Daquelas associações estranhas que o cérebro faz: enquanto lia jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), eis que me veio à cabeça Jane Austen — daí a referência óbvia no título do artigo. O gatilho foi o acórdão 1.093, de 2021, resultante de uma tomada de contas julgada pelo Plenário que analisava a contratação de materiais, equipamentos e serviços pela Petrobras. Ok: até aqui, nada que justifique a remissão a romances oitocentistas. Um pouco de paciência.
A unidade técnica do tribunal suspeitou haver sobrepreço na contratação. A origem estaria na utilização de valor de referência supostamente inadequado para julgar as propostas recebidas por meio de licitação, que teria até mesmo levado à injusta desclassificação de uma licitante. Pelos cálculos da unidade técnica, o valor de referência estaria inflacionado.
Em manifestações sucessivas, a Petrobras apresentou documentos para justificar tecnicamente a referência adotada. Conseguiu, inclusive, que a unidade técnica reconhecesse a inadequação do método de cálculo por ela utilizado. A surpresa foi que, diante disso, a unidade técnica sugeriu cálculo alternativo e concluiu pela existência de sobrepreço tomando por base o valor da proposta da empresa desclassificada. Recomendou então que fossem condenados em débito, de forma solidária, a empresa contratada, os responsáveis pela elaboração do orçamento base da Petrobras, os integrantes da comissão de licitação e o representante da estatal que assinou o contrato.
Entra Jane.
Após demonstrações da inadequação do método utilizado pela unidade técnica e a surpreendente mudança ao final para que se pudesse, de uma forma ou outra, apontar alguma irregularidade, fiquei me questionando se não estaria diante de um controle por sensibilidade, movido por intuição.
A impressão é de que, considerando que outras contratações da Petrobras, contemporâneas à analisada, foram alvo da Operação Lava Jato, haveria uma expectativa de que irregularidades fossem encontradas.
Embora “Persuasão” seja a obra de Austen que talvez melhor descreva a relação entre ministros e unidades técnicas do tribunal — uma vez que os ministros, grande parte das vezes, tendem a seguir as propostas de encaminhamento das unidades técnicas — dessa vez foi diferente.
Prevaleceu um controle por razão. Em voto seguido por unanimidade, o relator afirmou que não era possível concluir com segurança se haveria, e qual seria, o prejuízo na contratação. Também, que o débito apontado pela unidade técnica não atenderia ao art. 210, §1º, II, do Regimento Interno do TCU, que limita a estimativa do dano a quantia que seja inferior ao real valor devido. Por fim, que a adoção da proposta de outra licitante como referencial não seria adequada, especialmente quando não há certeza sobre a exequibilidade dessa proposta. Por essas razões, entendeu regular a contratação.
O caso joga luz a questão relevante. Precisamos estar atentos à adequação dos parâmetros utilizados para controle da administração — assim como a administração erra, o controlador também pode errar. Fosse um desfecho diferente, parâmetros inadequados poderiam ter imposto consequências graves aos envolvidos. Se no romance de Austen é divertido ver o contraste entre duas irmãs, uma mais emotiva, outra mais racional, no controle público, a emoção é dispensável e a racionalidade (e a legalidade) deve predominar — ainda que a pluralidade de ideias seja desejável.
E, para a vida além do jurídico, o caso serve de pretexto para indicação de um ótimo livro, que ganhou versão cinematográfica oscarizada bem legal em 1995.