O desenvolvimento do setor aéreo brasileiro é de notável singularidade no contexto legislativo brasileiro, não apenas porque o avião é uma invenção nacional — e mineira —, mas por ter sido um setor altamente regulado logo em seus primórdios. Exatamente por isso, e também por causa da necessidade de se adequar aos desafios do mercado internacional, o transporte aéreo no Brasil tem demandado a desconstrução de restrições à concorrência e à livre iniciativa desde a década de 1990. Apesar desse processo ter se iniciado há mais de 30 anos, o País ainda tem muito a avançar. Trata-se de um processo que não deve ser interrompido, sob a pena de se manter uma regulação anacrônica e ineficiente.
O contexto da regulação do setor aéreo surge após a Segunda Guerra Mundial, com o excedente de aeronaves não utilizadas na guerra remanejado para a aviação doméstica. Assim, o excesso de empresas aéreas em um ambiente desregulamentado causou a queda da qualidade na prestação dos serviços, concentração das atividades em rotas mais lucrativas, guerra tarifária e redução da taxa de ocupação de aeronaves.
No intuito de reverter esse cenário, iniciou-se no Brasil uma prática peculiar de “regulação por consenso” em que Estado e empresas aéreas se uniram para decidir as diretrizes do setor durante as chamadas Conferências Nacionais de Aviação Comercial – CONAC, que ocorreram em 1961, 1963 e 1968[1]. Dentre as diretrizes que dali surgiram destacam-se a proibição de concorrência entre companhias nacionais e regionais; a proibição de concorrência entre companhias regionais; a vedação de entrada de novas empresas em ambos os mercados e a vedação da transformação de uma empresa regional em nacional.
Ao contrário do Brasil, outros países conseguiram lidar com o excedente de aeronaves e companhias aéreas com mais rapidez, transformando o mercado aéreo ao adotar a desregulamentação. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse processo se iniciou na década de 1970, encabeçado pelo economista Alfred Kahn[2].
Ou seja, enquanto os Estados Unidos se preparavam para abrir o mercado aéreo, o Brasil ainda sentia a necessidade de limitá-lo, com controle estatal. Ao longo do tempo, a desregulamentação norte-americana resultou em passagens sensivelmente mais baratas, na expansão da malha aérea, com serviços prestados com maior frequência, e em progresso tecnológico contínuo das aeronaves e dos sistemas de reservas e vendas de passagens.
A pressão pela competitividade e produtividade do setor aéreo se verificou também em diversas outras partes do mundo, gerando reflexos no Brasil. Nesse sentido, na década de 1990, o país deu início a uma “Política de Flexibilização”, que previa a liberalização gradual do setor, o que ocorreu em três rodadas nos anos 1992, 1998 e 2001.
O período entre 1992 e 1998 foi marcado pela dissolução de monopólios regionais e pela remoção das bandas tarifárias. As medidas adotadas culminaram no primeiro grande surto de competitividade desde o início da regulamentação, permitindo que, em 1998, fossem observados fenômenos de “guerra de preços” e “corridas por frequência”.[3]
Na entrada do novo século, em 2001, o processo de desregulamentação foi intensificado a partir de um acordo entre o Departamento de Aviação Civil (DAC) e o Ministério da Fazenda que removeu grande parte dos mecanismos de controle estatal, notadamente aqueles relativos ao controle de reajustes de preços. Contudo, a concessão da liberdade tarifária para voos domésticos ocorreu por norma infralegal, gerando instabilidade na atuação das empresas diante da insegurança jurídica característica da espécie legislativa escolhida para essa iniciativa. Aliado a esse fato, ocorreram sucessivos períodos de instabilidade no câmbio e a crise do setor aéreo mundial após os atentados de 11 de setembro de 2001 e a Guerra do Golfo.
Todos esses fatos pavimentaram o caminho para uma nova regulamentação do setor a partir de 2003, principalmente por meio das Portarias nºs 243/CG5 e 731, que concederam ao DAC o papel de moderador para adequar a oferta de transporte aéreo à evolução da demanda. Esse controle se dava, entre outros métodos, pela exigência de estudos de viabilidade econômica prévia para pedidos de importação de novas aeronaves, atuação em novas linhas aéreas e entrada de novas companhias.
Após a crise nos primeiros anos do século XXI, em 2005 a desregulamentação do mercado aéreo voltou a ser pauta no Congresso Nacional com a aprovação da Lei nº 11.182, de 27 de setembro de 2005, que criou a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). A lei veio acompanhada de três aspectos fundamentais para o fomento da concorrência no transporte aéreo: liberdade tarifária estabelecida em lei (evitando a insegurança jurídica dos atos infralegais anteriores e ampliando a liberdade tarifária de modo irrestrito também para o segmento internacional); liberdade de oferta; e a instituição do papel da ANAC no sentido de coibir práticas anticoncorrenciais.
