Os impactos climáticos afetam as populações de modo diverso e mais grave, conforme os marcadores sociais da desigualdade (cor, gênero, religião, etnia, renda, origem etc.) se intensificam. Exemplo dessa realidade é o estresse hídrico extremamente alto enfrentado por 25% da população mundial e que se concentra em países do Oriente Médio e da África, embora essas regiões não sejam as que mais exploraram historicamente os recursos naturais.
Por seu turno, na América do Norte e na Europa, a demanda se estabilizou, graças a investimento em medidas de eficiência no uso da água. Os dados são do Atlas de Riscos Hídricos de Aquedutos do World Resources Institute[1] e evidenciam como a crise climática afeta de modo diverso as populações, inclusive quanto a um dos recursos mais basilares do planeta, que é a água.
Nessa conjuntura, a Justiça climática é uma corrente filosófica que visa, a partir da observância dos direitos humanos e fundamentais, diminuir as vulnerabilidades acentuadas pelo clima, tanto no plano internacional como no plano interno de cada ordem constitucional.
No plano internacional, países mais desenvolvidos e poluidores devem ter maior responsabilidade intergeracional do que países em desenvolvimento, que não possuem infraestrutura adequada para lidar com os impactos climáticos. Já no plano interno, coletivos vulneráveis, como a população em situação de rua, comunidades indígenas e quilombolas devem ter especial atenção dos órgãos do Estado relativamente aos impactos climáticos.
No Brasil, a Constituição de 1988 reconhece, no art. 225, o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental difuso, de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Em consequência, impõe tanto ao Poder Público quanto à sociedade o dever defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (responsabilidade intergeracional pela tutela do meio ambiente).
Além disso, são fundamentos da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3° da Constituição).
Esses são paradigmas do contencioso constitucional que têm sido invocados para apresentar ao Supremo Tribunal Federal uma pauta de litigância climática estratégica no âmbito da jurisdição constitucional, com o intuito de trazer a Corte ao debate sobre políticas públicas em matéria ambiental, notadamente por meio de atuação em processos estruturais e complexos.
A intervenção judicial, em caráter complementar à atuação política clássica, para promover a tutela jurisdicional do meio ambiente ecologicamente equilibrado, pode ser bastante positiva. Isso porque os danos ambientais que são provocados na atualidade apenas geram efeitos concretos anos depois, enquanto a atuação política é movida pelo prazo eleitoral e o imediatismo, de modo que se torna, muitas vezes, difícil efetivar um desenvolvimento sustentável na política majoritária.
Por outro lado, a atuação da jurisdição constitucional, atenta à responsabilidade intergeracional, pode impulsionar comportamentos promotores de justiça climática no Brasil. Nessa conjuntura, o Supremo Tribunal Federal instituiu um Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (NUPEC), que integra a Assessoria de Apoio à Jurisdição (AAJ) da Corte.
Segundo o STF, o escopo do núcleo é apoiar a atuação dos gabinetes na identificação e processamento de ações estruturais e complexas, mediante suporte para, entre outras medidas, emitir notas técnicas sobre os temas discutidos nessas ações; e auxiliar na construção de indicadores para monitoramento, avaliação e efetividade das medidas determinadas pelo tribunal. Atualmente, há sete processos em monitoramento pelo núcleo, dentre os quais cinco referem-se à chamada pauta verde ou ambiental.[2]
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, de relatoria do ministro Roberto Barroso, postulava-se uma proteção especial dos povos indígenas no contexto da pandemia de Covid-19, notadamente para proceder à criação de barreiras sanitárias, à instalação de sala de situação, à retirada de invasores das terras indígenas, ao acesso de todos os indígenas ao Subsistema Indígena de Saúde e à elaboração de plano para enfrentamento e monitoramento da Covid-19.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), autora da demanda, e os amicus curiae que intervieram no feito cientificaram a ocorrência de ataques a tiros a indígenas, mortes, desnutrição, anemia, contágio por mercúrio, desmatamento e garimpo ilegal, bem como a prática de ilícitos de toda ordem decorrentes da presença de invasores nas terras indígenas Yanomami e Munduruku, no curso da pandemia.
Em razão disso, ao apreciar a demanda, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a maior parte dos pedidos formulados, determinando a adoção imediata de todas as medidas necessárias à proteção da vida, da saúde e da segurança da população indígena interessada.[3]
O núcleo está monitorando também a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 760, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, que diz respeito ao Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm).
