CONTEÚDO PATROCINADO

STJ não admite papel decisivo da indústria do tabaco em danos à saúde, diz pesquisa

Segundo estudo da ACT Promoção da Saúde, alta corte muda decisões favoráveis às vítimas e isenta empresas de reparar consumidores

Foto: Unsplash

O consumo de tabaco no Brasil foi reduzido em 60% entre 1989 e 2019, de acordo com dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca), ligado ao Ministério da Saúde. A queda, segundo especialistas, é consequência da implementação, nas últimas décadas, de políticas públicas para regular a comercialização dos cigarros e frear o seu consumo – e passam por medidas sanitárias, de comunicação, de publicidade e até pela tributação. 

Contudo, a posição do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relação ao poder viciante do cigarro, aos danos do consumo, riscos de doenças e morte, e às estratégias de marketing da indústria do tabaco não é a mesma.

A Justiça não tem reconhecido, de forma definitiva, os danos da nicotina (princípio ativo do tabaco presente nos cigarros que causa forte dependência) e do tabagismo aos consumidores, nem o poder da indústria em captar o público jovem e manter a dependência. 

Em 2011, conforme pesquisa publicada pela ACT Promoção da Saúde, ainda eram poucas as decisões no STJ sobre a matéria (apenas seis). De lá para cá, 38 novas decisões foram proferidas sobre o tema em ações de indenização, sendo que em apenas uma delas a Corte Superior reverteu o resultado favorável obtido pela indústria na primeira instância para reconhecer a aplicabilidade do prazo prescricional em favor da vítima. 

No entanto, em nenhuma dessas ações houve a condenação da indústria do tabaco por danos causados à saúde dos fumantes, fumantes passivos ou familiares das vítimas, tanto de forma individual quanto coletiva. 

Esse e outros resultados são destrinchados na publicação recém lançada “Ações Indenizatórias contra a Indústria do Tabaco: análise da jurisprudência do STJ de 2010 a 2023”, de autoria da professora Fernanda Nunes Barbosa e do professor Adalberto de Souza Pasqualotto. A nova análise tem enfoque exclusivo nos Tribunais Superiores e conta com pesquisa de jurisprudência realizada por Maria Paula Riva, advogada e mestre em Ciência Política. O prefácio é de Renata Domingues Balbino Munhoz Soares, da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 

Ambas as publicações são parte da contribuição da ACT Promoção da Saúde para este debate no país – com o objetivo que a indústria do tabaco seja responsabilizada pelas externalidades negativas que causa a seus consumidores e ao país.

“O STJ não reconhece aos fumantes o direito à indenização, embora a ciência médica universalmente aponte o tabaco como um fator de múltiplas doenças, como o câncer ou condições cardiovasculares”, afirma o professor Adalberto de Souza Pasqualotto, doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coautor do estudo. 

A pesquisa demonstra que os argumentos utilizados pelo STJ ao longo da última década têm sido reproduzidos sem que novos debates sejam promovidos.

Algumas mudanças no cenário tratam da evolução das descobertas científicas na área da saúde e das doenças relacionadas ao tabaco, o progresso dos estudos sobre o instituto da responsabilidade civil e seus elementos, notadamente em relação ao nexo causal, e as decisões estrangeiras, especialmente considerando que o Brasil ratificou a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde.

O tratado reconhece que “a ciência demonstrou de maneira inequívoca que o consumo e a exposição à fumaça do tabaco são causas de mortalidade, morbidade e incapacidade” e que “os cigarros e outros produtos contendo tabaco são elaborados de maneira sofisticada de modo a criar e a manter a dependência, que muitos de seus compostos e a fumaça que produzem são farmacologicamente ativos, tóxicos, mutagênicos e cancerígenos”.

Para Fernanda Barbosa, professora da PUC do Rio Grande do Sul e doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), as estratégias e técnicas de convencimento para o uso do tabaco são “cuidadosamente pensadas e testadas com o objetivo maior de convencer até o próprio fumante que a culpa pelas doenças, incapacidades e mortes é dele, e não da arquitetura do produto e das estratégias de comunicação e de negócio da indústria”. 

Políticas públicas para o controle do tabaco no Brasil

“O Brasil tem se destacado no cenário internacional por suas políticas públicas de controle do tabagismo, que têm apresentado resultados positivos no âmbito da saúde pública, colocando o país como referência mundial de sucesso para redução de prevalência do tabagismo em países de baixa e média renda”, avalia a professora. 

“O objetivo maior é convencer até o próprio fumante que a culpa pelas doenças, incapacidades e mortes é dele, e não da arquitetura do produto e das estratégias de comunicação e de negócio da indústria”

Fernanda Barbosa, professora da PUC do Rio Grande do Sul

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o Brasil como referência por ter implementado as principais medidas para o controle do tabaco previstas na Convenção-Quadro para Controle do Tabaco.

