Poder público e inovação

Open Justice e inovação aberta

A transformação digital do sistema de justiça em colaboração com empresas e lawtechs

open justice inovação aberta
Crédito: Freepik

A Justiça brasileira intensificou o seu processo de transformação digital nos últimos anos, em especial a partir da pandemia de Covid-19 (2020-2022), priorizando investimentos em novas tecnologias e na consolidação do processo eletrônico[1], que representa mais de 98% das causas em tramitação, sendo um modelo para o mundo de inovação e uso da tecnologia.

O programa Justiça 4.0[2] representou um marco na prestação de serviços online, por meio da internet, sem a necessidade de deslocamento dos advogados e sujeitos processuais aos espaços físicos dos tribunais. O programa “torna o sistema jurisdicional brasileiro mais próximo da sociedade, ao disponibilizar novas tecnologias e impulsionar a transformação digital, garantindo serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis”[3] .

Mesmo com esses avanços, o Judiciário enfrenta dificuldades em lidar com o estoque de processos. No final de 2023, eram mais de 82,6 milhões de causas pendentes de julgamento, em comparação com 60,7 milhões em 2009.[4]

Esses números impactam na sobrecarga dos magistrados e servidores dos tribunais, uma das maiores do mundo[5], bem como prejudicam o tempo de tramitação, que é considerado o principal desafio do sistema judiciário brasileiro.[6]

Como exemplo, um processo de execução fiscal leva em média 6 anos e 7 meses para ser concluído. Esse tempo, ainda que elevado, representa uma significativa evolução em relação a 2018, quando a média atingiu o pico de 9 anos e 1 mês. Se os processos de execução fiscal fossem desconsiderados, a média cairia para 2 anos e 4 meses, em números de 2022.[7]

Apesar da melhora, as estatísticas mostram uma situação de morosidade, em comparação com países europeus. No Brasil, um processo civil na primeira instância leva cerca de 600 dias, quase o triplo da média de 232 dias na Europa. O tempo de tramitação brasileiro é mais longo do que em 40 países europeus, superando Alemanha (196 dias), Espanha (282 dias), Portugal (289) dias, França (353 dias), e até a Itália (514 dias), que influenciou fortemente nosso sistema processual civil. Somente a Grécia, com 610 dias, tem um tempo de tramitação maior que o do Brasil.[8]

Esse é o atual paradoxo do sistema de justiça: ainda que o Judiciário tenha se modernizado em plataformas digitais, permanece o desafio de eficiência e celeridade.

Não se desconhece os avanços promovidos por diversos tribunais, como o Supremo Tribunal Federal (STF), que criou soluções de eficiência e ampliação do acesso à Justiça por meio da virtualização de seus julgamentos colegiados[9], o que repercutiu em uma maior celeridade e na significativa redução da quantidade de processos que aguardavam pauta para deliberação presencial.[10]

A adoção de um novo paradigma de inovação aberta pode contribuir para a efetiva disrupção do sistema de justiça, tanto em ambientes judiciais quanto extrajudiciais, com o desenvolvimento colaborativo de novas soluções eficientes, céleres e que priorizam a qualidade dos serviços para os usuários, em benefício de toda a sociedade.

A partir do conjunto de instrumentos jurídicos que formam o Regime Normativo de Inovação[11], os tribunais podem se abrir para compras públicas de inovação, viabilizando a colaboração com empresas, startups e demais atores externos, tais como instituições potencialmente impactadas pelo processo inovativo, com destaque para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Procuradorias, departamentos jurídicos de instituições públicas e privadas, Defensorias e órgãos do Ministério Público.

Essa abertura está alinhada com as diretrizes da Agenda 2030 da ONU, que incentiva a cooperação inovativa entre os setores público e privado para a promoção dos Direitos Humanos e o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Dentre as oportunidades de inovação, destacam-se parcerias com Lawtechs e Legaltechs para a criação de modelos orientados a dados (data-driven), com aproveitamento das potencialidades oferecidas pelos recursos digitais[12], em especial por meio de operações inteligentes que fazem uso de algoritmos de inteligência artificial (IA)[13].

