Yasser Gabriel
Professor da FGV Direito SP. Doutor em direito administrativo pela USP. Mestre pela FGV Direito SP. Advogado em São Paulo
Projeto dá à AGU competências que podem impactar a independência das agências
A autonomia administrativa e decisória de entidades regulatórias não sai da agenda dos administrativistas. Sempre há motivo para revisitar o tema. Há anos atrás, houve a atuação da Advocacia-Geral da União - AGU no embate entre CADE e BACEN para definir a quem competia analisar atos de concentração no sistema financeiro. Depois, a mesma AGU deu base à orientação de que decisão de agência reguladora poderia ser revista pelo ministério ao qual está vinculada, mediante recurso hierárquico impróprio.
O motivo da vez é o projeto de lei que altera a Lei Orgânica da AGU (PLP 337/2017). É que o tal projeto subordina, direta e imediatamente, a Procuradoria-Geral Federal - PGF à AGU (art. 17). A PGF é órgão da administração federal ao qual compete assessorar e orientar juridicamente autarquias e fundações públicas federais, inclusive agências reguladoras. Suas procuradorias especializadas dão respaldo jurídico às atividades dessas entidades (opinando sobre sua viabilidade) e as representam judicialmente.
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Com a modificação legal, a AGU passaria a poder “desistir, transigir, acordar e firmar compromissos” nas ações de interesse das autarquias e fundações públicas (art. 4º, VI), “exercer orientação normativa e supervisão técnica” sobre a atuação da PGF (art. 4º, XIII) e, até mesmo, avocar para si quaisquer matérias jurídicas de seu interesse (art. 4º, §2º). Algo de estranho nisso? Talvez. No caso de agências reguladoras, criadas para atuarem com autonomia decisória quanto ao Poder Executivo, pode-se estar facilitando eventual ingerência política sobre elas.
Passaria a AGU, órgão da administração direta ligado à Presidência da República, a ter o poder de, por seus órgãos de cúpula, orientar juridicamente e representar as agências. A celebração de acordos e a aplicação de sanções a regulados, por exemplo, poderiam ficar sujeitos ao entendimento do Advogado-Geral da União. Sendo esse um cargo de confiança de indicação do Presidente da República, há algum risco de ingredientes políticos, travestidos de jurídicos, interferirem nos posicionamentos da cúpula da AGU.
O cenário parece contrariar premissa central que motivou o surgimento das agências: garantir segurança jurídica à regulação de setores econômicos relevantes ao desenvolvimento nacional, protegendo-os de interferências políticas.
Não é que agências reguladoras, atualmente, estejam blindadas dessas interferências. Afinal, seus conselheiros são indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal. E fato: a PGF já é vinculada à AGU. O Procurador-Geral Federal, por exemplo, é indicado pelo Advogado-Geral da União. Incumbe também à AGU a supervisão da PGR. Não obstante, ela (a PGF) possui, legalmente, certo grau de autonomia funcional. Sua atuação não é ditada diretamente pela cúpula da AGU.
Não há dúvida de que o PLP 337/2017 surge com boas intenções. Vem de articulação da própria AGU para organizar e dar algum grau de unicidade, sob sua alçada a carreiras jurídicas originalmente diferentes (Advocacia da União, Procuradoria da Fazenda Nacional, Procuradoria do Banco Central e Procuradoria-Geral Federal). O objetivo do PLP é interessante, mas vale a reflexão: não seria o caso de olhar com mais cuidado para o risco de comprometimento da autonomia jurídica da PGF e, reflexamente, da própria autonomia decisória das agências reguladoras?