CONTEÚDO PATROCINADO

Proposta da ANTT para rotas interestaduais é criticada por danos à concorrência

Nova minuta de marco regulatório limita entrada de novas empresas e cria janelas de autorização para esses entrantes

Foto: Unsplash

A proposta mais recente de marco regulatório do serviço regular do transporte rodoviário interestadual de passageiros apresentada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) tem potencial de prejudicar a concorrência ao restringir a abertura do setor. É o que afirmam entidades ligadas a empresas de mobilidade, interessadas em participar desse mercado, e especialistas em regulação de transportes. 

Desde 2020, a agência discute um novo marco para esse tipo de transporte terrestre, chamado de TRIP.  No último mês de julho, a ANTT reabriu uma audiência pública, que teve início ainda em meados do ano passado, para receber sugestões sobre mudanças feitas na nova resolução do TRIP que está em estudo. 

A reabertura da audiência pública ocorreu com a justificativa de que havia recomendações feitas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela Procuradoria Federal da ANTT.

A nova minuta acrescentou uma previsão sobre o controle da entrada de novas empresas no TRIP com base na identificação de inviabilidade econômica, operacional e técnica da operação. E são justamente essas últimas alterações, somadas ao estabelecimento de um processo seletivo discricionário, na proposta de regulamentação do TRIP, que têm gerado queixas no setor.

Para o cálculo da inviabilidade econômica, a ANTT vai classificar os mercados em principais e subsidiários, em função da movimentação de passageiros nos últimos 12 meses. A ideia, segundo a proposta, é determinar quantos operadores poderão atuar nos mercados principais, que serão divididos em três níveis – o que não aconteceria antes de 2025. 

Nos mercados nível 1, será permitida a entrada de mais 20% de novas empresas por ano. Nos de nível 2, apenas um novo operador poderá entrar anualmente. Já os mercados de nível 3 são considerados saturados, e não serão concedidas novas licenças até que sejam reclassificados para nível 1 ou 2. 

Pela proposta, os mercados de nível 3 serão os que apresentarem índice de eficiência menor que 0,7. “Isso quer dizer que se o preço praticado for inferior a 70% do que a ANTT entende como a tarifa de eficiência, a agência conclui que os operadores não vão conseguir prestar um serviço de qualidade. Isso porque o mercado está saturado, e as passagens não vão subir para atingir a tarifa de eficiência”, explica Felipe Freire, especialista em regulação da ANTT e mestre em Engenharia de Transportes pela COPPE/UFRJ.

“Só que não faz sentido a ANTT dizer que os operadores vão prestar um serviço ruim neste mercado específico com índice de eficiência menor que 0,7, porque, no regime de autorização, as empresas atuam em vários mercados. Não dá para avaliar mal toda a operação de uma empresa com base apenas em uma linha”, acrescenta. 

Frederico Turolla, sócio da Pezco Economics, avalia que não há lógica econômica nesse cálculo de inviabilidade econômica proposto na minuta. Isso porque a determinação de que uma empresa é economicamente incapaz de operar certo trecho se basearia na falta de demanda de passageiros. 

“Nos mercados principais é onde justamente tem demanda e, por isso, deveria ter concorrência entre vários operadores para melhorar o serviço e baixar os preços. A lógica do transporte interestadual de passageiros é de rede, não é ligar um ponto ao outro; nesse trajeto existem inúmeras linhas secundárias que alimentam essa rede principal”, avalia o especialista em regulação e investimentos em infraestrutura. “Essa proposta da ANTT desestrutura toda a rede, e penaliza os passageiros”, conclui ele. 

A segunda proposta de alteração no marco regulatório do TRIP que chama a atenção é a criação de janelas anuais de autorização de empresas para atuar no setor. A justificativa é ampliar o nível de concorrência nos mercados de forma progressiva a fim de garantir a proteção ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos já existentes. 

Na prática, para os críticos, isso bloquearia a melhora dos serviços, a queda dos preços e a inovação, fomentados pelo aumento da concorrência. “Durante um ano, as empresas sabem que ninguém mais vai entrar no mercado. Sem competição, a tendência é que as tarifas não caiam e a qualidade do serviço não melhore”, diz Freire. 

No regime de autorização, “o risco da operação é da empresa, os órgãos governamentais devem se preocupar com a segurança e em fiscalizar corretamente. Essas janelas também prejudicam o usuário que não poderá contar com alternativas, caso alguma das empresas que operam na rota decida sair”, ressaltam Edson Lopes, diretor-geral da FlixBus no Brasil, e Andrea Mustafa, diretora de relações governamentais da empresa, em artigo publicado no JOTA

Outra proposta para alteração do marco regulatório do TRIP que vem gerando controvérsia é o cálculo da inviabilidade econômica com uso de parâmetros antigos, como o Índice de Aproveitamento Padrão (IAP). 

O IAP é um índice que estava previsto em uma resolução da ANTT de 2006, quando ainda estava em vigor o regime de permissão – ele foi substituído em 2014 pelo modelo de autorização, com um período de cinco anos para a transição. Neste regime, a agência regulava os preços das passagens, através do cálculo entre receitas e despesas das empresas, para se chegar à tarifa de equilíbrio.

O IAP é a taxa de ocupação de ônibus. Nessa resolução antiga, a ANTT entendia que o IAP era de 61% para veículos com 46 assentos. Ou seja: se o ônibus estivesse com 61% dos assentos ocupados, a operação era considerada eficiente pela agência reguladora. 

“O IAP não se presta como parâmetro de eficiência de um mercado em contexto de liberdade de preços, como é no regime autorizativo. Se a empresa tiver um ônibus melhor, mais confortável, ela pode cobrar uma tarifa mais cara, por exemplo. As empresas têm total liberdade tarifária desde junho de 2019”, destaca o especialista em regulação Felipe Freire, apontando para o início oficial do esquema de autorização. 

“O que tem que ser medido é a capacidade econômico-financeira do operador de oferecer o serviço de TRIP. E não se determinada linha tem ocupação alta ou baixa. A regulação da ANTT não deve se imiscuir na concorrência que deve se dar nos mercados e entre operadores economicamente saudáveis”, conclui Frederico Turolla, da Pezco Economics. 

Durante a audiência pública da ANTT, representantes de diversas entrantes do setor, como a Associação Brasileira pelo Futuro da Mobilidade (AFMOB), disseram que a norma, do modo como está, pode restringir a criação de novas linhas nas principais rotas do país e garantir que algumas regiões continuem a ser atendidas por apenas uma empresa, o que geraria um claro problema concorrencial. 

Debate sobre o transporte rodoviário

Em março deste ano, o STF julgou que o regime de autorização é constitucional. O novo sistema passou a valer em 2015, com a aprovação da Lei 12.996/2014. Deveria estar em plena vigência desde 2019, quando se encerrou o prazo de transição. No regime autorizativo, as empresas devem comprovar a capacidade de operar as rotas, mas sem licitação prévia e sem qualquer tipo de exclusividade, o que incentiva a competição. 

Antes disso, vigia o regime de permissão, no qual a implantação de novas rotas deveria ser feita por meio de licitações. No entanto, não havia licitação de fato; as empresas vinham operando graças a um precário esquema de autorizações ou devido a decisões judiciais. 

Em fevereiro deste ano, o TCU revogou uma cautelar, em vigor desde março de 2021, que paralisava a entrada de novos operadores no mercado a pedido de empresas que já atuavam no setor. 

Com a queda da liminar do TCU e o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade no STF, foi aberto caminho para a retomada das autorizações pela ANTT.

Na época, segundo o órgão regulador, estavam paralisados cerca de mil processos administrativos relacionados a novas autorizações, envolvendo 187 empresas e quase 150 mil novos mercados (isto é, pares de origem e destino em estados distintos). 

Além disso, ainda de acordo com a ANTT, há 15 mil mercados outorgados no Brasil, sendo quase 12 mil posteriores ao início da abertura do mercado de TRIP, em 2014. Os números indicam como o atual modelo de autorizações foi significativo para ampliar a concorrência. 

O mercado de transporte rodoviário de passageiros no Brasil movimenta cerca de R$ 30 bilhões por ano. Contudo, dados da ANTT mostram que, em 2021, em 73% dos trechos interestaduais no Brasil havia apenas uma empresa operando. O que significa apenas uma opção de serviço para viajar.