Após anos de pesquisas, estudos e debates envolvendo frentes variadas da sociedade brasileira, em 20 de dezembro de 2023 o Congresso Nacional promulgou a EC 132/23, alterando significativamente o Sistema Tributário Nacional no tocante à tributação sobre o consumo (reforma tributária).
A EC 132 foi baseada no modelo denominado IVA Dual, substituindo o ICMS e o ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), e substituindo os tributos IPI, PIS e Cofins pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), ambos os novos tributos com incidência não cumulativa. É, sem dúvidas, um marco de transformação do sistema tributário brasileiro sobre o consumo.
Como sabemos, a Constituição não cria tributos, mas sim competências tributárias. Assim, a partir da promulgação da EC 132, a efetiva implementação da reforma tributária depende da edição de leis complementares que criem os tributos em comento, e disciplinem os seus aspectos fundamentais.
Nesse sentido, o Ministério da Fazenda instituiu, por meio da Portaria MF 34/24, grupos técnicos[1] (GT) com escopos específicos, voltados a subsidiar a elaboração dos anteprojetos de lei para regulamentação e administração do IBS e da CBS.
Vale notar que, de acordo com a EC 132, CBS e IBS terão os mesmos fatos geradores e as mesmas regras fundamentais, tais como regras de tomada de crédito, de benefícios fiscais e regimes fiscais específicos. Essa identidade busca a simplificação do sistema tributário, em comparação ao sistema hoje existente.
Ora, se CBS e IBS serão idênticos em relação às principais regras, a formatação das regras de solução de controvérsias no âmbito administrativo deve levar em conta essa identidade.
Neste contexto, este artigo busca trazer breves considerações sobre as sugestões para o contencioso administrativo de CBS e IBS, considerando as premissas de identidade de tributos, simplificação, segurança jurídica e melhoria do ambiente de negócios.
Apesar das diretrizes emanadas da EC 132 irem no sentido de simplificação da legislação tributária, com uniformização das regras de IBS e CBS, é inevitável que haja dissonâncias entre administrações tributárias (fiscos) e contribuintes e, portanto, é essencial estruturar a forma de solução dessas divergências, solução esta que deve levar em conta os princípios da reforma tributária, a redução da litigiosidade hoje existente, a segurança jurídica para fiscos e contribuintes, e a celeridade na resposta para as discussões.
A busca pela segurança jurídica, simplicidade e celeridade não beneficia apenas as empresas, mas reverbera positivamente em toda a sociedade. Ao melhorar o ambiente de negócios, esse novo modelo favorece a geração de mais empregos e renda, impulsionando o crescimento econômico e, consequentemente, ampliando a arrecadação tributária.
Buscando contribuir com os debates para a formatação de novas regras jurídicas, o projeto Mulheres no Tributário assumiu a coordenação de alguns grupos de estudo (GT) da normatização da CBS e do IBS criados pela Frente Parlamentar de Empreendedorismo (FPE) e pelo Instituto Unidos Brasil (IUB).
Dentre esses grupos, há o núcleo de estudos voltado à reforma do contencioso administrativo (GT 12), reunindo profissionais com grande experiência na matéria para debater e formular proposições para o desenvolvimento de novo sistema processual administrativo, em linha com os objetivos da reforma tributária sobre o consumo.
Para o estabelecimento do novo modelo, o primeiro ponto a se considerar é o aproveitamento de boas experiências ou propostas. Nesse sentido, as soluções para o contencioso administrativo de IBS e CBS passam por observar o PLP 124/2022, redigido por grupo de eminentes juristas, sob a coordenação da ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Esse PLP visa uniformizar o processo administrativo em todas as esferas e para todos os tributos – federais, estaduais ou municipais –, promovendo alterações no Código Tributário Nacional. Assim, as soluções para o contencioso administrativo de IBS e CBS devem estar alinhadas aos ditames desse PLP que, apesar de ainda não aprovado pelo Congresso Nacional, contém diretrizes fundamentais para a organização do contencioso administrativo tributário.
Além do PLP 124, ainda há que se considerar, na construção de um modelo de contencioso administrativo de IBS e CBS, as melhores práticas dos tribunais administrativos hoje existentes em níveis federal, estaduais e municipais.
O segundo ponto a se considerar para estabelecer o novo modelo de contencioso tributário é que, pela primeira vez, teremos no sistema tributário, tributos de competência de diferentes entes federativos que têm exatamente o mesmo fato gerador. Uma transação sujeita ao IBS também estará sujeita à CBS e vice-versa.
O terceiro ponto a se considerar é ter “portas” que permita a solução da controvérsia antes que se torne, efetivamente, um litígio, em linha com o que os fiscos e Procuradorias de diferentes entes federativos vêm buscando por meio de leis que permitam a transação.
O quarto ponto é que a EC 132 não traz um formato pré-determinado de contencioso administrativo, apenas estabelece que o Comitê Gestor irá decidir sobre o assunto, e que poderá haver a integração entre os contenciosos de IBS e CBS.
Considerando esses pontos, passamos a trazer um brevíssimo resumo da proposta do projeto Mulheres no Tributário, de modelo de contencioso administrativo para IBS e CBS.
