Na pauta da Câmara dos Deputados desta quarta-feira (6/4) para apreciação de urgência, a versão atualizada do PL das Fake News – que contempla sugestões de lideranças e de bancadas para garantir aprovação – é alvo de críticas de plataformas, principais atingidas por eventuais sanções, e de especialistas. Para eles, há dispositivos problemáticos e potencialmente danosos no texto, que podem, inclusive, dar um “passe livre” para políticos disseminarem informações falsas.
Alguns dos pontos sensíveis são o tratamento especial para contas de “interesse público”, a menção à imunidade parlamentar nas redes sociais, a analogia entre plataformas e meios de comunicação, a previsão de que as empresas remunerem conteúdos jornalísticos, além de certas demandas de transparência, que poderiam gerar um efeito pernicioso.
O novo relatório endereçou queixas das plataformas, principalmente com mudança em artigo que elas alegavam prejudicar anúncios digitais. Mas nos últimos dias, Google e YouTube novamente publicaram campanhas publicitárias contra os termos atuais da proposta. Desta vez, as empresas dizem que o PL das Fake News será incapaz de combater notícias falsas e, ao contrário, poderia fomentá-las.
Em comunicado, o YouTube defende que as mesmas políticas internas sejam aplicadas a todos, de políticos a celebridades. “Isso passou a acontecer ao longo dos anos, pois vimos um aumento de figuras proeminentes em todo o mundo espalhando desinformação prejudicial”, disse a empresa, na última segunda-feira (5/4).
Nesse sentido, a plataforma cita que removeu vídeos de políticos sobre a Covid-19 e diz que isso seria dificultado, pois de acordo com o texto do PL das Fake News, parlamentares agora teriam “passe livre”.
“Isso impediria nossa prática de responsabilizar todos os criadores pelo mesmo conjunto de políticas. Vídeos de legisladores protegidos que, de outra forma, removeríamos – incluindo violência gráfica, golpes, assédio ou certas informações erradas sobre as eleições – permaneceriam na plataforma”, afirma.
A referência é ao artigo 22 do PL das Fake News, que prevê tratamento diferenciado a contas intituladas de interesse público, como as geridas por entidades e órgãos da administração pública além das de políticos e outros ocupantes de cargos públicos de primeiro escalão.
Essas contas não poderão bloquear seguidores ou se tornar privadas e as trocas de mensagem estarão sujeitas às mesmas obrigações de transparência de outros tipos de comunicação oficial. Caso tenha várias contas, a autoridade indicará a oficial; as demais também serão consideradas institucionais “caso contenham, predominantemente, manifestação oficial própria do cargo”.
“Esse trecho acaba sendo muito impreciso ao não especificar o que seria ‘predominantemente’. Poderia se entender como uma maioria de publicações, quando sabemos que apenas uma fala já poderia ser suficientemente relevante, por exemplo”, diz Artur Pericles, coordenador de pesquisa da organização internetLab.
Além das obrigações, há garantias especiais a essas contas, como reestabelecimento célere, por ordem da Justiça, caso os provedores suspendam conteúdos indevidamente; e a obrigação às plataformas de expor aviso à comunidade quando aplicarem termos e políticas “que impliquem medidas restritivas da liberdade de expressão” com o motivo da decisão.
Além disso, o último parágrafo estabelece que a imunidade parlamentar material se estende às redes sociais. Esse é o ponto de principal controvérsia nesse artigo. Originalmente, de acordo com a Constituição, os membros do Congresso são invioláveis, civil e penalmente, por opiniões relacionadas ao exercício do mandato.
“Existe uma preocupação real sobre qual é a extensão dessa garantia nas redes, porque o PL das Fake News não nos dá total certeza. Há uma insegurança, porque a própria jurisprudência ainda lida com o desafio de impor esses limites para a imunidade parlamentar material”, diz a advogada Marcela Mattiuzzo, especialista em uso de dados pessoais pelas plataformas, do escritório VMCA, em São Paulo.
