Estúdio JOTA

O Brasil começa a se juntar à discussão global sobre como regulamentar as plataformas digitais. Há um projeto sobre o tema no Congresso (2768/2022) e, no início do ano, o Ministério da Fazenda abriu uma consulta pública para ouvir a sociedade sobre a proposta, que prevê uma regulação econômica e concorrencial do mercado digital.  
Os debates em torno da regulamentação já acontecem nos Estados Unidos (EUA), Reino Unido, Japão e na União Europeia, entre outros países. Inclusive, a proposta brasileira se inspira no Digital Markets Act (DMA) europeu, que entrou plenamente em vigor em março. Esse marco foi aprovado com o objetivo de coibir práticas anticoncorrenciais, diante do aumento da influência das big techs. 
O DMA definiu critérios quantitativos e qualitativos para determinar as plataformas digitais que são gatekeepers: empresas que oferecem ao menos um serviço central de plataforma, como redes sociais, ferramentas de busca, mensageria; com capitalização de mercado acima dos 75 bilhões de euros; e que atinjam pelo menos 45 milhões de usuários por mês na União Europeia.   
A questão é que alguns dos primeiros resultados da implementação dessa política tem se mostrado desastrosos para a inovação e o acesso a serviços melhores pelos consumidores, na avaliação do professor Christopher Yoo. Ele é diretor do Centro de Tecnologia, Inovação e Concorrência da Faculdade de Direito Carey da Universidade da Pensilvânia.
“Uma parte lamentável da abordagem europeia é que ela proíbe práticas experimentais antes mesmo de sabermos se serão boas ou ruins”, afirma o especialista em entrevista do JOTA, durante passagem pelo Brasil em agosto. “Além disso, a abordagem europeia aplica as mesmas regras a todas as plataformas digitais, independentemente do setor, seja no comércio eletrônico, pesquisa, redes sociais. Assumir que todos os mercados são iguais parece irrealista para mim”, resume. 
Ele recomenda que, antes de avançar com uma nova regulamentação, os legisladores brasileiros aguardem mais tempo para aprender com as experiências de outros países: “vejam como estão se saindo. Em pouco tempo, aprendemos muito sobre qual será provavelmente o impacto do DMA. O Brasil tem a oportunidade de esperar, ver como as coisas se desenrolam e aprender com os exemplos”. 
<blockquote class="jota-article__quote">“Uma parte lamentável da abordagem europeia é que ela proíbe práticas experimentais antes mesmo de sabermos se serão boas ou ruins”
<footer class="jota-article__quote-cite">Christopher Yoo, diretor do Centro de Tecnologia, Inovação e Concorrência da Faculdade de Direito Carey da Universidade da Pensilvânia</footer>
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Mais da entrevista a seguir:
JOTA: Como você avalia o panorama atual da regulação das plataformas digitais nos Estados Unidos e na União Europeia? E como ele se reflete em outros países? 
Christopher Yoo: De um modo mais geral, muitos outros países consideraram e rejeitaram a ideia de seguir o modelo da União Europeia. O Reino Unido adotou uma abordagem muito diferente, baseada em códigos de conduta firmes para indivíduos. A Alemanha adotou uma outra abordagem, que permanece dentro do paradigma tradicional da lei de concorrência, com algumas pequenas mudanças nas presunções de ônus da prova.
O Japão rejeitou um estatuto amplo semelhante ao DMA. Ao invés de aprovar uma legislação para todas as plataformas, concentrou-se apenas em um, que são os sistemas operacionais móveis. A Coreia do Sul também rejeitou. Há ainda considerações na Austrália, Índia e Tailândia, e parece improvável que qualquer um desses países siga o exemplo da União Europeia.
Os Estados Unidos consideraram seriamente pôr em prática uma legislação com uma regulamentação mais forte das plataformas digitais no último Congresso, mas a lei não foi aprovada. Muitos congressistas tinham sérias objeções a essa legislação. Nesse ponto, o consenso geral é que a legislação está quase morta e é quase certo que não será aprovada. Por isso, por lá, é provável que continuemos com a aplicação tradicional das leis antitruste existentes como meio de regular os mercados digitais.
A DMA designou as big techs como gatekeepers, responsáveis ​​por serviços críticos no ecossistema digital. Como avalia o efeito desta designação na competitividade e inovação nos mercados digitais?
A designação de mercado do DMA tem sido relativamente vaga, especialmente porque as plataformas supostamente poderiam contestá-la, mas os critérios para essa contestação são pouco claros. O problema é que os europeus estão começando a tomar medidas coercitivas sob o DMA contra as plataformas, mas em circunstâncias que não são muito claras. 
Normalmente, se o governo está preocupado com o fato de uma empresa estar violando a lei, a empresa perguntaria o que está fazendo de errado, e o governo indicaria qual conduta é problemática.