De acordo com o radar da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), o ecossistema de empresas de tecnologia aplicada ao Direito avançou exponencialmente nos últimos anos, em atividades tais como IA voltada para o Setor Público; resolução de conflitos online; analytics e jurimetria; extração e monitoramento de dados públicos; automação e gestão de documentos; bem como regtech e computação em nuvem.[14]

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), atento às inovações e buscando eficiência, lançou iniciativa pioneira de Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI), mirando diretamente nas startups. O foco é aplicar o Marco Legal das Startups (LC 182/2021) no Judiciário, buscando ideias revolucionárias que simplifiquem e modernizem a entrega de informações à sociedade, tornando a comunicação com o cidadão mais simples, clara e compreensível.[15]

Outra iniciativa disruptiva foi a abertura do Supremo Tribunal Federal (STF) para dialogar com empresas e demais interessados sobre o uso de IA. Por meio do Chamamento Público nº 1, de 7/11/2023, a Corte buscou o “desenvolvimento de protótipos de soluções de inteligência artificial generativa para criação de sumários automatizados em contexto jurídico no âmbito do STF”[16].

O próprio Tribunal de Contas da União (TCU) tem promovido uma cultura de inovação aberta no Poder Público. De um lado, difunde metodologias de apoio à contratação aberta, a exemplo da Plataforma de Compras Públicas para Inovação (CPIN)[17].

De outro lado, a Corte de Contas está avançando em iniciativas de inovação, como por meio da Encomenda Tecnológica (ETEC)[18] para pesquisa e desenvolvimento de instrução processual assistida por IA, para detecção de significado em peças processuais, jurimetria e redação de peças, e do Chamamento Público, para o desafio de fiscalização de obras urbanas de pavimentação de forma remota e em larga escala, o qual subsidiará decisão sobre futura CPSI[19].

A adoção de uma política Open Justice pelos tribunais contribuirá para a formação de um big data do Judiciário, viabilizando o uso eficiente de tecnologias digitais e IA para lidar com grandes e diversas quantidades de dados e às várias possibilidades de combinação, avaliação e processamento desses dados por autoridades privadas e públicas em diferentes contextos.[20]

Sem dados abertos, o Judiciário e os setores privados seguirão enfrentando dificuldades para alavancar a transformação digital e oferecer serviços públicos orientados pela tecnologia, com entrega de valor para toda a sociedade.[21]

Políticas de dados abertos têm sido adotadas em um crescente número de países, como medida para promover os Direitos Humanos, aumentar a transparência dos sistemas de justiça e diminuir a assimetria da informação, sendo uma fonte de fortalecimento da democracia.[22]

O casamento da inovação aberta com uma política Open Justice contribuirá para a efetiva revolução do Judiciário, com promoção da tão almejada eficiência e celeridade, além da redução de custos para tribunais, empresas e cidadãos.


[1] CNJ. Justiça em Números 2023. Brasília: CNJ, 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf. Acesso em: 8 mar. 2024.

[2] O Justiça 4.0 representa um conjunto estruturado de atos normativos e medidas, administrativas e jurisdicionais, somado a projetos voltados para a consecução de seus 4 eixos de atuação: (1) Inovação e tecnologia; (2) Gestão de informação e políticas judiciárias; (3) Prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro e recuperação de ativos; e (4) Fortalecimento de capacidades institucionais do CNJ. Fonte: CNJ, Justiça 4.0. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/.

[3] VIEIRA, Thiago Gontijo. Democratização do acesso à justiça: inovação em benefício de toda a sociedade. JOTA, 9 maio 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulando-a-inovacao/democratizacao-do-acesso-a-justica-inovacao-em-beneficio-de-toda-a-sociedade-09052023. Acesso em: 8 mar. 2024.

[4] CNJ. DataJud: Base Nacional de Dados do Poder Judiciário. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2023. Disponível em: https://painel-estatistica.stg.cloud.cnj.jus.br/estatisticas.html. Acesso em: 8 mar. 2024.

[5] VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; BURGOS, Marcelo Baumann. Quem somos: A magistratura que queremos. Rio de Janeiro: AMB, 2018. Disponível em: https://amaerj.org.br/magistratura-que-queremos/. Acesso em: 8 mar. 2024.

[6] PICCOLI, Ademir. As sete premissas para acelerar a inovação. In: LUINARDI, Fabrício Castagna; CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Inovação judicial: fundamentos e práticas para uma jurisdição de alto impacto. Brasília: Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021. Disponível em: https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2021/12/Livro-Inovacao-judicial.pdf. Acesso em: 8 mar. 2024.