Também não seria suficiente, na perspectiva dos especialistas, a existência no mesmo artigo de menção a aplicação de termos de uso a essas contas de interesse público. “Não fica claro se a imunidade parlamentar seria mais uma camada de exceção, inclusive em relação aos outros parágrafos”, diz Pericles. Isso porque nem todas as contas de interesse público são protegidas pela imunidade material.
O relator do PL das Fake News, Orlando Silva (PCdoB-SP), tem dito em defesa desse trecho que, na verdade, se trata apenas de considerar a imunidade parlamentar material, conforme já consta na Constituição. Ele disse que a inclusão foi incompreendida, durante entrevista coletiva na apresentação do relatório, na semana passada.
Silva usou o exemplo do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), que teve prisão decretada por ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e exaltação de medidas antidemocráticas. “A imunidade parlamentar material não serve nem servirá para abrigar crime nem criminoso”, afirmou.
“Apenas falas políticas e relacionadas ao mandato são protegidas. Opiniões particulares e desinformação, por exemplo, não cabem na imunidade. A Justiça tem entendido assim”, afirma o advogado André Marsiglia, especialista em imprensa e liberdade de expressão.
Porém, há o receio de que a simples menção à imunidade no projeto possa afetar a proatividade das plataformas em moderar conteúdo, já que o descumprimento das obrigações previstas na lei poderia gerar multa de até R$ 50 milhões e suspensão. Em último caso, há também chance de proibição de atuar no Brasil.
Equiparação a meios de comunicação
O entendimento de que poderia haver interpretações extensivas pelo Judiciário a partir do que será disposto em uma eventual Lei das Fake News também justifica a crítica sobre parte do artigo 2º, quando ele fala em tratar plataformas como meios de comunicação.
“As plataformas não fazem uma filtragem prévia do que o usuário vai ou não publicar. Essa correção é feita posteriormente; não fazemos censura prévia. A lógica de equiparar à comunicação social traz riscos muito grandes nesse sentido, ainda que a nova redação fale para fins da lei complementar das eleições”, avaliou a head de Políticas Públicas do Twitter Brasil, Daniele Kleiner, em entrevista ao JOTA publicada na última segunda-feira (5/4).
O projeto prevê que os provedores de redes sociais, ferramentas de busca e de mensageria instantânea serão considerados meios de comunicação social em relação à Lei de Inelegibilidade (Lei Complementar 64/1990).
A equivalência se dá quando a legislação aborda “o uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político”.
No ano passado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) usou o entendimento das plataformas como meios de comunicação, no julgamento que cassou o mandato do deputado paulista Fernando Francischini por espalhar fake news sobre as urnas e também no que absolveu a chapa Bolsonaro-Mourão por disparo de mensagens em massa.
O Twitter diz que não vê problemas em cumprir a Lei Complementar 64/1990. A maior crítica é que, a longo prazo, o entendimento poderia ser estendido a outras aplicações da legislação sobre meios de comunicação às plataformas.
“Ao realizar tal equiparação, o projeto abre a porta para equiparações impróprias de ocasião, o que é um desserviço para a boa conceituação dos fatos e fenômenos que pretendem ser regulados pela norma. Rede social não é veículo de comunicação social. Mais fácil seria alterar a Lei Complementar. Mas a pressa e o quórum qualificado fazem com que a solução mais fácil seja a apresentada”, escreve Marco Antonio Sabino, pesquisador do Instituto de Liberdade Digital (ILD), em artigo publicado pelo JOTA.
A noção de que as mídias sociais não são veículos de comunicação social se baseia na ideia de que, ao contrário da radiodifusão, fundada no conceito de propagação de mensagens, as redes sociais giram em torno do conceito de comunidade, isto é, um conjunto de pessoas que compartilham um objeto comum.
Para as plataformas, a interpretação além do campo eleitoral poderia também ferir disposição do Marco Civil da Internet, que delimita a responsabilidade civil das empresas por uso indevido apenas caso elas não atendam ordens judiciais. De modo geral, porém, o PL das Fake News estabelece deveres às plataformas e impõe sanções pelo descumprimento para além do Marco, aprovado em 2014.