A Convenção é o eixo condutor da Política Nacional de Combate do Tabaco no Brasil, articulada pelo Ministério da Saúde por meio do Instituto Nacional de Câncer, que herdou a atuação governamental iniciada em 1985, com o Grupo Assessor para o Controle do Tabagismo no Brasil e, no ano seguinte, com o Programa Nacional de Combate ao Fumo. 

“Dentre as medidas hoje adotadas pelo Brasil, são destaques a adoção das advertências sanitárias; a proibição do fumo em locais fechados; o programa de cessação do tabagismo do SUS; o aumento de tributos sobre produtos fumígenos; e a ampliação da restrição da publicidade, com a sua proibição nos meios de comunicação de massa”, explica a professora Fernanda.

Entretanto, como alerta a diretora jurídica da ACT Promoção da Saúde, Adriana Carvalho, o Brasil tem que seguir avançando na implementação das políticas públicas para o controle do tabaco, como proibir qualquer forma de publicidade e patrocínio e implementar a regulação do uso de aditivos em produtos de tabaco. 

Segundo ela, a indústria tem adotado estratégias cada vez mais sofisticadas para atrair o público jovem ao tabagismo, em detrimento da saúde pública. “Não à toa, o tema da Organização Mundial de Saúde para o Dia Mundial Sem Tabaco de 2024, em 31 de maio, foi ‘Proteger as crianças da interferência da indústria do tabaco’”, pontua a diretora jurídica. 

Por conta da iniciação ainda antes da vida adulta, a OMS reconhece o tabagismo como uma doença pediátrica. No Brasil, a idade média de experimentação é de 16 anos de idade

Nessa linha, a regulação do uso de aditivos em produtos de tabaco, estabelecida pela Anvisa em 2012, seria uma importante medida para a prevenção ao consumo e da iniciação ao tabagismo em jovens – pois aditivos, como os de sabor e aroma, aumentam a palatabilidade e a atratividade de produtos que causam dependência e danos à saúde

A medida, porém, segue sem implementação. “A despeito dos esforços do poder público e da sociedade civil organizada para conter a epidemia do tabaco, toda política regulatória implementada no Brasil acaba sendo contestada no Poder Judiciário pela indústria do tabaco, em longos litígios que retardam em anos ou mesmo décadas a implementação de novas políticas protetivas”, diz a diretora jurídica da ACT.

“Toda política regulatória implementada no Brasil acaba sendo contestada no Poder Judiciário pela indústria do tabaco, em longos litígios que retardam em anos ou mesmo décadas a implementação de novas políticas protetivas”

Adriana Carvalho, diretora jurídica da ACT Promoção da Saúde

Ainda assim, todas as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) até o momento – em ações questionando a validade de leis antifumo estaduais e de regulações sanitárias – validaram as medidas de controle do tabaco. Isso posiciona o Brasil em alinhamento às decisões de Cortes Superiores de outros países, como Uruguai, Reino Unido, México e Austrália, sobre medidas para conter a epidemia do tabagismo.

Decisões desfavoráveis no STJ

Embora o cenário seja favorável ao controle do tabaco no Brasil, Fernanda Barbosa destaca que esses avanços não têm sido sentidos no STJ com a mesma intensidade, notadamente nas ações judiciais de responsabilidade civil.

“Passados todos esses anos, o que se percebe é que a Corte Superior não tem acompanhado a evolução das pesquisas em saúde pública, o consenso científico, nem os importantes debates travados nas áreas da responsabilidade civil e do direito do consumidor’, diz a professora da PUC. 

“Da mesma forma, tem dado as costas a decisões do próprio STF sobre temas relacionados, como produtos perigosos ou nocivos (a exemplo dos agrotóxicos e do amianto) versus a proteção (e promoção) do direito fundamental à saúde”, completa.

No estudo conduzido por ela, foi identificado também que quase todas as decisões se originaram de recursos em ações individuais – enquanto apenas duas em ações coletivas, ajuizadas pelo Ministério Público de São Paulo. 

Do total de decisões analisadas, em 85,7% dos casos se pleiteava uma indenização por danos morais; e em 46,4% por danos morais e materiais. O aparecimento de um câncer, principalmente de pulmão, pela exposição ao tabaco, foi o motivo do processo 31,6% dos casos. Outras condições respiratórias, como a doença pulmonar obstrutiva crônica e o enfisema pulmonar também estavam presentes nas ações. 

