o medicamento, que não pode comprar por ausência de condições financeiras, a fim de salvar a vida de sua esposa enferma.

Segundo Gilligan, no decurso do experimento, “Jake, de onze anos, desde o princípio não tem dúvida alguma de que Heinz deve roubar o medicamento. Interpretando o dilema como conflito entre os valores da propriedade e da vida, discerne a prioridade lógica da vida e aplica tal lógica para justificar sua decisão. (…) Ao ser indagado quanto ao fato de que ao roubar, Heinz estaria quebrando uma lei, disse que ´a lei comete erros, e não é possível escrever uma lei para cada coisa que possamos imaginar´. (…) Considerando que o dilema moral é como um problema de matemática com seres humanos, ele o analisa como equação e procede a buscar a solução.”[22].

Por outro lado, ainda conforme Gilligan, “a resposta de Amy ao dilema expressa uma impressão muito diferente: “Creio que pode haver outra maneira, além de roubar, como pedir dinheiro emprestado ou obter um empréstimo ou algo assim, mas realmente não deveria roubar o medicamento. Mas tampouco a mulher dele deve morrer. (…) Caso venha a roubar o medicamento, poderia salvar então a sua esposa, mas ao fazê-lo poderia ir à prisão, e então sua esposa poderia voltar a ficar enferma, e ele já não conseguiria mais obter o medicamento, e isto não estaria bem. Assim, realmente devem conversar sobre esse assunto e encontrar outra maneira de conseguir o dinheiro.” (…) Vê-se no dilema, neste caso, não um problema matemático com seres humanos, mas um relato de relações que se estendem no tempo. Amy considera a contínua necessidade que a esposa tem de seu marido, e a contínua preocupação do marido por sua esposa e trata de responder à necessidade do farmacêutico de tal forma que possa sustentar, em lugar de romper a conexão.”.[23]

Conforme retratada no experimento citado na obra de Gilligan, a lógica do homem reflete uma ética de justiça objetiva, matemática, enquanto que o modo de pensar e agir da mulher privilegia um ética de cuidado, de relações humanas. Nesse sentido, arremata Gilligan, afirmando que “ambas as crianças reconhecem assim a necessidade de um acordo, mas o veem resolvido de distintas maneiras: ele, impessoalmente por meio de sistemas de lógica e de lei, ela pessoalmente por meio de uma comunicação baseada em relações. (…) Estas duas crianças de onze anos, ambos muito inteligentes e perceptivos da vida, ainda que em diferentes perspectivas, revelam distintos modos de entendimento moral, distintos modos de pensar acerca de conflito e eleição”.[24]

Se o viver em comunidade resulta em inúmeros e diários conflitos, nada mais justo que incluir homens e mulheres nos espaços estratégicos onde são resolvidos conflitos (Judiciário, Ministério Público), bem como onde são formuladas e debatidas as leis e as políticas públicas de cada Estado (Poder Legislativo e Poder Executivo). Desses órgãos saem decisões que afetam a milhões de cidadãos. Deve, pois, haver pluralismo e equidade de gênero desde a gênese, ou seja, desde o debate até a concepção das políticas e decisões.

Segundo Gilligan, “durante séculos temos escutado as vozes dos homens e as teorias de desenvolvimento que são apresentadas, assim temos notado mais recentemente não apenas o silêncio das mulheres como também a dificuldade de se ouvir o que dizem quando falam; e, sem embargo, na voz diferente das mulheres se encontra a verdade de uma ética de atenção e cuidado, o nexo entre relação e responsabilidade, e as origens da agressão na falha da conexão. O ato de não ver a diferente realidade da vida das mulheres e ouvir as diferenças de suas vozes se baseia, em parte, na suposição de que há só um modo de experiência e interpretação social. Colocando-se, por outro lado, dois modos distintos, chega-se a uma interpretação mais complexa da experiência humana, que vê a verdade de separação e apego nas vidas de homens e mulheres e reconhece que estas verdades são expressadas por distintos modos de linguagem e pensamento”.[25]

O que os Estados necessitam, na esfera política, é exatamente isso: uma interpretação mais pluralística, complexa e, portanto, completa, da experiência humana, com distintos modos de pensamento. Esta multiplicidade é muito bem vinda no âmbito político.

