Em seu discurso de despedida da presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Luís Roberto Barroso não poupou críticas ao presidente Jair Bolsonaro e sua postura de desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. Ao longo de sua fala, o ministro chegou a destacar que foi uma perda de tempo o debate sobre o voto impresso, proposta defendida pelo mandatário.
“Aqui no Tribunal Superior Eleitoral, procuramos fazer a nossa parte na resistência aos ataques à democracia. Aliás, uma das estratégias das vocações autoritárias em diferentes partes do mundo é procurar desacreditar o processo eleitoral, fazendo acusações falsas e propagando o discurso de que ‘se eu não ganhar houve fraude’. Trata-se de repetição mambembe do que fez Donald Trump nos Estados Unidos, procurando deslegitimar a vitória inequívoca do seu oponente e induzindo multidões a acreditar na mentira”, disse Barroso.
Em seguida, o ministro citou quais foram as reações da Corte eleitoral ao que chamou de “estratégias antidemocráticas” e disse que, “para além dos pronunciamentos incisivos” que ele e outros ministros fizeram, houve uma “série de medidas concretas” por parte do Tribunal. Foi nesse contexto que falou de Bolsonaro.
Entre essas medidas concretas, citou a instauração de procedimento administrativo exigindo a apresentação das provas de fraudes alegadas pelo Presidente. “Desnecessário enfatizar que as provas não foram apresentadas, porque nunca existiram”, pontuou Barroso.
Outro ponto citado foi a notícia-crime contra Bolsonaro por reiterada divulgação de notícias fraudulentas, o que está em apuração em inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF). A terceira medida elencada pelo ministro também envolve o presidente: a notícia-crime contra Bolsonaro por vazamento de informações sigilosas, constante de inquérito igualmente sigiloso da Polícia Federal.
O quarto ponto citado foi a desmonetização de sites que difundiam campanhas de desinformação. “Foi necessário um acórdão do Tribunal de Contas da União para proibir que verbas públicas fossem destinadas a sites que incentivavam atos antidemocráticos”, lembrou o presidente do TSE em sua despedida.
O próximo a comandar a Corte eleitoral, a partir de 22 de fevereiro, será Edson Fachin. Ele fica até 17 de agosto, quando o ministro Alexandre de Moraes vira o novo presidente do TSE.
Relatório da PF
Em outro trecho de seu discurso, Barroso citou até mesmo “relatório elaborado por delegada corajosa e independente” da Polícia Federal. Em documento enviado pela PF ao STF, a delegada Denisse Ribeiro afirmou que os elementos colhidos na investigação apontam para uma atuação “direta, voluntária e consciente” de Bolsonaro e do deputado Filipe Barros (PSL-PR) pelo crime de vazamento de informações sigilosas de inquérito que investiga suposto ataque de hackers às urnas eletrônicas em 2018.
“Vivemos um momento triste em que se misturam o ódio, a mentira, as teorias conspiratórias, o anti-cientificismo, as limitações cognitivas e a baixa civilidade”, declarou Barroso.
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O presidente do TSE falou ainda que, nos últimos tempos, a democracia e as instituições brasileiras passaram por ameaças “das quais acreditávamos já haver nos livrado”.
“Não foram apenas exaltações verbais à ditadura e à tortura, mas ações concretas e preocupantes”, pontuou o ministro, enumerando algumas delas, numa nítida crítica a Bolsonaro, mesmo que sem citar o presidente nominalmente. Barroso elencou o “desfile de tanques de guerra na Praça dos Três Poderes, com claros propósitos intimidatórios” e a “ordem para que caças sobrevoassem a Praça dos Três Poderes, com a finalidade de quebrar as vidraças do Supremo Tribunal Federal, em ameaça a seus integrantes, além do “comparecimento à manifestação de 7 de setembro, com ofensas a ministros do STF e ameaças de não mais cumprir decisões judiciais”.
Ainda no discurso, o ministro lembrou que o mundo assiste “à ascensão do populismo extremista e autoritário”, que reascende o fascismo. Com isso, disse ele, “a preservação da democracia e o respeito às instituições passaram a ser ativos valiosos, indispensáveis para quem queira ser um ator global relevante”.
“Não é de surpreender que dirigentes brasileiros não sejam hoje bem-vindos em nenhum país democrático e desenvolvido do mundo. E, nos eventos multilaterais, vagam pelos corredores e calçadas sem serem recebidos, acumulando recusas em pedidos de reuniões bilaterais. Como já disse anteriormente, a marca Brasil vive um momento de deprimente desvalorização mundial. Passamos de um país querido e admirado internacionalmente a um país olhado com desconfiança e desprezo”, afirmou.
Telegram
Após o discurso, Barroso concedeu uma entrevista coletiva e foi questionado sobre o aplicativo de mensagens Telegram. A Justiça brasileira, incluindo o próprio TSE, já tentaram entrar em contato com a plataforma diversas vezes e não obteve resposta.
Para o ministro, existem dois caminhos: uma eventual aprovação do dispositivo no Congresso que exige representação no Brasil para que uma plataforma tecnológica possa funcionar aqui ou, caso não seja aprovado, o Judiciário pode ser acionado, via STF ou TSE, em ação existente ou nova ação.
“O que não pode é uma plataforma à margem da lei, em que se circulem mensagens: ‘leve uma pedra, vá armado’. Isso não é liberdade de expressão, isso é crime”, disse o presidente do TSE, salientando ainda ser “favorável à autorregulação das plataformas, mais do que que a interferência estatal”.
Forças Armadas
Na coletiva, Barroso falou ainda sobre o fato de o TSE ter tornado pública a resposta da Corte às Forças Armadas. O conteúdo era relativo às urnas eletrônicas, e houve vazamento da existência e do teor das perguntas formuladas pelos militares, o que foi usado por Bolsonaro para novas insinuações contra o sistema eleitoral.
“É preciso não confundir governo com Forças Armadas. Braga Netto [ministro da Defesa] é um nome do governo. As Forças Armadas são profissionais, pessoas sérias, patriotas, comprometidas com o Brasil, compreensão da democracia no mundo. Não me passa pela cabeça que qualquer liderança militar queira voltar ao cenário da década de 60, Guerra Fria, golpe de estado. Nenhuma liderança militar verdadeira quer isso”, disse o ministro, completando: “Estou presumindo que as Forças Armadas querem ajudar a democracia e não municiar um presidente que quer atacá-la”.