Em linha com a segurança jurídica, simplicidade, celeridade e transparência, como se trata de tributos “gêmeos idênticos”, apenas de níveis federativos diferentes, o ideal é que a discussão administrativa seja centralizada em um único tribunal, ao qual propomos o nome de Conselho Nacional Administrativo Tributário (CNAT).
O CNAT teria competência para julgar todos os processos administrativos envolvendo CBS e IBS, objetivando uniformizar a interpretação da legislação tributária desses tributos em todo o território nacional. Desse modo, os Fiscos e os contribuintes estariam decidindo suas diferenças em uma única jurisdição nacional, ao invés de ter os casos submetidos a tribunais de diferentes entes federativos.
A criação do CNAT não implicaria a extinção dos tribunais administrativos existentes, que permaneceriam com a competência para julgar os casos dos tributos atuais sobre o consumo, e dos outros tributos que não serão extintos em função da Reforma Tributária.
A estrutura básica do CNAT seria estabelecida em Lei Complementar que tratará do Comitê Gestor (composição das turmas, tipos de recursos cabíveis e prazos), e o detalhamento quanto ao funcionamento do CNAT caberá ao Regimento Interno. Em se tratando de processo administrativo, caso a decisão final seja desfavorável ao contribuinte, estaria mantida a possibilidade de revisão pelo Judiciário.
Quanto à forma de solução de controvérsias, nossa proposta envolve quatro etapas, buscando resolver as disputas de maneira mais ágil e eficaz. Essas etapas seriam as seguintes:
- fase pré-contenciosa, podendo ser inclusive antes de autuação fiscal: Mediação e tentativa de transação, com suspensão de prazo para impugnação. Esta primeira etapa do processo visa a solução amigável entre as partes, representando uma mudança cultural significativa, incentivando a resolução de conflitos de forma menos litigiosa. Vale destacar que, em outros países, há experiências exitosas do uso de mediação para evitar que a divergência se torne efetivamente um litígio, como é o caso dos Estados Unidos, onde uma boa parte das autuações são resolvidas em mediação. Os mediadores seriam pessoas independentes, que buscariam avaliar a situação e as razões de cada parte, e que buscariam um acordo entre as partes;
- 1ª instância administrativa: não havendo acordo, o auto de infração seria submetido à revisão por turma composta por auditores fiscais federais, estaduais e municipais especialmente dedicados à atividade de julgamento e licenciados da atividade de fiscalização;
- 2ª instância administrativa (Turmas Ordinárias do CNAT): Na 2ª instância, as Turmas seriam compostas por julgadores independentes – sem vinculação aos fiscos ou aos contribuintes –, em número ímpar, divididos por matéria e não por tributo, e selecionados a partir de processo rigoroso de seleção (prova técnica, avaliação de currículo, avaliação por banca de admissão), com mandatos pré-determinados; e
- 3ª instância administrativa (Câmara de Uniformização do CNAT): a 3ª instância serviria para dirimir divergências entre as Turmas Ordinárias do CNAT, e as decisões da CDU, tomadas por maioria qualificada, teriam efeito vinculante às Administrações Tributárias, trazendo maior segurança jurídica para fiscos e contribuintes que, independentemente de a decisão ser favorável para um ou para outro, terão clareza quanto às interpretações da legislação de IBS e CBS.
Qualquer que seja o novo modelo de contencioso administrativo para IBS e CBS, este será pilar fundamental para consolidar os ganhos da reforma tributária, proporcionando um ambiente mais justo e eficiente para a resolução de disputas fiscais no Brasil.
É nesse sentido que apresentamos as linhas mestras do CNAT, sendo certo que os desafios inerentes à sua implementação serão superados pelos benefícios de se criar um sistema de solução de controvérsias tributárias mais justo, simples, transparente e cooperativo, em linha com os novos princípios albergados pela EC 132.[2]
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Este artigo é parte de uma série de sete textos, do projeto Mulheres no Tributário, referente aos grupos de trabalho da reforma tributária
[1] GT 1 – importação e regimes aduaneiros especiais; GT 2 – imunidades; GT 3 – regime específico de serviços financeiros; GT 4 – regime específico de operações com bens imóveis; GT 5 – regime específico de combustíveis e biocombustíveis; GT 6 – demais regimes específicos; GT 7 – operações com bens e serviços submetidos a alíquota reduzida; GT 8 – reequilíbrio de contratos de longo prazo; GT 9 – transição para o IBS e a CBS, inclusive critérios para a fixação das alíquotas de referência e ressarcimento de saldos credores dos tributos atuais; GT 10 – tratamento tributário da Zona Franca de Manaus e das áreas de livre comércio; GT 11 – coordenação da fiscalização do IBS e da CBS; GT 12 – contencioso administrativo do IBS e da CBS; GT 13 – cesta básica e devolução do IBS e da CBS a pessoas físicas (cashback); GT 14 – modelo operacional de administração do IBS e da CBS; GT 15 – coordenação da regulamentação e da interpretação da legislação do IBS e da CBS; GT 16 – regulamentação da distribuição dos recursos do IBS, inclusive durante o período de transição; GT 17 – regulamentação do fundo de sustentabilidade e diversificação do estado do Amazonas e do fundo de desenvolvimento sustentável dos estados da Amazônia Ocidental e do Amapá; GT 18 – regulamentação do comitê gestor do IBS; GT 19 – regulamentação do Imposto Seletivo (IS).
[2] Art. 145. (…) § 3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)