Capítulo 4

Reflexões finais

O modo de enfrentar os conflitos do dia-a-dia, no embate político cotidiano, será muito enriquecido se imerso em visões de mundo igualmente respeitáveis de homens e mulheres, em pé de igualdade. Como visto, enquanto os homens atuam com um viés mais objetivo, lógico-matemático, as mulheres pensam e agem mais impulsionadas por uma ética de cuidado e atenção às relações humanas. Não há dúvidas de que ambas as perspectivas de ação se completam e, concatenadas, trarão grandes avanços ao país se devidamente inseridas no debate institucional político.

O Estado deve impedir o surgimento de relações de poder que menoscabem a capacidade de autodeterminação de seus indivíduos. Para tanto, a efetividade do pluralismo político é essencial. Nesse sentido, a pesquisadora Blanca Rodriguez[26] defende a necessidade de introduzir na esfera pública qualidades humanas funcionais e simbolicamente femininas, definindo-as como fundacionais em pé de igualdade na legitimação da comunidade política. Assim, aponta as seguintes bases para a difusão no âmbito político de uma ética de cuidado (“cuidadania”): a) tomar como referência a pessoa em sua experiência cotidiana, no contexto de suas múltiplas e versáteis relações sociais; b) aproximar a cidadania da experiência cotidiana das mulheres, impregnando tanto a esfera pública quanto a privada de relações humanas; c) na ética de cuidado não há culto aos direitos em sua concepção individualista, em um modelo do cidadão como mero cliente do Estado, mas defende-se um modelo de cidadania corresponsável dos desígnios do Estado, numa concepção relacional.

Em arremate, pois, urge integrar nossos espaços políticos cada vez mais com mulheres, para que o enfrentamento dos problemas políticos diários seja realizado de forma mais completa e pluralística, integrando a sociedade como um todo.

 

Referências bibliográficas

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CAMPILLO, Neus. Mujeres, Ciudadanía y Sujeto Político: La necesidad de una cultura crítica feminista. (El Reto de la igualdad de género: Nuevas perspectivas en Ética y Filosofia Política). Ed. Alicia. H. Puleo. Biblioteca Nueva. Madrid, 2008.

GILLIGAN, Carol. La moral y la teoría: Psicología del desarrollo femenino. Fondo de Cultura Económica. México, 1985.

PORRAS, Javier Dorado. “La lucha por los derechos de las mujeres en el siglo XIX. Escenerios, teorías, movimientos y acciones relevantes en el ámbito angloamericano.” Historia de los derechos fundamentales. Tomo III: Siglo XIX, Volumen I, Libro II. Dykinson, 2009. P. 1174.

RODRIGUEZ, Blanca Ruiz. Hacia un Estado post-patriarcal. Feminismo y cuidadania. Revista de Estudios Políticos. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid. Vol. 149. Julio-septiembre 2010. P. 87-122

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emilio, o de la educación. Madrid: Alianza Editorial, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003: 56).

SIKORA, Rogério Moraes y ANGELIN, Rosangela. Relações de gênero e dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito: encontros e desencontros na promoção da equidade de gênero. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v.5, n.9, p. 49-66, jul./dez.2010.

