É impossível imaginar a vida sem internet. Todos os dias bilhões de pessoas acessam a rede para realizar as mais diferentes atividades: enviam e-mails, navegam em sites de notícias, frequentam redes sociais, compram produtos via marketplaces e lojas virtuais, utilizam apps de comunicação, de mobilidade e de entrega. Conteúdos como filmes e música em streaming mostram como a indústria do entretenimento é altamente dependente da tecnologia, enquanto aplicativos de relacionamento já são realidade há anos. E a tecnologia está cada vez mais acessível: de acordo com a última pesquisa We Are Social (2020), três em quatro brasileiros possuem acesso à internet – mesmo no 33º lugar do ranking global de conectividade.
O volume de interações entre pessoas e organizações é enorme. E, como em todo ramo da atividade humana, abusos ou excessos podem ocorrer. Nessa frente, a moderação de conteúdos e comportamentos online ganhou destaque e está na pauta do dia.
Apesar de parecer um debate fácil, a discussão tem nuances profundas: remover contas e conteúdos que violem as regras contratualmente estabelecidas entre usuários e plataformas digitais, incluindo redes sociais, implica em censura e em restrição da liberdade de expressão? A liberdade econômica garantida pelo ordenamento jurídico brasileiro não assegura às plataformas o direito de estabelecer as diretrizes para o uso de suas soluções tecnológicas? O Poder Judiciário precisa opinar previamente à remoção de todo e qualquer conteúdo na internet, ainda que haja violação às regras e aos padrões estabelecidos pelas plataformas e contratualmente aceitos pelos usuários?
Não é desejável permitir que plataformas removam contas e conteúdos que incitem violência ou organizem ataques contra as instituições do Estado Democrático de Direito?
Embora atual no Congresso, com mais de 120 projetos de lei, divididos e apensados a seis principais, o tema da moderação de conteúdo na internet não é propriamente novo, tendo sido endereçado pelo Legislativo, em 2014, no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Na exposição de motivos do Marco Civil da Internet, estava claro o aspecto colaborativo e a preocupação com as bases constitucionais da nova legislação. Segundo o texto, a “norma mira os usos legítimos, protegendo a privacidade dos usuários e a liberdade de expressão, adotando como pressuposto o princípio da presunção de inocência, tratando os abusos como eventos excepcionais”.
Contudo, há alguns meses foi noticiada a elaboração de um possível Decreto Presidencial, que visa alterar o Decreto 8.771/16, responsável por regulamentar o Marco Civil da Internet. Entre as disposições do possível decreto, está a proibição de moderação de contas e conteúdo por parte das plataformas digitais ou a exigência de intervenção judicial para tanto. Basicamente, impedir-se-ia que as plataformas digitais removessem contas e/ou conteúdos sem ordem judicial prévia, exceto em situações excepcionais ali previstas, como contas falsas ou robotizadas, e outras que exigem que plataformas passem a analisar a legalidade de conteúdos e ações de usuários e não mais o descumprimento das regras contratuais. Em certa medida, as plataformas passariam a atuar como Poder Judiciário.
Ocorre que, com sua base principiológica, o Marco Civil da Internet fundamenta-se no reconhecimento de que a rede possui escala global, na liberdade dos modelos de negócios e, principalmente, na garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamentos.
Merece destaque a forma como transcorreu o processo legislativo do Marco Civil da Internet. Durante seu trâmite, passou por amplo processo de consulta pública e debate com diversos atores, dentre eles o ambiente acadêmico, o Comitê Gestor da Internet, advogados especialistas e empresas do setor. Na época, foi criado um blog na plataforma Cultura Digital, mantida pelo Ministério da Cultura, para tratar do tema. Em pouco tempo, o espaço contou com mais de dois mil comentários diretos e incontáveis manifestações publicadas online.
Aprovado depois de ampla discussão, o Marco Civil da Internet estabeleceu o equilíbrio desejado no que toca à moderação de conteúdo: de um lado, às plataformas digitais não é vedado avaliar conteúdos e comportamentos de seus usuários, removendo conteúdos e contas não-conformes com as diretrizes de uso estabelecidas dentro do exercício da sua liberdade empresarial; de outro, não são obrigadas a fazer juízo de valor sobre a legalidade ou ilegalidade do conteúdo que hospeda, sob a ótica da lei, pois isso compete ao Poder Judiciário, conforme a Constituição Federal.
