Pandemia

A função social da empresa em tempos de Covid-19

Judiciário terá de enfrentar as duas faces desse princípio até então duramente criticado

Crédito: Pixabay

O Estado deve preferir proteger os cidadãos antes de tomar medidas de auxílio às empresas? Ou as empresas devem ser precipuamente protegidas para que os cidadãos não sofram as severas consequências econômicas?

Este é apenas um exemplo do paradoxo em que vivemos hoje diante da crise causada pela COVID-19 e as respostas para ele, longe de serem fáceis, podem ter de passar pela análise daquilo que entendemos como a “função” ou “propósito das empresas” atualmente.

A importância desta análise tomou maiores proporções já em 2019 quando o poderoso Business Roundtable (BRT), uma espécie de associação de CEO’s das maiores empresas americanas como a Amazon e a Apple, exarou a seguinte declaração: “O propósito das empresas não é apenas trazer lucros aos seus shareholders (acionistas) mas, sim, servir a todos os seus stakeholders: consumidores, empregados, fornecedores, comunidades e, inclusive, acionistas[1].

Com a declaração de 2019, este grupo privado mudou sua visão sobre o propósito principal das empresas, dominado desde a década de 70 pela “supremacia dos acionistas”, ou seja, a visão de que o único propósito da empresa seria trazer lucros para os seus sócios ou acionistas sem levar em consideração o interesse de quaisquer outros indivíduos.

O curioso é que, nos Estados Unidos, a definição de qual seria a função das empresas parece emanar exclusivamente do entendimento de sujeitos privados como o BRT.

No Brasil, por outro lado, doutrinadores afirmam que a definição da função das empresas deriva diretamente da Constituição quando, em seu artigo 170, prevê quais são os princípios norteadores da livre iniciativa empresarial: a busca do pleno emprego, a proteção do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades, sem deixar de lado a proteção da propriedade privada, o favorecimento a pequenas empresas e a livre concorrência.

Além disso, leis esparsas como a Lei das Sociedades Anônimas[2], a Lei das Estatais[3] e a Lei de Recuperação Judicial[4] trazem expressamente disposições que se referem à função das empresas vinculando-a à satisfação do bem público, ao interesse coletivo, à manutenção dos empregos, sem se descuidar da preservação e da manutenção da própria empresa em sentido estrito.

Portanto temos que, a priori, o que nos rege é o princípio da “função social da empresa”, conceito derivado diretamente da Constituição e de leis esparsas e que parece se coadunar muito mais com o novo statement do BRT, ou seja, com a conciliação harmônica entre os direitos dos shareholders, os quais derivam da autonomia privada, e a proteção de indivíduos essenciais para a continuação da atividade empresarial (demais stakeholders).

Dito princípio comporta, portanto, duas faces de uma relação simbiótica: de um lado, reconhece-se a necessária proteção aos interesses da empresa em sentido estrito, assim como a de seus shareholders, proteção sem a qual a atividade não subsistiria. De outro lado, a necessidade de haver também proteção aos stakeholders como um todo, já que a empresa também deve, em princípio, servi-los.

É exatamente neste contexto que se destacam as maiores críticas a esse princípio, o qual é frequentemente utilizado pelo Estado de forma genérica e sem o aprofundamento necessário para a análise do seu real significado e das diversas faces que o compõe.

Críticos afirmam que o Estado com muita frequência privilegia a segunda face do princípio tratada acima em detrimento da outra, a exemplo das muitas reclamações trabalhistas e ações consumeristas julgadas em desfavor de empresas, muitas vezes embasadas em fracos fundamentos, sem nem mesmo levar em conta que a manutenção da própria atividade em si e o direito dos shareholders também faz parte do âmbito de proteção do referido princípio, sem a qual a própria continuação da atividade empresária é ameaçada.

Por outro lado, se o principal propósito da empresa não é mais pura e simplesmente gerar lucros aos seus “donos”, haveria o legítimo interesse ou a obrigação de o Estado proteger a atividade empresária ou, em uma visão mais liberal, abster-se de lhe provocar impedimentos para que a atividade subsista.

Portanto, este mesmo princípio da função social na situação de crise atual pode ser uma forma de garantir a legitimidade das empresas em exigir, por exemplo, flexibilização de suas obrigações regulares (tributos, encargos, leis trabalhistas, etc.) em prol da continuidade da empresa e, em consequência, em prol de todos os stakeholders a quem a empresa é obrigada a servir.

Ações exigindo que o Estado reconheça tal flexibilização em meio a atual pandemia já começaram a aparecer em todo o país, a exemplo da decisão da 21ª Vara Federal que autorizou uma empresa a suspender o pagamento de tributos diante da atual crise de forma a garantir a manutenção de diversos empregos.[5]

É de se esperar, portanto, que as empresas invoquem o princípio da função social da empresa agora para o seu próprio benefício que, ao menos no plano teórico, significa consequentemente o benefício de todos os stakeholders.

Para além das discussões doutrinárias sobre o assunto, a crise econômica é um fato real e que, inevitavelmente, será apreciada pelo Judiciário. O objetivo da presente discussão é provocar o início de um aprofundamento quanto ao que seriam, juridicamente, os “propósitos da empresa”, de forma a reconhecer que nem sempre um lado prevalecerá sobre o outro e que a proteção da atividade econômica deve levar em consideração todas as faces do princípio da função social da empresa no caso concreto.

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[1] Tradução livre para abarcar o uso comum da palavra “empresas” como significado de qualquer atividade empresarial. O texto original usa o vocábulo “Corporations”. Fonte: https://www.businessroundtable.org/business-roundtable-redefines-the-purpose-of-a-corporation-to-promote-an-economy-that-serves-all-americans

[2] Lei 6.404/1976. Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.

[3] Lei 13.303/2016. Art. 27. A empresa pública e a sociedade de economia mista terão a função social de realização do interesse coletivo ou de atendimento a imperativo da segurança nacional expressa no instrumento de autorização legal para a sua criação.

[4] Lei 11.101/2005. Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

[5] https://www.conjur.com.br/dl/juiz-df-aplica-teoria-fato-principe.pdf