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[1] The Guardian: “Trudeau gives Canada first cabinet with equal number of men and women” Página web: http://www.theguardian.com/world/2015/nov/04/canada-cabinet-gender-diversity-justin-trudeau. [Consulta: 09.12.2015.]
[2] CNN: “Saudi Women set for historic first vote.” Página web: http://cnn.it/1M7sQ5K. [Consulta: 14.12.2015].
[3] Tradução livre do original. “I long to hear that you have declared an independency. And, by the way, in the new code of laws which I suppose it will be necessary for you to make, I desire you would remember the ladies and be more generous and favorable to them than your ancestors. Do not put such unlimited power into the hands of the husbands. Remember, all men would be tyrants if they could. If particular care and attention is not paid to the ladies, we are determined to foment a rebellion, and will not hold ourselves bound by any laws in which we have no voice or representation.” Charles Francis Adams, ed., Familiar Letters of John Adams and His Wife Abigail Adams, During the Revolution (Cambridge, Mass.: Houghton & Co., 1875), 149–150, 213, 155; Adams to Sullivan, Founder’s Library, <http://www.founding.com/library/lbody.cfm?id=135&parent=54>, retrieved December 12, 2005.
[4] Tradução livre do original: “The right of citizens of the United States to vote shall not be denied or abridged by the United States or by any State on account of sex. Congress shall have power to enforce this article by appropriate legislation.” Disponível em: “http://www.senate.gov/civics/constitution_item/constitution.htm”
[5] ROUSSEAU, Jean Jacques. Emilio, o de la educación. Madrid: Alianza Editorial, 2005. pág. 416.
[6] ROUSSEAU, Jean Jacques. Emilio, o de la educación. Ob. Cit. pág. 458.
[7] SIKORA, Rogério Moraes y ANGELIN, Rosangela. Relações de gênero e dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito: encontros e desencontros na promoção da equidade de gênero. Revista Direitos Culturais, Santo ngelo, v.5, n.9, p. 49-66, jul./dez.2010.
[8] Art. 10, § 3º, Lei nº 9.504/97: “§ 3o Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)”.
[9] Senado Federal. http://www25.senado.leg.br/web/senadores [Consulta: 22.12.2015].
[10] Câmara dos Deputados. http://www.camara.gov.br/internet/deputado/Dep_Lista.asp?Legislatura=55&Partido=QQ&SX=F&Todos=None&UF=QQ&condic=QQ&forma=lista&nome=&ordem=nome&origem=None [Consulta: 22.12.2015].
[11] Disponível em: http://www.historylearningsite.co.uk/the-role-of-british-women-in-the-twentieth-century/womens-social-and-political-union/ Acesso em 15.04.2016.
[12] Pankhurst, cuja história se pode ver no filme «As Sufragistas», era líder do grupo mais radical.
[13] Tradução livre do original: “Pankhurst se enfrentó a la campaña antisufragista según la cual el sufragio desvirtuaba la esencia femenina, transgredía la división sexual establecida y llevaba la infelicidad a los hogares; el voto representaba, además, una amenaza a la virilidad del imperio británico. De hecho, el que las mujeres no asumiesen las armas como soldados era uno de los factores que impedía su acceso a la ciudadanía.” PORRAS, Javier Dorado. “La lucha por los derechos de las mujeres en el siglo XIX. Escenerios, teorías, movimientos y acciones relevantes en el ámbito angloamericano.” Historia de los derechos fundamentales. Tomo III: Siglo XIX, Volumen I, Libro II. Dykinson, 2009. pág. 1174.
[14] UK Parliament: Women get the vote. http://www.parliament.uk/about/living-heritage/transformingsociety/electionsvoting/womenvote/overview/thevote/ [Consulta: 14.01.2016].
[15] UK Parliament. Representantion of the People (Equal Franchise) Act: http://www.parliament.uk/about/living-heritage/transformingsociety/electionsvoting/womenvote/parliamentary-collectionsdelete/equal-franchise-act-1928/ [Consulta: 15.01.2016].
[16] UK Parliament: Women get the vote. http://www.parliament.uk/about/living-heritage/transformingsociety/electionsvoting/womenvote/overview/thevote/ [Consulta: 14.01.2016].
[17] Informação disponível na página web: http://www.parliament.uk/documents/commons-information-office/m04.pdf [Consulta: 15.01.2016].
[18] 121 assentos no total, sendo 41 mulheres. Disponível en: http://www.parliament.nz/en-nz/mpp/mps/current [Consulta: 15.01.2016].