Remuneração ao jornalismo no PL das Fake News
Outra questão – atacada principalmente pelo Google, que fala até na possibilidade de precisar pagar por fake news – é a remuneração do conteúdo jornalístico redistribuído pelas plataformas, conforme trata o artigo 38 do PL das Fake News.
O texto estabelece que uma futura regulamentação irá dispor sobre como e com quais critérios “a valorização do jornalismo profissional, nacional, regional, local e independente” se dará, mas adianta que fará jus à remuneração empresa constituída há pelo menos 12 meses desde a publicação da lei e que produza conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada, profissionalmente e que mantenha endereço físico e editor no Brasil.
As plataformas consideram a disposição excessivamente ampla. “Sem uma definição precisa do que deve ser considerado ‘conteúdo jornalístico’ ou de como ele seria ‘utilizado’, o Google seria obrigado a pagar a produtores de conteúdo apenas por exibir seus sites nos resultados de pesquisa”, diz comunicado da empresa assinado pelo presidente no Brasil, Fabio Coelho
O Google diz que se seguir exatamente o proposto na lei, se um conteúdo citar uma única palavra buscada, sites ditos jornalísticos poderiam exigir pagamento independentemente da qualidade e de publicar notícias falsas.
Anteriormente, na versão do PL das Fake News aprovada em um grupo de trabalho na Câmara, o artigo que então tratava sobre o tema foi criticado por associações de jornalismo. Em novembro, nove delas assinaram uma carta requerendo a supressão do trecho.
“A redação do artigo é genérica e incapaz de dar conta da complexidade do tema. Não define, por exemplo, o que será considerado como material jornalístico, nem como se dará tal remuneração ou quem fará a fiscalização”, diziam em manifesto. Elas reclamavam ainda que a questão deveria ser tratada em outro PL específico, com mais espaço para debate.
Mais detalhes estariam presentes numa eventual regulamentação. “Talvez não saia o modelo perfeito, mas é preciso que se dê um passo adiante na remuneração de conteúdo jornalístico. Para definir quem deve receber, o ideal será criar uma definição baseada nos princípios éticos próprios do jornalismo”, opina Marsiglia.
Em relação à moderação de conteúdo, a crítica é que itens exigidos nos relatórios de transparência que deverão ser apresentados pelas plataformas poderiam expor as plataformas a agentes mal-intencionados – e, assim, fomentar um ambiente tóxico, com mais desinformação e violência.
Entre as obrigações, há, por exemplo, a necessidade de informar a taxa de detecção de conteúdos para remoção e a descrição dos tipos de ferramentas automatizadas envolvidas.
“Se começarmos a dar visibilidade para pessoas mal-intencionadas do tipo de informação que nos leva a ativar esses sistemas, elas vão pensar em estratégias e até mesmo tecnologias para poder burlar isso”, disse Kleiner, do Twitter. “Estamos falando de uma guerra de tech contra tech, de grupos que muitas vezes têm condições financeiras de desenvolver tecnologia que pode fazer uma contravenção em relação a isso”.
Outras exigências teriam também a possibilidade de, inclusive, expor usuários. O PL das Fake News estabelece mudança no Marco Civil da Internet para determinar que os provedores mantenham os registros de acesso, “inclusive os que individualizem o usuário de um endereço IP de maneira inequívoca”, conforme prevê o artigo 15 do projeto.
“Esse dispositivo não tem sido muito observado e já contava com essa redação na versão aprovada, mas representa um ‘cavalo de Tróia’ no PL das Fake News, já que abre margem para a manutenção de dados pessoais sensíveis como o CPF de usuários”, afirma Pericles. Nesse sentido, mais seguro seria usar a palavra “terminal”, isto é, o equipamento usado.
Caso o PL seja aprovado e se torne lei, as regras sobre relatórios de transparência passam a produzir efeitos em 12 meses. Começam em 90 dias as ordens de bloqueios de contas automatizadas, diretrizes sobre compartilhamento de dados com terceiros e a disponibilização de termos de uso, o bloqueio de disparos em massa de certas publicações, o devido processo sobre interdições a conteúdos, exigências sobre propaganda eleitoral impulsionada. O restante já deverá ser observado na data de publicação da lei.