O mês de outubro de 2018 será um período eternamente marcado em minha memória. Naquele ano, pude acompanhar, com bastante proximidade, um conjunto de episódios “peculiares” – para ser eufemístico – do processo eleitoral brasileiro e, de forma mais específica, das fronteiras da racionalidade humana.
No final do ano anterior, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, decidiu anunciar, por meio de edital divulgado aos membros do Ministério Público Federal, o interesse em estruturar um time de procuradores da República responsável por auxiliar os trabalhos da cúpula. Entre as matérias anunciadas estava a função eleitoral, comandada pelo vice-procurador-geral eleitoral Humberto Jacques, com quem, até então, eu tinha pouco contato. Candidatei-me e, passados dois meses, já estaria alocado em Brasília, em seu gabinete.
As funções exercidas pelo Ministério Público, no campo eleitoral, são bastante amplas. O órgão está presente em absolutamente todas as etapas do processo eleitoral, desde o alistamento de eleitores e registro de candidatos até mesmo após a diplomação dos eleitos[1]. Durante o caminho, fiscaliza, entre outras coisas, a criação de partidos, a propaganda eleitoral, as condutas vedadas e os abusos de poder econômico e político, a prestação de contas etc.
Naquele pleito, dois temas inéditos – embora conectados – desafiaram a burocracia jurídica brasileira.
O primeiro deles foi o crescente fenômeno das redes sociais, ambiente que se tornou o palco principal da difusão de ideias, com a capacidade de influenciar fortemente o processo eleitoral[2]. Atualmente, não há dúvidas de que essas plataformas passaram a servir como arena pública de debate, inclusive para fins de propaganda eleitoral[3].
As dificuldades na implementação de uma eficiente regulação desse ambiente são o resultado de ao menos três fatores. O primeiro deles consiste no espaço praticamente ilimitado que as plataformas digitais desfrutam, tornando complexas as dificuldades de controle. O segundo, no fato de as atividades serem desenvolvidas além das fronteiras dos Estados, o que desafia os limites do exercício da soberania estatal. O terceiro, na existência de estruturas complexas de governança da internet, com base na influência mútua de diferentes partes interessadas em nível internacional. Não por acaso, os autores que hoje debatem o chamado “constitucionalismo digital” dedicam especial atenção ao papel das redes sociais, inclusive as suas influências sobre o processo eleitoral[4].
O segundo tema consiste na prevenção das chamadas fake news (afirmações fáticas falsas). O seu conceito pode ser extraído do artigo 58 da Lei 9.504/97 (Lei das Eleições), cujo texto faz referência ao “conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica, difundidos por qualquer veículo de comunicação social”.
Durante todo o processo eleitoral de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) seguiu uma abordagem liberal, afastando até mesmo o reconhecimento do direito de resposta quando não evidenciado, de plano, “fato sabidamente inverídico”[5].
A situação veio a mudar drasticamente em razão dos eventos ocorridos em 7 de outubro de 2018. Naquele domingo, data do primeiro turno das eleições, eu me encontrava em uma das salas do gabinete do vice-procurador-geral eleitoral quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, falava um competente procurador regional eleitoral, assustado com o que ocorria em seu estado: alguns eleitores compareciam aos locais de votação e se comportavam de forma violenta, afirmando que as urnas eletrônicas teriam sido fraudadas. O que se passava naquele estado logo se reproduziu em outros locais. Vídeos gravados por eleitores circularam fortemente em redes sociais, com mensagens de que uma grande fraude estaria em curso.
No Distrito Federal, dois policiais militares gravaram um vídeo em frente à sede da Polícia Federal, alegando que as urnas já teriam votos registrados antes do início da votação. A confusão ocorreu na região de Guará, parte da 9ª Zona Eleitoral. Naquele mesmo dia, em entrevista coletiva à imprensa, a presidente do TRE-DF, Carmelita Brasil, disse “que o vídeo foi o fruto de um mal-entendido dos policiais e do denunciante”. O tribunal esclareceu que tanto a zerézima – extrato documental que evidencia que a urna não apresenta votos computados no início da votação – quanto o boletim de urna da seção eleitoral foram emitidos sem alterações.
Posteriormente, o núcleo de checagem Estadão Verifica de fato divulgou que os policiais “estavam ali para acompanhar o depoimento do homem que denunciou o suposto mau funcionamento da urna eletrônica. No entanto, a PF informou que, após colhidos os depoimentos, não houve comprovação de fraude”[6].