[19] Todas as leis aprovadas por proposta de mulheres se podem ver em «Women in Parliament: Making a diference since 1918». House of Commons Library. Disponible en: http://www.parliament.uk/briefing-papers/RP13-65/women-in-parliament-making-a-difference-since-1918 [Consulta: 16.01.2016].
[20] SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. pág. 56.
[21] CAMPILLO, Neus. Mujeres, Ciudadanía y Sujeto Político: La necesidad de una cultura crítica feminista. (El Reto de la igualdad de género: Nuevas perspectivas en Ética y Filosofia Política). Ed. Alicia. H. Puleo. Biblioteca Nueva. Madrid, 2008. pág. 155.
[22] Tradução livre do original: «Jake, de once años, desde el principio no tiene ninguna duda de que Heinz debe robar el medicamento. Interpretando el dilema como conflicto entre los valores de la propiedad y de la vida, discierne la prioridad lógica de la vida y aplica tal lógica para justificar su decisión. (…) Al preguntarse por el hecho de que, al robar, Heinz estaría quebrantando la ley, dijo que “la ley comete errores, y no es posible escribir una ley para cada cosa que podamos imaginar”. (…) Considerando que el dilema moral es “como un problema de matemáticas con seres humanos”, lo plantea como ecuación y procede a buscar la solución». GILLIGAN, Carol. La moral y la teoría: Psicología del desarrollo femenino. Fondo de Cultura Económica. México, 1985. pág. 52-53.
[23] Tradução livre do original: «la respuesta de Amy al dilema expresa una impresión muy diferente. (…) Creo que puede haber otra manera, además de robar, como pedir prestado el dinero u obtener un préstamo o algo así, pero realmente no debería robar el medicamiento….pero tampoco su mujer debe morir. (…) Si robara la medicina, podría salvar entonces a su esposa, pelo al hacerlo podía ir a la cárcel, y entonces su esposa podría volver a enfermar, y él ya no podría conseguir más medicina, y eso no estaría bien. Así, realmente deben hablar del asunto, y encontrar otra manera de conseguir el dinero. (…) Viendo en el dilema, no un problema matemático con seres humanos, sino un relato de relaciones que se extienden en el tiempo, Amy considera la continua necesidad que la esposa tiene de su marido, y la continua preocupación del marido por su esposa y trata de responder a la necesidad del farmacéutico de tal forma que pueda sostener, en lugar de romper la conexión.». GILLIGAN, Carol. Ob. cit. pág. 55.
[24] Tradução livre do original: «ambos niños reconocen así la necesidad de un acuerdo, pero lo ven como mediado en distintas maneras: él, impersonalmente por medio de sistemas de lógica y ley, ella personalmente por medio de una comunicación basada en relaciones. (…) Estos dos niños de once años, ambos sumamente inteligentes y perceptivos de la vida, aunque en diferentes maneras, revelan distintos modos de entendimiento moral, distintos modos de pensar acerca de conflicto y elección.». GILLIGAN, Carol. Ob. cit. pág. 57-62.
[25] Tradução livre do original: «durante siglos hemos escuchado las voces de hombres y las teorías del desarrollo que su experiencia posee, así hemos llegado a notar más recientemente no sólo el silencio de las mujeres sino la dificultad de oír lo que dicen cuando hablan; y sin embargo, en la voz diferente de las mujeres se encuentra la verdad de una ética de atención y cuidado, el nexo entre relación y responsabilidad, y los orígenes de la agresión en la falla de la conexión. El no ver la diferente realidad de las vidas de las mujeres y oír las diferencias de sus voces se basa, en parte, en la suposición de que hay un solo modo de experiencia e interpretación social. Planteando, en cambio, dos modos distintos, llegamos a una interpretación más compleja de la experiencia humana que ve la verdad de separación y apego en las vidas de hombres y mujeres y reconoce que estas verdades son expresadas por distintos modos de lenguaje y pensamento.» GILLIGAN, Carol. Ob. cit. pág. 280-281.
[26] RODRIGUEZ, Blanca Ruiz. Hacia un Estado post-patriarcal. Feminismo y cuidadania. Revista de Estudios Políticos. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid. Vol. 149. Julio-septiembre 2010. P. 87-122