Em agosto de 2018, um ousado arranjo jurídico conduzido pela prefeitura municipal de Penedo, cidade alagoana localizada a 170 quilômetros de Maceió, deu origem a uma das primeiras startups brasileiras na área da saúde fundada a partir de uma parceria público-privada, a Sociedade de Propósito Específico (SPE) nomeada de PGS Medical.
De um lado, na divisão societária, está o município alagoano, com participação minoritária de 3% do capital social da companhia. Do outro lado, uma empresa que atua em tecnologia da saúde, a NAGIS Health, e outra em gestão de projetos, a Ello Gestão e Participações, ambas com participação majoritária de 48,5% cada.
A PGS Medical foi idealizada por incentivo do atual prefeito de Penedo, Marcius Beltrão (PDT), para tentar resolver, com o auxílio de um programa de inteligência artificial, um complexo problema enfrentado por gestores do Sistema Único de Saúde (SUS): o tratamento de pacientes crônicos, que, em média, correspondem a 4% da população das cidades do país, mas consomem metade do orçamento disponível para a saúde pública.
De forma simplificada, a startup propõe uma otimização de recursos públicos para o município por meio da criação de um Centro Altamente Resolutivo (CAR), que deve ter como norte a atenção à saúde da família.
Nesse centro, os profissionais de saúde são treinados para usar o software de inteligência artificial, chamado PGS-Medical, que oferece ao gestor um cálculo de classificação de risco de cada paciente; sugestão de periodicidade de acompanhamento; sugestão de linhas de cuidado; implementação de formulários próprios; automatização das estratégias de cuidados; níveis de acesso por profissional; acompanhamento de evolução clínica; e organização das agendas dos profissionais da saúde.
O sistema é alimentado pelos dados dos pacientes atendidos em toda a cidade de Penedo e cruzado com as orientações dos cadernos de atenção básica a doentes crônicos, que hoje são disponibilizados apenas em papel impresso pelo SUS.
Em seis trimestres de aplicação, segundo dados da startup, o município registrou redução de 90% no número de atendimentos de pacientes crônicos nas unidades básicas de saúde e diminuiu em 62% o número de internações nos hospitais da cidade. Na pandemia da Covid-19, Penedo registrou até agora 23 mortes, nenhuma relacionada a pacientes com doença crônica.
Os resultados apresentados levaram a PGS Medical a receber o Selo GovTech do BrazilLAB, que certifica startups aptas a trabalhar e vender seus serviços para diferentes órgãos de governo.
O caminho regulatório para viabilizar a criação dessa startup, entretanto, foi árduo e trabalhoso, de acordo com o relato de Ricardo Costa Ruas, à época o controlador-geral do município. Foi ele quem desenhou todo o arcabouço jurídico para firmar a PGS Medical. Para tanto, Ruas estudou os meandros da Lei 10.973/2004, alterada pela Lei 13.243/2016 e regulamentada por meio do Decreto 9.283/2018.
Esse arcabouço jurídico é o que se conhece hoje como o Novo Marco Legal da Inovação no Brasil. Esse marco trouxe atualizações sobre as possibilidades de incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo do país. Modernizou, também, disposições da Lei 8.666/1993, que disciplina o processo de licitação no caso das compras e contratações de serviços por órgãos públicos.
“A legislação sobre inovação busca realmente uma quebra de paradigmas, mas deixou conceitos em aberto que podem passar pelo escrutínio das controladorias e procuradorias. Isso causou uma grande insegurança sobre os caminhos que seguiria para a construção da PGS Medical”, diz o controlador Ricardo Ruas.
Arranjo jurídico
Para compreender como se deu a negociação para fundar a PGS Medical, é preciso resgatar a Lei Municipal 1.586, aprovada em 2017, pela Câmara de Vereadores de Penedo, que criou a Instituição Científica Tecnológica e de Inovação (ICT-Penedo). Esse foi o divisor de águas para validar a intenção do município em entrar como sócio minoritário de uma empresa de capital privado.
No inciso V do artigo 2º da Lei Federal 10.973 se definiu que uma ICT é um “órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no país, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter científico ou tecnológico ou o desenvolvimento de novos produtos, serviços ou processos”.
“O fato de o município ter uma ICT, nos termos da Lei de Inovação, permite que esse órgão público faça uma série de iniciativas relacionadas ao processo de inovação. No parágrafo 2º-A, inciso III, do artigo 19º da Lei de Inovação, por exemplo, se prevê um mecanismo de participação societária por meio da ICT”, explica Vera Monteiro, professora de Direito Administrativo da pós-graduação na FGV Direito SP.
Por solicitação do gabinete do prefeito, o ICT-Penedo foi designado a descobrir uma saída para resolver o atendimento a pacientes crônicos na cidade. Marcos Maggi, diretor-presidente da instituição, afirma que neste processo se abriu um chamamento público para convocar empresas da área de desenvolvimento de sistemas focado na questão de saúde.
“Várias empresas se apresentaram e, então, foi composta uma comissão julgadora que escolheu o perfil da empresa que mais se adequou ao objetivo do projeto. Disso, se criou um plano de trabalho para desenvolver um piloto do que se tornaria a PGS Medical no futuro”, diz Maggi. A empresa escolhida foi a NAGIS Health, reconhecida como uma das 21 companhias mais inovadoras em saúde do mundo pelo International Finance Corporation, braço do Banco Mundial.
