Adriana Moura Mattos da Silva
Advogada, mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGV/SP.
As migrações sempre fizeram parte da dinâmica social da humanidade, sendo também um subproduto dos processos de transformação e de desenvolvimento desta. Migrar é um fenômeno extremamente complexo com uma multi-causalidade intrínseca em sua essência.
Apesar de o fenômeno não ser recente, o estudo do tema é extremamente atual, não apenas pelo fato de a humanidade se encontrar atualmente em seu estágio de globalização mais profundo, como também pelo aumento dos fluxos migratórios na última década, os quais têm gerado um recrudescimento do debate político e jurídico sobre tal questão.
Migrações ocorrem por uma série de razões, tais como busca de melhor qualidade de vida, novas experiências ou sobrevivência, e podem também ser motivadas por fenômenos causados pelas mudanças climáticas. Desastres naturais como causas de migrações não são fenômenos inéditos.
Do terremoto de Aleppo em 1138 até as agudas secas do sertão nordestino brasileiro no século XX, desastres ambientais sempre geraram grandes deslocamentos. No entanto, o aumento da temperatura média do planeta causada pela ação do homem fez com que tais fenômenos e desastres passassem a ocorrer com maior frequência e intensidade nunca vistas[1].
Apenas em 2020, Estados Unidos e Austrália tiveram números recorde de incêndios, o que gerou deslocamentos de populações locais inteiras. Neste mesmo ano, o Pantanal brasileiro se viu em chamas e, em que pese fatores relacionados à negligência e ao sucateamento de órgãos de controle ambiental, o motivo de tais incêndios também está ligado à ocorrência de uma seca sem precedentes.
Nesse cenário de aumento exponencial de riscos, agravados ainda pela Covid-19, as migrações se tornam instrumentos de adaptação e sobrevivência[2], ressaltando o nível de vulnerabilidade das populações afetadas. Segundo Veyret (2019), a vulnerabilidade ambiental se verifica quando condições estabelecidas por fatores físicos, sociais, econômicos e ambientais intensificam a suscetibilidade dos sujeitos aos impactos dos riscos ambientais e climáticos.
Desse modo, uma vez que se torna impossível evitar de forma completa tais eventos, seja do ponto de vista do perigo ambiental (como, por exemplo, as chuvas torrenciais), seja do ponto de vista da capacidade das pessoas para resistir a essa ameaça ambiental extrema, fica evidente que a vulnerabilidade é o ponto chave para desencadear os graves impactos socioambientais relacionados aos desastres ambientais. Assim, diminuir a fragilidade das populações diante dos impactos causados torna-se o principal instrumento de redução de riscos.
O desenvolvimento sustentável pode mitigar a vulnerabilidade pelo deslocamento climático
Aprovada em 2015, a Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável[3] traz uma perspectiva multidisciplinar. Contém rol de 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (os “ODS”), divididos em 169 metas, todas concebidas a partir de uma perspectiva de colaboração interssetorial e transversal voluntária entre Estado, iniciativa privada e sociedade civil organizada, em vez de adoção de compromissos legalmente vinculantes para o cumprimento no nível dos governos, como é o caso de tratados e convenções internacionais.
A referência central à migração consta no ODS 10 – Redução das Desigualdades –, mais especificamente na meta 10.7, que visa “facilitar a migração e a mobilidade ordenada, segura, regular e responsável de pessoas, inclusive por meio da implementação de políticas de migração planejadas e bem geridas”.
Nesse sentido, é clara a agenda de formação de políticas públicas para migrantes e de política migratória abrangente, inclusiva e planejada.
Em relação ao clima, os ODS trazem compromissos que visam mitigar os efeitos das mudanças climáticas que, além de afetarem diretamente os direitos à vida, integridade, saúde e moradia, acarretam efeitos drásticos à subsistência, tais como insegurança alimentar e escassez de água potável, tornando-se fatores expulsores de população ao redor do mundo.
São exemplos disso os ODS 13 (Ação contra a mudança global do clima), ODS 14 (Vida na água) e ODS 15 (Vida terrestre). A abordagem presente nesses ODS, e de forma complementar também em outros[4], busca tornar a sociedade mais resiliente aos efeitos das mudanças climáticas, e construir soluções que garantam a possibilidade de pleno desenvolvimento dos indivíduos em seus territórios de escolha.
Assim, nota-se que os ODS são interdependentes e que partem de uma agenda global pela promoção de uma vida digna a todos, bem como que sua implementação depende do enfrentamento dos desafios específicos de cada região, sendo uma ferramenta de adaptação climática.
Desenvolvimento Sustentável, ODS e migrações climáticas no Brasil
No Brasil, a internalização e fomento de tais metas globais era realizada pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável (CNODS), criada pelo Decreto nº 8.892/2016. Durante seus quase três anos de funcionamento, a CNODS publicou boletins, relatórios de atividades e criou indicadores de cumprimento das metas, além de promover a articulação dos ODS entre os demais entes federativos e o setor privado.
No entanto, com a edição do Decreto nº 10.179/2019, a Comissão foi extinta e, atualmente, a temática dos ODS em âmbito federal cabe à Secretaria Especial de Articulação Social, subordinada à Secretaria de Governo da Presidência da República (Decreto nº 9.980/2019, Anexo I, artigo 15, VI).
Reportando dificuldades em obter informações acerca do monitoramento dos ODS pelo Governo brasileiro[5], em 2020 o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030[6] publicou o IV Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030[7] e apresentou o status de 145 das 169 metas acordadas em 2015.
Apenas 4 metas tiveram progresso satisfatório, enquanto 60 delas tiveram retrocesso no cumprimento, 26 estão ameaçadas, 32 estão estagnadas e 23 com cumprimento insuficiente, segundo o Grupo de Trabalho.