O Marco Civil da Internet alcançou objetivos de cooperação entre Estado e particulares, de união de esforços na busca da harmonia, do respeito e da segurança online. Impedir atuação das plataformas na moderação desses conteúdos, relegando ao Poder Judiciário toda e qualquer discussão sobre as relações online, pode ter impactos mais deletérios do que positivos ao exercício da liberdade de expressão e do direito à informação. Esperar por decisão judicial de remoção de conteúdo mesmo quando se está diante de evidente violação às regras da plataforma parece ser mais pernicioso do que a atuação dos particulares nos limites do que estabelecem os termos de uso e políticas de conteúdo.
Não se deve, sob o mantra de supostamente preservar a liberdade de expressão, restringir de forma açodada a liberdade contratual, engessar a iniciativa privada e, ainda por cima, sobrecarregar o já assoberbado Poder Judiciário, limitando radicalmente as necessárias e salutares iniciativas de moderação e integridade praticadas pelas plataformas digitais. Em última análise, a liberdade de expressão daqueles que tenham conteúdo ou conta removidos por determinada plataforma, com base nas regras contratuais, pode continuar a ser exercida em outras plataformas.
Se a sociedade entender que o tema precisa ser revisitado e os mecanismos de moderação de conteúdo, aprimorados, é essencial planejar a melhor forma de cumprir esse desafio. Devemos evitar a mudança atabalhoada do regime atual, sem diálogo ou interlocução com sociedade civil e iniciativa privada e, em especial, sem reflexão profunda sobre os impactos que mudanças introduzidas de forma arbitrária trariam ao uso, à inovação e ao desenvolvimento da internet no país.
Além do processo colaborativo da tramitação do Marco Civil da Internet, há outros dois exemplos de como o trâmite legislativo aberto foi e tem sido utilizado para a consolidação de políticas públicas de alta relevância para o setor de tecnologia: o Marco Legal das Startups e o PL 21/2020, também conhecido como Marco Regulador da Inteligência Artificial, que ainda tramita no Congresso.
O Marco das Startups, finalizado em 2021, é fruto da junção de dois Projetos de Lei e durante toda a tramitação, como relator, pude receber contribuições após diversos debates e audiências públicas em torno do texto. Também foi providencial o diálogo com atores do ecossistema de inovação brasileiro e com o relator do texto no Senado, Sen. Carlos Portinho, até que o texto final se tornasse a Lei Complementar 182/2021. A quantidade de oitivas articuladas permitiu que o mercado se organizasse e consolidasse, de forma quase inédita, as prioridades legislativas para o setor. Exemplo de “nova” maneira de construção de política pública, como o ecossistema de fato merece.
Esse modus operandi tem se repetido na tramitação do PL 21/2020, que trata sobre inteligência artificial. Dispondo sobre princípios, direitos, deveres e mecanismos de governança da tecnologia em seu uso e desenvolvimento pelo poder público e iniciativa privada, inclusive de pessoas físicas no país, o PL delineia os fundamentos, a promoção de objetivos e mecanismos de defesa de interesses de partes interessadas, para além da dinâmica de incentivo e responsabilidade por parte dos entes federativos. Ainda em tramitação, a forma como o Legislativo tem ouvido a sociedade já nos mostra que a participação externa não pode, de maneira alguma, ser relevada.
A lição a tirar desses processos legislativos, é evidente: em temas relacionados à tecnologia, o Legislativo não pode ser inerte. Ao ser acionado para deliberar algo tão relevante, grandioso e tão presente na sociedade moderna, é preciso atenção máxima e, acima de tudo, ouvir a sociedade. Assim, a regulação da moderação de conteúdos nas redes não deve ficar restrita ao poder público, em qualquer uma das suas esferas.
Se vivemos em uma “sociedade em rede”, como definiu o sociólogo Manuel Castells, já não se trata mais de debate que envolve número fechado de atores. Não podemos negar, dessa forma, que regular um tema tão complexo quanto os limites da moderação de conteúdo realizada pelas plataformas digitais é um grande desafio; temos certeza, entretanto, que não há melhor desfecho do que aquele construído de forma colaborativa e que priorize, sobretudo, a segurança, a liberdade e o acesso dos cidadãos ao melhor que a tecnologia tem a oferecer.