A contratação com a NAGIS Health para o desenvolvimento da plataforma técnica de gestão de cuidados da saúde se deu por meio de dispensa de licitação, baseada no inciso XXXI do artigo 24 da Lei 8.666/1993, dispositivo que permite a dispensa com base na Lei de Inovação.
A partir desse momento, para se blindar ao máximo de possíveis questionamentos, o município solicitou um parecer da Procuradora-Geral do Município, que foi favorável ao plano-piloto proposto.
De acordo com Ricardo Ruas, além de utilizar o mecanismo de participação societária, outros dois dispositivos do artigo 19º da Lei 10.973/2004 também foram usados no processo de elaboração do contrato: a encomenda tecnológica (ETEC) e a subvenção econômica.
Segundo o guia da HubTech, uma iniciativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, uma ETEC é um tipo especial de compra pública, que dispensa licitação e se destina a adquirir uma solução que ainda não está disponível no mercado e que envolve risco tecnológico para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador. Isso exige um esforço formal de pesquisa e desenvolvimento.
Esse mecanismo, por ter sido pouco utilizado até agora, tem seus limites ainda em discussão. “Nós optamos por utilizar a encomenda tecnológica porque íamos gerar um produto novo voltado para a área pública de monitoramento, gerenciamento e acompanhamento de pacientes crônicos. Se eu tivesse já esse produto disponível no mercado, o que não tinha na época, eu poderia apenas usar a subvenção econômica”, diz Ruas, acrescentando que tem adquirido todas as doutrinas sobre a Lei de Inovação para se atualizar sobre as interpretações acerca da legislação.
No caso da subvenção econômica, o mecanismo permite alguns estímulos financeiros, como repasse de recursos ou compartilhamento de custos para o desenvolvimento da inovação pretendida. No caso da PGS Medical, Penedo aportou cerca de R$ 1,6 milhão, ao passo que as empresas privadas investiram mais de R$ 40 milhões.
Desafios de aplicação e de cultura
As mudanças advindas com a Lei de Inovação têm, segundo advogados especialistas consultados pelo JOTA, o potencial de transformar a inovação no setor público brasileiro. Contudo, sua aplicação, por trazer definições completamente novas, ainda esbarra na insegurança jurídica.
Para Gabriel Romitelli, coordenador de Implantação de Soluções Inovadoras no Impact Hub São Paulo, no âmbito do Programa IdeiaGov do Governo do Estado de São Paulo, viabilizar esses arranjos público-privados como fez Penedo demanda boas práticas dos gestores.
Entre elas estão: instituir uma equipe multissetorial e destacar servidores que ficarão responsáveis por realizar o processo; fazer um planejamento da contratação, com realização de estudos técnicos preliminares, pesquisa de mercado, realização de consultas ou audiências públicas para entender e especificar melhor a demanda; fazer um chamamento público para seleção de potenciais parceiros; no caso das encomendas tecnológicas é preciso aferir a existência concreta de risco tecnológico; ter uma justificativa bastante robusta e formalizada no processo administrativo para a contratação com determinada empresa em detrimento de outras; além de transparência e publicidade em todo o processo, salvo no caso de eventuais informações de natureza industrial, tecnológica ou comercial que devam ser mantidas sob sigilo.
“Trata-se de um arranjo público-privado ainda pouco explorado, mas que pode ter bom resultado para a promoção da inovação. É um instrumento que permite a conjunção de esforços entre os setores público e privado para desenvolvimento de produtos e processos inovadores”, afirma Romitelli.
As barreiras culturais para convencer os gestores públicos, ainda hoje acostumados com as burocracias da legislação de licitações (Lei 8.666/1993), a utilizar os mecanismos que permitem a inovação também desafiam a popularização do formato. Guilherme Dominguez, cofundador e diretor do Programa de Aceleração de Startups do BrazilLAB, avalia que esse cenário só vai mudar a partir de bons exemplos e de muita informação.
“É preciso criar bons cases, treinar gestores públicos para serem corajosos e fazer um forte trabalho de advocacy para mostrar para a sociedade civil que o caminho da Lei da Inovação era o melhor a ser seguido naquele momento. Temos que mudar a cultura de só ser possível contratação via Lei 8.666/1993 e introduzir as possibilidades da Lei 10.973/2004”, diz Dominguez.
A possibilidade de compartilhar a estrutura criada em Penedo para outros estados e municípios está no radar dos diretores da PGS Medical, segundo Wagner Marques, presidente da startup. Marques, entretanto, diz que há uma certa resistência dos gestores em relação à inovação, inclusive ao fato de o contrato ter sido feito via dispensa de licitação.
“Tudo que é novo as pessoas têm a tendência de bater ou de fugir. Nesse caso, basta entender, que a própria Lei 8.666/1993 permite esse tipo de contratação quando o produto é inovador. Dificilmente empresas de inovação têm chances na Lei de Licitações, mas agora é possível abrir espaço para que empresas que chegam com tecnologias inovadoras possam atuar no mercado brasileiro”, avalia Marques.
Neste quesito, Thiago Sombra, sócio área de tecnologia, inovação e negócios digitais do escritório Mattos Filho, avalia que se o produto de inovação tecnológica for de fato inovador é possível justificar juridicamente a dispensa da licitação.
“A dispensa, em um país como o Brasil, volta e meia vem relacionada pela pessoalidade. Mas o gestor pode justificar que precisa da solução tecnológica e que ela não está disponível para aquisição. Abre-se então um chamamento público e qualquer desenvolvedor pode se interessar em oferecer essa solução”, afirma.