Nas decisões do STJ, 63,2% foram desfavoráveis às vítimas. Em 2ª instância, 55% dos recursos também tiveram decisões contrárias aos consumidores. 

E entre os principais argumentos dos magistrados para não haver condenação das fabricantes de cigarros está a ausência de nexo causal – isto é, não haver relação direta de causa e efeito entre o consumo de cigarros e os danos advindos à saúde. 

Além disso, um outro ponto levantado é que os produtos de tabaco, por si só, envolvem perigos inerentes ao seu uso – que, além do mais, é lícito. Portanto, potenciais danos à saúde não são causados por um defeito de produção, o que poderia levar à responsabilização de seus produtores. 

A questão é que o fato de o produto ser lícito não significaria um aval para que as fabricantes de cigarros não sejam responsabilizadas pelos danos causados pelos seus produtos. O STF já reconheceu, na ADI 4874, que a liberdade de iniciativa não impede a imposição de limites para garantir direitos fundamentais e proteções constitucionais – no caso do controle do tabaco, a proteção da saúde e o direito à informação. 

Um cenário que exige mudanças

É um consenso que o tabagismo é uma das principais ameaças à saúde pública – como define a OMS. No Brasil, o Ministério da Saúde reconhece que há mais de 50 doenças relacionadas ao consumo de cigarro e aponta risco cerca de dez vezes maior de um fumante ter câncer de pulmão do que uma pessoa que não fuma, além de ter cinco vezes mais chance de ter acometimentos cardiovasculares, como infarto ou acidente vascular cerebral. 

Isso tem impacto direto na saúde pública e na economia do país, o que se reflete em pressões a sua capacidade de financiamento. Em 2024, o Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária (IECS) estimou que o Brasil perde mais de R$ 153 bilhões ao ano com despesas médias e perda de produtividade devido ao tabagismo

“O tabaco é um produto nocivo e precisa ser reconhecido como causa de morte dos fumantes, por isso é importante virar essa jurisprudência”, aponta Adalberto de Souza Pasqualotto.

“No Brasil, o STJ vem fechando os olhos para o mundo e para as diversas decisões estrangeiras que têm apontado a necessidade de responsabilização desta indústria bilionária”, avalia ainda Barbosa. 

Esse é o caso do Canadá, por exemplo. Em 2015, foi proferida uma decisão histórica na Corte Superior da Província do Québec: três empresas multinacionais de tabaco foram condenadas ao pagamento de cerca de R$ 39 milhões de reais a mais de um milhão de consumidores de tabaco da região.

Apresentadas em 1998, as duas ações coletivas foram realizadas por cidadãos que tiveram tanto consequências vinculadas ao vício quanto repercussões na saúde física, como enfisema pulmonar ou câncer no pulmão ou garganta. 

“Nessa decisão, há justamente o reconhecimento do problema do tabaco em âmbito coletivo. A toxicidade do produto é uma questão epidemiológica que não é reconhecida no Brasil”, completa Pasqualotto.

“O papel das esferas estatais é o de equilibrar novamente essa balança tão díspar de forças entre a indústria e a sociedade, por meio de seus poderes constituídos”, finaliza Fernanda.

Sobre a ACT Promoção da Saúde

A Associação de Controle do Tabagismo, Promoção da Saúde e dos Direitos Humanos (ACT Promoção da Saúde) é uma organização não governamental fundada em 2006, que contribui com políticas públicas para o controle do tabaco e do álcool, e para a promoção da alimentação adequada e saudável.

Neste ano de 2024, a ACT Promoção da Saúde completa 18 anos de jornada, e espera contribuir mais uma vez para este debate ao trazer a público uma pesquisa de fôlego, forte na sua missão de promover ambientes saudáveis e sustentáveis para a prevenção do tabagismo, que é um dos principais fatores de risco das doenças crônicas não transmissíveis (doenças cardiovasculares, circulatórias crônicas, diabetes e cânceres), responsáveis por mais de 70% das mortes ocorridas no Brasil e no mundo.

A ACT tem contribuído para esse debate por meio da produção de conhecimento.  A Associação Médica Brasileira, com a participação do Inca, Ministério da Saúde e da ACT, lançou a publicação “Evidências Científicas sobre Tabagismo para Subsídio ao Poder Judiciário”.

A ACT apoiou a divulgação do livro “Direito e Saúde: o Caso do Tabaco”, pela Editora Letramento, em 2018, organizado pela professora Fernanda Nunes Barbosa, com o professor Adalberto de Souza Pasqualotto e o magistrado Eugênio Facchini Neto, em que são analisados os argumentos da indústria do tabaco no enfrentamento das ações de indenização promovidas por fumantes e suas famílias em ações individuais e coletivas.