Sob o DMA, o governo não informa o que está sendo feito de errado. Ele faz as plataformas proporem soluções e, então, o governo decide se as propostas satisfazem a obrigação. O problema é que ainda não temos uma orientação clara sobre o que a lei realmente exige, o que vem causando problemas.
Outra realidade é que regulamentar as plataformas de forma mais estrita pode fazer com que as empresas desviem o seu foco para outros países onde a regulamentação é menos rigorosa. A preocupação é que uma das consequências potenciais do DMA é que a UE só obtenha tecnologia obsoleta, pois deixará de ser rentável para as empresas implementarem novas versões e inovações na região. Já estamos observando algumas evidências disso.
<blockquote class="jota-article__quote">"Sob o DMA, o governo faz as plataformas proporem soluções e, então, o governo decide se as propostas satisfazem a obrigação. O problema é que ainda não temos uma orientação clara sobre o que a lei realmente exige, o que está causando problemas"</blockquote>
Quais tendências e efeitos práticos estão surgindo na regulamentação ex ante (isto é, com regras que se adiantam aos problemas concretos), como o DMA? E como poderiam influenciar países como o Brasil?
O DMA entrou em vigor há alguns meses, portanto, estamos começando a ver os primeiros retornos. Do ponto de vista europeu, houve alguns desenvolvimentos realmente infelizes. Primeiro, muitos varejistas locais, incluindo companhias aéreas e donos de hoteis, estão reclamando que o DMA está prejudicando seus negócios. Por exemplo, nos hoteis, as visitas aos sites diretos caíram 30% e as reservas caíram 36%. 
Além disso, estamos vendo o Google, por exemplo, ter que reverter certas inovações porque não consegue fazer com que cumpram os requisitos de interoperabilidade e evitar o self-preferencing [quando uma plataforma dá preferência aos próprios produtos em detrimento dos concorrentes]. 
Por exemplo, quando você pesquisa um hotel, nos Estados Unidos ou no Brasil, o Google exibirá uma página com um mapa de onde esses hotéis estão localizados, permitindo que você especifique as datas da sua reserva, o número de quartos e outros detalhes. A única maneira de o Google fazer isso é integrando o Google Maps ao seu site de viagens. 
E, porque isso viola o princípio da não self-preferencing na Europa, o Google teve que remover essas funções. Parece o Google que existia há 20 anos, quando você só recebia resultados simples.
Portanto, as tendências que estou vendo no momento são que muitos outros países estão preferindo esperar para ver o que acontece na União Europeia. Muitos deles expressaram sérias preocupações sobre algumas tendências iniciais que estamos observando como resultado do DMA.
<blockquote class="jota-article__quote">"A preocupação é que uma das consequências potenciais do DMA é que a UE só obtenha tecnologia obsoleta, pois deixará de ser rentável para as empresas implementarem novas versões e inovações na região"</blockquote>
Que tipo de impacto uma regulamentação como essa pode ter na inovação e na competitividade?
A regulamentação ex ante funciona como um imposto. Então, o problema com a regulamentação ex ante é que ela torna a inovação mais cara. Algumas pessoas que poderiam se tornar empreendedores e abrir novos negócios, optam por não fazê-lo. Nesse ponto, a decisão sobre o custo versus potenciais benefícios pode não justificar mais a tentativa.  
A outra parte do problema que vejo na regulação ex ante é que ela cria regras antecipadas e pode impedir que as pessoas experimentem novas abordagens, que diferem do que aconteceu no passado, porque essas abordagens entram em conflito com as regras. 
Citando Angela Merkel, ex-primeira-ministra da Alemanha, que costumava dizer que a diferença entre a abordagem europeia à inovação e a dos Estados Unidos é que, na Europa, tudo o que não é permitido é proibido, enquanto nos EUA tudo o que não é proibido é permitido. 
Uma parte lamentável da abordagem europeia é que ela proíbe práticas experimentais antes mesmo de sabermos se serão boas ou ruins. Em sistemas como dos Estados Unidos, é necessário ter alguma forma de fiscalização da concorrência, de modo que, se algo se revelar problemático, o governo pode intervir para proteger os consumidores. 
Permitir que as pessoas experimentem sem ter que pedir permissão, e confiar na regulamentação caso se revele prejudicial é muito mais propício à inovação do que exigir que eles cumpram um elaborado conjunto de regras ex ante.
Com base na sua experiência, que recomendações você ofereceria aos legisladores brasileiros que estão elaborando novas políticas para os mercados digitais? 
Primeiro, a história nos dá insights sobre quando a regulamentação ex ante é a ferramenta certa e quando é melhor esperar e observar. A literatura nos diz que a regulamentação ex ante funciona melhor quando você tem muita experiência na aplicação de uma prática, que é relativamente homogênea e simples de entender, e quando o ambiente ao seu redor não está mudando muito rapidamente.
Infelizmente, a realidade é que as plataformas não se enquadram nesta definição. Portanto, aconselharia examinar as justificativas para a regulamentação ex ante e fazer a sua própria avaliação sobre se essa é uma boa ideia.