Tais eventos moveram o vice-procurador-geral eleitoral a me delegar uma importante missão: averiguar o ocorrido em cada estado, mediante contato com as autoridades policiais, os procuradores regionais eleitorais e os tribunais regionais.
Nos dias seguintes, inúmeras auditorias foram conduzidas[7] pelos respectivos tribunais e cada um dos eventos foi esclarecido pelo Tribunal Superior Eleitoral. As variadas formas de auditoria também foram explicadas pelo TSE[8], deixando claro que a impossibilidade de identificação dos eleitores, em tais processos, não significa a ausência de autoria, apenas decorrendo do fato de o voto secreto ser uma cláusula pétrea constitucional[9].
Outras informações falsas, amplamente divulgadas por meio de aplicativos de mensagens instantâneas, foram desmentidas. Entre as mais absurdas, destaco as informações de que:
- se comprovada fraude, o Exército brasileiro anularia o pleito e realizaria novas eleições por meio de cédulas de papel[10];
- uma empresa venezuelana seria responsável pelas urnas e teria fraudado eleições brasileiras anteriores[11];
- somente três países utilizariam urnas eletrônicas[12];
- o diretor da OEA teria admitido negociação para fraudar urna eletrônica[13] etc.
Não apenas a quantidade, mas também as formas de propagação das informações falsas deixam claro se tratar de algo arquitetado por um ou mais grupos de pessoas, com o objetivo de perturbar o processo eleitoral, despertando nos eleitores – sobretudo os mais incautos – sentimentos de suspeição e revolta. Exemplo disso foi a circulação de um vídeo no qual uma urna, supostamente, autocompletava o voto para presidente.
Após a avaliação de peritos, ficou evidenciado que se tratava de uma montagem. Em outras palavras, uma perícia custeada com recursos públicos revelou que alguém dedicou o seu tempo para editar uma montagem audiovisual, com o objetivo de propagar uma informação falsa e causar tumulto durante o processo eleitoral[14].
É bem verdade que não se pode esperar do eleitor comum que conheça bem e participe de todas as etapas de fiscalização e auditorias do processo eleitoral, independentemente da modalidade de voto, mesmo por cédulas. Por outro lado, qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento e vontade genuína de conhecer o tema é capaz de perceber que, em razão da lacração dos sistemas e emissão do resumo digital (código hash), qualquer alteração no código-fonte das urnas – algo extremamente improvável, em razão das camadas de segurança – seria facilmente identificável, em razão dos evidentes rastros.
Mas não é esse o problema. Não se trata de questionar a vontade do eleitorado de conhecer a segurança do processo eleitoral, mas sim de compreender e prevenir o apagão de racionalidade humana e o sentimento induzido por pessoas lamentavelmente vocacionadas à bizarra missão de ruir um dos pilares da democracia brasileira.
Explico com um exemplo. Entre as múltiplas auditorias que acompanhei no período imediatamente posterior ao pleito de 2018, uma me chamou especial atenção. Em um contato telefônico com o Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS), fui informado de que cerca de 115 mil pessoas daquele estado anularam o voto para governador, pois haviam digitado, no campo para tal cargo, o número do seu candidato para o cargo de presidente da República.
Em outras palavras, milhares de pessoas não conseguiram se desincumbir de uma simples tarefa de digitar um número de dois dígitos no campo correto. E algumas delas, incentivadas pelo prévio rumor de uma fraude vindoura, reagiram violentamente, na certeza de que teriam sido vítimas de um grande golpe. A situação seria ainda pior se tivesse sido adotado o chamado “voto impresso”, na medida em que a impressão revelaria o erro – não assumido pelo eleitor –, o que levaria estas pessoas a afirmarem que também a impressora reproduziria a fraude, em uma espiral sem solução.
Como prevenir isso?
Apesar dos inúmeros esforços do TSE, que tem dedicado boa parte do seu precioso tempo a repelir, uma a uma, as infindáveis notícias falsas, é inegável que vivenciamos, no século 21, aquilo que o cientista político Manuel Arias Maldonado chama de “democracia sentimental”. Trata-se de um momento histórico caracterizado pelo (re)surgimento de discursos políticos agressivos, em que, não raramente, é possível identificar a eleição de bodes expiatórios e a predominância das emoções sobre a razão. O resultado disso é um amálgama de paixões muito diferente da esfera pública calma que o Iluminismo sonhava como a base de nossas democracias representativas[15].