Ademais, a lei de criação da agência reguladora trouxe o impedimento legal para a reinstituição do regime de competição controlada. Atualmente, não é possível, sem nova intervenção legislativa, controlar descontos nas tarifas, impedir a entrada de empresas em qualquer mercado ou intervir no mercado por razões concorrenciais ou econômicas.
O resultado das políticas adotadas a partir de 2005 foi positivo. Conforme análise feita entre os anos 2000 e 2010, as tarifas praticadas pelas empresas aéreas tenderam à redução; o número de passageiros transportados em 2009 foi maior do que o dobro do observado em 2000; empresas aéreas entrantes obtiveram êxito em conquistar parcelas de mercado das empresas já estabelecidas e constatou-se que a estrutura de mercado estava, de fato, tornando-se menos concentrada[4].
Apesar do progresso animador, ainda restava, e ainda resta, um amplo espaço para melhorias. Na década de 2010 não tivemos grandes modificações normativas. Uma exceção positiva foi a Lei nº 13.842, de 17 de junho de 2019, que representou um grande avanço para a concorrência no setor ao liquidar as restrições à entrada de capital estrangeiro no transporte aéreo, o que já começou a despertar o interesse de diversas empresas, como Air Europa, Golf Air, Norwegian Air, e a britânica Virgin Atlantic, que chegou a estabelecer uma rota, mas desistiu de implementá-la devido aos impactos da pandemia.
O cenário de insegurança jurídica e as sucessivas crises políticas, econômicas e sociais da década de 2010 não colaboraram. No limiar de 2020, para piorar, a pandemia causada pela Covid-19 se impôs como mais um grave desafio. Em 2020, o setor aéreo global teve seu pior ano da história.
No Brasil, nunca houve uma crise tão profunda. Os números da Agência Nacional de Aviação Civil atestam o tamanho do revés: tanto a demanda como a oferta de voos apresentaram redução dramática de 48,7% e 47%, respectivamente.
Diante desse cenário caótico é essencial persistirmos no processo de desregulamentação do setor. O excessivo controle estatal não obteve êxito em aumentar e melhorar a malha aérea nem fornecer passagens de baixo custo para a população. A desregulamentação, paulatina – mas constante – e com a segurança jurídica necessária garantida, precisa ser encarada como uma oportunidade para atrair empresas e incentivar a competição, o que levará à melhoria dos serviços prestados e a preços justos e exequíveis.
Nesse contexto, medidas como o programa Voo Simples, lançado pela ANAC e pelo Ministério da Infraestrutura no final do ano passado, devem ser aplaudidas e incentivadas. O programa busca desburocratizar alguns processos e prevê, por exemplo, medidas diferenciadas de acordo com o tamanho da empresa de táxi-aéreo, para que novos operadores de pequeno porte entrem no mercado e prestem serviços à população a um custo mais baixo. Isso é positivo. Mas não podemos parar por aí. É por isso que a Medida Provisória anunciada no último mês pelo Governo para simplificar o setor tem sido tão aguardada, já que a expectativa é que ela diminua a burocracia e reduza custos administrativos para estimular esse setor tão importante. Tão logo ela seja encaminhada ao Congresso Nacional nossa obrigação será debatê-la e aperfeiçoá-la, em diálogo constante com os representantes do setor, dos usuários e de toda a sociedade. Tudo isso criará um ciclo virtuoso que ajudará a aquecer a própria economia e a criar mais oportunidades de negócios e renda no País que tanto precisa de alternativas para crescer e se desenvolver.
[1] GUARANYS, Marcelo Pacheco dos. Análise Jurídica da Política Regulatória de Transporte Aéreo no Brasil (2000-2010). Orientador: Prof. Marcus Faro de Castro. 2010. 138 f. Monografia (especialização) (Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília.) – UnB, Brasília, 2010. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9743/1/2010_MarceloPachecoGuaranys.pdf. Acesso em: 10 maio 2021.
[2] NISHIME, Mauro Jun. Efeitos da flexibilização da regulamentação sobre o mercado de transporte aéreo no Brasil. Orientador: Prof. Luiz Afonso dos Santos Senna. 1996. 101 p. Monografia (especialização) (Mestrado em engenharia. Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção- PPGEP) – UFRGS, Porto Alegre, 1996. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/159074/000210683.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 10 maio 2021.
[3] ZIMMERMANN, Nara; OLIVEIRA, Alessandro V. M. Liberalização econômica e universalização do acesso no transporte aéreo: é possível conciliar livre mercado com metas sociais e ainda evitar gargalos de infraestrutura. Journal of Transport Literature, Manaus, v. 6, ed. 4, p. 82-100, Outubro 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/jtl/v6n4/v6n4a05.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.
[4] GUARANYS. op. cit., p. 129.