Ao julgar esse processo, o Supremo Tribunal Federal determinou que a União e os órgãos e entidades federais competentes (Ibama, ICMBio, Funai e outras indicadas pelo Poder Executivo federal), dentro de suas respectivas competências legais, formulem e apresentem um plano de execução efetiva e satisfatória do PPCDAm ou de outros que estejam vigentes, especificando as medidas adotadas para a retomada de efetivas providências de fiscalização, controle das atividades para a proteção ambiental da Floresta Amazônica, do resguardo dos direitos dos indígenas e de outros povos habitantes das áreas protegidas (unidades de conservação e terras Indígenas), para o combate de crimes praticados no ecossistema e outras providências comprovada e objetivamente previstas no plano.[4]
São monitoradas, ainda, outras três ADPFs (743, 746 e 857), de relatoria do ministro André Mendonça, em que se impugnou comportamento do Poder Público no enfretamento de incêndios no Brasil, especialmente nos biomas da Amazônia e do Pantanal. Os pedidos foram julgados parcialmente procedentes para determinar, entre outros pontos, que o Governo Federal apresente, no prazo de 90 dias, um plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, que abarque medidas efetivas e concretas para controlar ou mitigar os incêndios e para prevenir que novas devastações.[5]
Esses julgamentos paradigmáticos da chamada pauta verde tiveram o condão de impulsionar os agentes da política majoritária a articular comportamentos que efetivem a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, especialmente dos biomas brasileiros, além de resguardar direitos fundamentais de populações indígenas tradicionais, promovendo o princípio da justiça climática.
Há, ainda, outros julgados relevantes em matéria ambiental que não estão em monitoramento pelo Núcleo de Processos Estruturais e Complexos, mas que têm uma função transformadora da sociedade no aspecto climático, como é o caso do Fundo da Amazônia, em que o STF determinou sua reativação, para propiciar o desenvolvimento de projetos e a destinação de ativos financeiros doados na ordem de mais de R$ 3 bilhões de reais.[6]
Essa decisão foi tomada no âmbito da ADO 59, de relatoria da ministra Rosa Weber, uma vez que o tribunal compreendeu que o quadro normativo e fático da Amazônia Legal traduzia a realidade de autêntico estado de coisas inconstitucional, a revelar cenário de tutela insuficiente e deficiente dos biomas patrimônios nacionais por parte do Estado brasileiro.
Especificamente quanto à tutela jurisdicional dos direitos fundamentais de grupos vulneráveis como meio para mitigar os impactos climáticos desproporcionais, podemos citar também o caso da população em situação de rua, no qual o STF deferiu medida cautelar determinando a adoção de diversas medidas para suplantar o estado de coisas inconstitucional vivido por esse coletivo vulnerável.
No que diz respeito ao tema em reflexão, destacam-se determinações básicas voltadas à redução do impacto climático nesse grupo, como: sejam disponibilizados bebedouros, banheiros públicos e lavanderias sociais de fácil acesso para população em situação de rua, bem como seja promovida ampla disponibilização e divulgação de alertas meteorológicos, por parte das Defesas Civis de todos os entes federativos, para que se possam prever as ondas de frio com a máxima antecedência e prevenir os seus impactos na população em situação de rua.[7]
Finalmente, ao suspender a aplicação do art. 39, §4º, da Lei 12.844/2013, que presumia a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente, o STF deu mais um passo no combate ao garimpo ilegal e à proteção de comunidades indígenas no Brasil.
Essa decisão foi tomada no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7.273 e 7.345, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, nas quais o STF fixou, ainda, prazo de 90 dias para que o Poder Executivo adotasse novo marco normativo para fiscalização do comércio e medidas que impedissem a aquisição de ouro extraído de áreas de proteção ambiental e de terras indígenas.
Nos referidos julgamentos, o Plenário acompanhou voto do relator, para quem a norma impugnada não é coerente com o dever de proteção ao meio ambiente, e a simplificação do processo permitiu a expansão do comércio ilegal, fortalecendo o garimpo ilegal, o desmatamento, a contaminação de rios e a violência nas regiões de garimpo, chegando a atingir os povos indígenas das áreas afetadas.[8]
Diante de todos esses precedentes, é possível constatar que o Supremo Tribunal Federal, em sua jurisprudência, tem se mostrado consciente da responsabilidade intergeracional e assumido papel de relevante interveniente nas discussões sobre políticas públicas em matéria ambiental, como meio para minimizar os impactos climáticos na degradação do meio ambiente de um modo geral.
A Corte tem, ainda, atuado especialmente na tutela de direitos fundamentais de coletivos vulneráveis, como comunidades indígenas e população em situação de rua, que são significativamente mais afetados pelos impactos nocivos da mudança climática.
[1] Atlas de Riscos Hídricos de Aquedutos do World Resources Institute. Disponível em : < https://www.wri.org/insights/highest-water-stressed-countries >. Acesso em 17/6/2024.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Dados Estatísticos do Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (NUPEC). Disponível em : <https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=cmc&pa-gina=nupec_apresentacao>. Acesso em 17/6/2024.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo em Tutela Provisória Incidental na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, Dje de 26/8/2021.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 760, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgamento em 14/3/2024.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 743, Rel. Min. André Mendonça, Tribunal Pleno, DJe de 20/3/2024.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 59, Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe de 16/8/2023.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 976, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe de 21/9/2023.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.273, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe de 10/5/2023.