Como bem decidido pelo TSE em 2021, “o ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando-se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações”[16], configurando abuso e uso indevido de meio de comunicação.
Nas suas entrelinhas, tal caso revela uma necessidade premente: mais do que nunca, é importante que a racionalidade e a razão pública retomem as rédeas do discurso político em todo o mundo.
[1] LC 75/1993: “Artigo 72 Compete ao Ministério Público Federal exercer, no que couber, junto à Justiça Eleitoral, as funções do Ministério Público, atuando em todas as fases e instâncias do processo eleitoral. Parágrafo único. O Ministério Público Federal tem legitimação para propor, perante o juízo competente, as ações para declarar ou decretar a nulidade de negócios jurídicos ou atos da administração pública, infringentes de vedações legais destinadas a proteger a normalidade e a legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou o abuso do poder político ou administrativo”.
[2] Sobre o tema, conferir: Zittrain, Jonathan. Engineering an Election. Harvard Law Review, v. 127, p. 335-341, 2013-2014.
[3] Lei 9.504/97: “Artigo 57-B. A propaganda eleitoral na internet poderá ser realizada nas seguintes formas: […] IV – por meio de blogs, redes sociais, sítios de mensagens instantâneas e aplicações de internet assemelhadas cujo conteúdo seja gerado ou editado por: a) candidatos, partidos ou coligações; ou b) qualquer pessoa natural, desde que não contrate impulsionamento de conteúdos”.
[4] Sobre o tema, conferir: LORDELO, João Paulo. Constitucionalismo digital e devido processo legal. Salvador: Juspodivm, 2022; DE GREGORIO, Giovanni. From constitutional freedoms to the power of the platforms: protecting fundamental rights online in the algorithmic society. European Journal of Legal Studies, vol. 11, n. 2, 2019.
[5] Nesse sentido, conferir: TSE, Rp 060142055/DF, acórdão de 27/09/2018; Rp 060100742/DF, acórdão de 11/09/2018.
[6] O Tribunal Superior Eleitoral apresentou esclarecimento sobre o ocorrido: https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/policiais-militares-divulgam-irregularidades-urnas-eletronicas-df.html. Conforme noticiado pelo blog Estadão Verifica, o vídeo é resultado de um mal-entendido dos policiais e do colaborador contratado. Cf. https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/nao-foi-comprovada-denuncia-de-fraude-em-urnas-do-distrito-federal/.
[7] A título de exemplo, cf. https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/confira-o-resultado-da-auditoria-nas-urnas-de-sp.html e https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/video-em-que-se-alega-suposta-fraude-em-urna-eletronica-que-apresentou-defeito.html.
[8] As variadas formas de autoria compreendem 1) a verificação do resumo digital (hash); 2) a reimpressão do boletim de urna; 3) a comparação do boletim impresso e o recebido pelo sistema de totalização; 4) a verificação da assinatura digital; (v) a comparação dos relatórios e atas de seções eleitorais com os arquivos digitais das urnas; (vi) auditoria do código-fonte lacrado no cofre do TSE; (vii) a recontagem dos votos por meio do RDV; (viii) a comparação da recontagem com o boletim de urnas. Conferir: https://www.justicaeleitoral.jus.br/urna-eletronica/oportunidades-de-auditoria-e-fiscalizacao.html.
[9] Constituição da República: “Artigo 60 […] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: […] II – o voto direto, secreto, universal e periódico”.
[10] Cf. https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/forcas-armadas-exigiram-que-tse-fizesse-pericias-em-urnas-eletronicas.html.
[11] Cf. https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/empresa-venezuelana-e-responsavel-pelas-urnas-eletronicas.html.
[12] Cf. https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/somente-3-paises-utilizam-urnas-eletronicas.html.
[13] Cf. www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/diretor-da-oea-admitiu-negociacao-para-fraudar-urna-eletronica.html.
[14] Cf. https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/urna-autocompleta-voto.html.
[15] MALDONADO, Manuel Arias. La democracia sentimental: política y emociones em el siglo XXI. Barcelona: Página Indómita, 2016.
[16] RO-El – Recurso Ordinário Eleitoral nº 060397598, acórdão de 28/10/2021, Relator(a) Min. Luis Felipe Salomão, DJE 10/12/2021.