[7] CNJ. Justiça em Números 2023. Brasília: CNJ, 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf. Pag. 107. Acesso em: 8 mar. 2024.

[8] CASTELLIANO, Caio; GUIMARAES, Tomas Aquino. Court Disposition Time in Brazil and European Countries. Revista Direito GV, São Paulo, v. 19, e2302, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-6172202302. Acessado em: 10 de Mar. 2024.

[9] FREIRE, Alexandre; VIEIRA, Thiago. Ambiente virtual no Supremo Tribunal Federal: eficiência jurisdicional e ampliação do direito de acesso à justiça no período da pandemia de covid-19. In: Revista Judicial Brasileira (ReJuB), Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), Brasília, p. 223-255, 2023. Edição especial. Disponível em: https://revistadaenfam.emnuvens.com.br/renfam/issue/view/17. Acesso em: 8 mar. 2024.

[10] VIEIRA, Thiago Gontijo; SILVA, Thomas Ampessan. Pauta de julgamentos em sessões virtuais: uma análise da calendarização a partir do STF. In: Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Ensino e Teoria do Direito, São Paulo, 37. ed. 2021. Disponível em: https://issuu.com/esa_oabsp/docs/edic_a_o_37_ensino_e_teoria_do_direito_paginas_v2/s/14400287. Acesso em: 8 mar. 2024.

[11] VIEIRA, Thiago Gontijo. Inovação aberta e justiça digital: transformação disruptiva do judiciário por meio da colaboração com empresas startups. 23 nov. 2023. 291 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Nove de Julho, São Paulo. 2023b. Disponível em: https://bibliotecatede.uninove.br/. Acesso em: 8 mar. 2024.

[12] SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016.

[13] TAVARES, André Ramos. O Juiz Digital: da atuação em rede à Justiça algorítmica. São Paulo: Editora Saraiva, 2022.

[14] AB2L. Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs. Ecossistema. Radar de lawtechs e lealtechs, 2023. Disponível em: https://ab2l.org.br/ecossistema/radar-de-lawtechs-e-legaltechs/. Acesso em: 8 mar. 2024.

[15] TJMG. CPSI:Edital nº. 28/2023. Disponível: http://www8.tjmg.gov.br/licitacoes/consulta/consultaLicitacao.jsf;jsessionid=618F83611EA31324254862087C6CE199.portal_node1?anoLicitacao=2023&numeroLicitacao=28. Acessado em: 10 mar. 2024.

[16] STF. STF vai contratar seu primeiro sistema com fundamento na legislação de incentivo à inovação tecnológica, 12/9/2019. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2019. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=423418&trk=public_post_comment-text. Acesso em: 20 mar. 2024.

[17] TCU. CPIN: Plataforma de Compras Públicas para Inovação, 2022c. Disponível em: https://inovacpin.org/. Acesso em: 20 mar. 2024.

[18] TCU. Chamamento Público para Encomenda Tecnológica, 2022d. O objeto da presente ETEC é o desenvolvimento de um módulo que agregue funcionalidades baseadas em inteligência artificial à Solução de Instrução Assistida de processos do TCU. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/licitacoes-e-contratos-do-tcu/licitacoes/etec/.  Acesso em: 20 mar. 2024.

[19] TCU. CPSI: Contrato Público de Solução Inovadora, 2023. Desafio para fiscalização de obras urbanas de pavimentação. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/licitacoes-e-contratos-do-tcu/cpsi/. Acesso em: 20 mar. 2024.

[20] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria geral do direito digital: transformação digital: desafios para o direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

[21] GUSMÃO, Bráulio. Itinerário para um programa de aceleração digital na jurisdição. In: LUINARDI, Fabrício Castagna; CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Inovação judicial: fundamentos e práticas para uma jurisdição de alto impacto. Brasília: Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021. Disponível em: https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2021/12/Livro-Inovacao-judicial.pdf. Acesso em: 8 mar. 2024.

[22] MARQUES, Daniel et al. Abertura dos dados processuais: um debate necessário para a promoção de um Judiciário Inteligente. In: LEMOS, Ronaldo; MARQUES, Daniel. Open Justice na Era da Hiperconectividade. São Paulo: Thompson Reuters, 2023. Pág. 25.