Todas as metas monitoradas relacionadas com o ODS 13 (ação contra a mudança global do clima) retrocederam, revelando que a crise climática não é uma pauta prioritária para o atual governo.
Segundo referido relatório, contribuíram para esse retrocesso alguns eventos e ações ou omissões relacionadas ao governo, como por exemplo: (i) o crescimento das taxas de desmatamento na Amazônia e no Cerrado; (ii) a desmobilização de arranjos institucionais responsáveis pela implementação da Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC) – como foi o caso da Secretaria de Mudança do Clima e Florestas, que perdeu servidores e foi esvaziada ao ser destituída do Departamento de Políticas de Combate ao Desmatamento e das funções relativas à mudança do clima; e (c) a mudança de regras e acusações do governo em relação ao Fundo Amazônia – levando as principais doadoras, Alemanha e Noruega, a suspender os aportes financeiros, após a tentativa do Ministério do Meio Ambiente de mudar as regras de funcionamento do Fundo e excluir a participação das organizações da sociedade civil, além de acusar, sem comprovação, os projetos financiados de irregularidades.
As ações federais de prevenção de risco de desastres (meta 13.1) também recuaram: o orçamento com o tema em 2019 foi o menor em 11 anos (R$ 306,2 milhões), com apenas um terço dele efetivamente executado. A implantação de cidades sustentáveis (ODS 11) também caminha a lentos passos, com investimentos insuficientes em saneamento básico, mobilidade, urbanização de favelas e criação de habitação social.
Há retrocesso também no atendimento aos ODS em outras áreas-chave para compreensão integral dos desafios das migrações climáticas. Houve o aumento da pobreza estrutural, da insegurança alimentar e das desigualdades no país, fomentados pelas políticas de austeridade trazidas pela Emenda Constitucional nº 95/2016 (Teto dos Gastos Públicos), pelas reformas trabalhista e previdenciária, pela crise econômica e pela diminuição nos programas de assistência social e combate à fome – o que se reflete na falta de atingimento de quase todas as metas dos ODS 1 (erradicação da pobreza) e 2 (fome zero e agricultura sustentável).
A ausência de um acompanhamento e de um fomento ao cumprimento das metas estabelecidas na Agenda 2030 pelo governo brasileiro afeta toda a agenda de adaptação climática no Brasil. Isso se manifesta de forma ainda mais grave em relação aos migrantes climáticos que existem hoje e que deverão se multiplicar nos próximos tempos.
Não apenas o Estado não garante proteção jurídica específica para os migrantes climáticos, como também negligencia o enfrentamento de fatores de vulnerabilidade como pobreza, insegurança alimentar, déficit habitacional, desastres ambientais, o que contribui para o agravamento dessa crise climática e assim para mais deslocamentos forçados pelo clima no território brasileiro.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
Referências
SCOTT, Matthew. Climate Change, Disasters, and the Refugee Convention. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. (Cambridge Asylum and Migration Studies).
FERNANDES, Elizabeth Alves. Movimentos desiguais reflexões sobre a proteção internacional das pessoas forçadas a se deslocar por causas ambientais agravadas pelas mudanças climáticas. (Tese de Doutorado). Faculdade de Direito Universidade de São Paulo – USP. São Paulo. 2013
HAAS, Hein de. Migration theory: Quo vadis? IMI Working Paper No. 100 / DEMIG Project Paper No. 24. Oxford: International Migration Institute, 2014. Disponível em: <https://heindehaas.files.wordpress.com/2015/05/de-haas-2014-imi-wp100-migration-theory-quo-vadis.pdf>. Acesso em: 08 de setembro de 2020.
VEYRET, Yvette (Org). Os riscos: o homem como agressor e vítima do meio ambiente. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2019. 319 p.
Notas
[1] Segundo o último Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change, IPCC, 2015),
[2] A migração por motivos climáticos enquadra-se no conceito de migração forçada, ou seja, deslocamento que ocorre em função de circunstância alheia à vontade daquele que se desloca.
[3] Entendido como aquele capaz de promover o equilíbrio entre os objetivos de desenvolvimento econômico-social e a conservação ambiental, suprindo as necessidades da geração atual sem colocar em risco a capacidade de atender as gerações futuras. Ver: <http://www.agenda2030.com.br/>. Acesso em 24 de outubro de 2020.
[4] Como o ODS 2, Fome zero e agricultura sustentável, o ODS 3, Saúde e Bem Estar, o ODS 6, Água e saneamento básico e até mesmo o ODS 11, Cidades e Comunidades Sustentáveis.
[5] Note-se que o Veto Presidencial nº 61/2019, mantido pelo Congresso, não permitiu a inclusão como uma diretriz do PPA a persecução das metas dos ODS, por considerar os objetivos firmados em 2015 de natureza “recomendatória”. Para mais informações, ver: <https://gtagenda2030.org.br/2020/03/05/gt-agenda-2030-divulga-nota-de-preocupacao-sobre-veto-presidencial-aos-ods-no-ppa-2020-2023/>. Acesso em: 19 de outubro de 2020.
[6] O Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 é uma coalizaão formada em 2014 por 50 entidades, incluindo organizações não-governamentais, movimentos sociais, fóruns e fundações brasileiras, com o objetivo de monitorar, difundir e promover a Agenda 2030 e os ODS entre a sociedade civil e o Governo Brasileiro.
[7] GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A AGENDA 2030 (Brasil). IV Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030. 2020. Disponível em: <https://gtagenda2030.org.br/relatorio-luz/relatorio-luz-2020/>. Acesso em: 19 de outubro de 2020.