Uma segunda recomendação é que reserve um tempo para aprender com a experiência do DMA no Reino Unido, na Alemanha e em outros países que adotaram abordagens diferentes. Veja como estão se saindo. Em pouco tempo, aprendemos muito sobre qual será provavelmente o impacto do DMA. O Brasil tem a oportunidade de esperar e ver como as coisas se desenrolam e aprender com os exemplos dados por outros países
No contexto do projeto de lei American Innovation and Choice Online Act (AICOA), como você avalia o impacto potencial da proibição do self-preferencing e quão eficaz você considera essa regra na prática?
Neste ponto, é extremamente improvável que o Congresso aprove a AICOA. No ano passado, no último Congresso, havia mais chances de aprovação, mas houve uma forte oposição dentro da delegação da Califórnia e o líder da maioria no Senado nunca colocou isso em votação porque sabia que não tinha os votos suficientes. A pequena probabilidade que existia naquele momento caiu muito, porque a Câmara foi assumida pelos republicanos, que não têm interesse em aprovar essa lei.
Em termos gerais, a proibição de self-preferencing pode realmente prejudicar os consumidores. Um exemplo é o das baterias. Atualmente, se você pesquisar baterias na Amazon, haverá um anúncio de sua própria marca própria de bateria, a Amazon Basics. A senadora Elizabeth Warren, quando falava em apoio à AICOA, deu a self-preferencing da Amazon por suas próprias baterias como um excelente exemplo do tipo de conduta que ela queria impedir.
As baterias são um dos mercados menos competitivos nos EUA e têm alguns dos preços mais altos. São controladas por duas empresas, Duracell e Eveready, que têm, essencialmente, um duopólio sobre este mercado e cobram alguns dos preços mais altos em relação ao custo de qualquer segmento da economia do país. 
Um colega ressaltou que anunciar baterias de marca própria na Amazon é muito bom para os consumidores, pois os encoraja a pagar menos pelas baterias. Ele argumenta que este é exatamente o tipo de comportamento que é bom para os consumidores. Infelizmente, é exatamente o tipo de comportamento que seria proibido pela proibição de self-preferencing da AICOA. 
Dado que a proposta brasileira se inspira na legislação da União Europeia, o que deve ser levado em consideração para garantir que uma eventual lei se ajuste às especificidades do mercado brasileiro?
O mercado brasileiro é muito diferente de outros mercados globais. Por exemplo, a Amazon não é o player dominante no comércio eletrônico, como é em outros países. Portanto, é essencial adaptar essa regulação às condições específicas do mercado brasileiro.
Um dos maiores problemas da abordagem europeia é o seu foco na dimensão das empresas, em vez de se concentrar no impacto dessas empresas nos mercados e nos consumidores. Aprendemos ao longo de 60 anos que focar apenas na estrutura do mercado pode ser prejudicial para a inovação e para os consumidores.
Em muitos casos, as companhias se tornam grandes porque foram extremamente inovadoras ou bem-sucedidas na competição baseada nos méritos. O problema da abordagem europeia é que ela não avalia se o crescimento das empresas se deu por boas ou más práticas, mas simplesmente por serem grandes, independentemente de como chegaram a esse tamanho. 
Adotar uma abordagem mais sutil, que considere se tamanho é resultado de comportamentos bons ou ruins seria benéfico para o Brasil.
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Além disso, a abordagem europeia aplica as mesmas regras a todas as plataformas digitais, independentemente do setor, seja no comércio eletrônico, pesquisa, redes sociais, etc. Assumir que todos os mercados são iguais parece irrealista para mim.
Uma análise mais matizada, que considera não apenas a dimensão, mas também os efeitos sobre os consumidores, ajudaria o Brasil a adotar uma abordagem mais convencional, colocando os consumidores no centro da política, em vez de se concentrarem nos concorrentes e na capacidade de entrar no mercado. 
Com base na sua análise das tendências atuais e futuras, como prevê a evolução das regulamentações do mercado digital nos próximos anos? O que o Brasil deveria considerar para se preparar para essas mudanças?
Penso que, neste momento, parece improvável que algum país siga o exemplo da UE.  Minhas conversas com pessoas na América Latina e na Ásia sugerem que eles estão bastante céticos em relação à abordagem do DMA e estão experimentando soluções diferentes, que fornecerão modelos diversos, cujo resultado deve ser considerado para a decisão.
Os países deveriam focar na inovação e pensar sobre que tipo de ambiente será propício para garantir que a sociedade desfrute de todos os benefícios das novas tecnologias. Vivemos em uma época de grandes oportunidades, e os formuladores de políticas devem ter cuidado para não se concentrar apenas nas desvantagens potenciais dessas tecnologias. 
Eles também devem se certificar de que pesam esses riscos em relação às potenciais vantagens, em melhoria na produtividade, no crescimento econômico e nas novas tecnologias.

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