O novo projeto de Marco Legal das Startups (PL 146/2019), aprovado na data de 15/12/2020 na Câmara dos Deputados e enviado para discussão no Senado, visa disciplinar um ambiente de negócios há muito existente, mas também há muito negligenciado, correspondente ao ecossistema das Startups. A versão atualizada e aprovada do projeto de Marco Legal, consolidada em subemenda substitutiva global, pode ser encontrada aqui.
Há um consenso de que a inovação deve ser regulada no Brasil sob uma perspectiva propositiva e que permita a criação de novos empregos e o devido estímulo à economia, superando uma visão ultrapassada que atrela a carga jurídica regulatória à inibição do ambiente inovador. Contudo, a regulação da inovação não é simples e precisa encontrar um fino equilíbrio entre a imposição de um novo ônus regulatório e o aumento de segurança jurídica para os agentes do mercado.
Nesse sentido, o projeto de Marco Legal das Startup é essencialmente virtuoso. O projeto estabelece regras para o enquadramento de empresas como “startups” e fornece benefícios regulatórios positivos para as empresas elegíveis como “startups” na forma de admissão de investimento sem integralização de capital social (Artigo 5º), vantagens na apuração de imposto sobre ganho de capital (Artigo 7º), na redução da responsabilidade do investidor sobre dívidas contraídas pela empresa investida (Artigo 8º), na permissão de cumprimento de obrigações de P&D por meio de “startups” (Artigo 9º), na possibilidade de criação de sandboxes regulatórios (Artigo 11), no estabelecimento de regras licitatórias favoráveis (Artigos 12 a 15), na previsão expressa de complementação de remuneração por meio de stock options (Artigo 16), entre outras disposições.
Entretanto, apesar das evidentes virtudes, o projeto de Marco Legal das Startups carrega um vício fatal que precisa ser remediado – o seu Artigo 4º, que define os critérios de elegibilidade das “startups”, para os efeitos da Lei.
Conforme preleciona o Artigo 4º, as startups precisam obedecer aos seguintes critérios:
- Constituição na forma de empresário individual, empresa individual de responsabilidade limitada, sociedades empresárias, cooperativas ou simples;
- Auferir receita bruta anual de até R$ 16.000.000,00 (ou R$ 1.333,334.000 multiplicado pelo número de meses no ano-calendário anterior);
- Possui inscrição no CNPJ há menos de 10 anos; e
- Estar enquadra no Inova Simples ( 65-A da LC 123/2006) ou autodeclaração (em ato constitutivo ou alteração) da utilização de modelos de negócios inovadores.
O problema fundamental com a eleição destes critérios de eligibilidade é que 99% das empresas brasileiras nele se enquadram (ou possuem o potencial de se enquadrar).
Conforme dados fornecidos pelo Sebrae, o Brasil contava, em 2018, com 6,4 milhões de empresas, das quais 99% se enquadravam como micro ou pequenas empresas, o que potencialmente tornaria o Brasil o país de mais de 6 milhões de Startups. É possível que a cifra seja até superior a 99%, tendo em vista que o requisito de receita bruta instituído no Marco Legal é muito superior à noção técnica e vulgar de PME. Para alcançar uma cifra mais precisava, por óbvio, seria necessário excluir as empresas constituídas há mais de 10 anos, embora, infelizmente, as estatísticas do Sebrae não façam essa diferenciação. Não obstante, seria possível que essas pequenas e médias empresas fizessem novo registro, apesar da potencial burla à Lei, com o fito de se enquadrarem como “startups”, tendo em vista que o único critério que as separaria deste regime favorável seria o critério tempo.
De um lado, é certo que a eleição de critérios amplos de elegibilidade tende a beneficiar o ecossistema das Startups, aos negócios nascentes, às incubadoras e aceleradoras já constituídas. De outro, o sistema se mostra ostensivamente sujeito a abusos.
A semente do mal é dicotiledônea. Em primeiro lugar, o requisito de receita bruta se demonstra excessivo. Com efeito, seria possível contar nos dedos as startups brasileiras que possam ter ultrapassado este limite no ano-calendário 2019 ou 2018. O resultado é que praticamente toda empresa brasileira seria considerada uma startup. Questiona-se se (praticamente) todas as empresas brasileiras mereceriam as benesses licitatórias e de investimento previstas no projeto de Marco Legal.
Em segundo lugar, o sistema de autodeclaração – copiado da inovação legislativa do Inova Simples (Art. 65-A da LC 123/2006) – é inerentemente falho. Não há disposição sobre a fiscalização da autodeclaração e não há força fiscalizatória (e sequer vontade) para se proceder à fiscalização desta sorte de autodeclaração, o que, naturalmente, pode levar à propagação de falsas declarações de empresa inovadora.
O critério temporal também se demonstra elevado, embora compreensível. Não compreendemos, entretanto, por que o critério original de constituição há menos de 6 anos, constante do projeto de lei que foi apensado ao projeto do Marco Legal (PL 249/2020), foi rejeitado em favor do estabelecimento do critério temporal em 10 anos.
Não é como se faltassem exemplos de melhores práticas para inspiração legislativa. Por exemplo, os requisitos da LC 123/2006 poderiam servir de base, potencialmente contando com um robustecimento no valor da receita bruta anual para enquadramento. À guisa de exemplo, a recomendação para a definição de PME na União Europeia feita pela Comissão Europeia, de 6 de maio de 2003, leva em consideração a receita bruta, o número de funcionários e a folha de pagamento da empresa. A redução dos critérios de receita e tempo se mostra necessária e a possibilidade de revisão técnica da autodeclaração, embora pareça custosa, não deve ser descartada.
É quase patriótico torcer para que o ambiente de negócios inovadores floresça no Brasil. Contudo, isso não deve ocorrer por uma ficção jurídica que transforme o Brasil no país mais inovador do mundo apenas no papel. O Marco Legal das Startups parece caminhar na direção correta para que sejam conferidos os benefícios adequados para o desenvolvimento de novas startups. Entretanto, a revisão dos seus critérios de elegibilidade se mostra premente para o bom desenvolvimento do mercado de Startups brasileiro.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça: