Duas notícias da semana reforçam a necessidade de governo, Congresso e empresas agirem de forma mais contundente para redução da pobreza e desigualdade no país. Em meio ao Fórum Econômico Mundial de Davos, a Oxfam divulgou um estudo mostrando um dramático aumento na desigualdade social do mundo e do Brasil. Logo depois, o economista Sergio Gobetti publicou no blog do Ibre uma nota técnica com base nos dados do Imposto de Renda também mostrando as evidências de aumento na concentração de renda. O estudo foi noticiado em manchete da Folha.
Segundo a Oxfam, a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo aumentou 114% desde 2020, reflexo, entre outras coisas, de uma disparada na lucratividade das empresas e da distribuição de dividendos aos acionistas.
O documento mostra que, no Brasil, o 0,01% mais rico possui 27% dos ativos financeiros, enquanto o 0,1% mais rico, 43%. O 1% mais rico detém 63% da riqueza financeira, enquanto os 50% mais pobres têm apenas 2%. “Fica nítido que a propriedade de ações e participações, em termos econômicos, reflete uma plutocracia e não uma democracia”, diz o estudo da organização social internacional.
O material é rico em exemplos de desigualdade. “Nos Estados Unidos, o patrimônio de uma família negra comum é apenas 15,8% do patrimônio de uma família branca comum. No Brasil, em média, a renda dos brancos está mais de 70% acima da renda da população negra”, diz o texto. E por aí vai.
A análise da Oxfam aponta o dedo para o comportamento das grandes corporações e seus líderes. “Empresas poderosas também usaram seus recursos e seus acessos para promover leis e políticas trabalhistas favoráveis, que mantivessem um status quo desigual”, diz o texto. “O poder das grandes empresas tem sido um fator importante na transferência de valor da maioria para uns poucos ultrarricos. As maiores empresas do mundo têm obtido um nível sem precedentes de lucros inesperados nos últimos anos, grande parte dos quais foi transferida a seus acionistas através de dividendos ou reaquisição de ações (ou seja, recompras)”, complementa a Oxfam, apontando que os ganhos desses acionistas em geral são subtributados.
O texto traz ainda que apenas 0,4% das mais de 1.600 maiores e mais influentes empresas do mundo se comprometeram publicamente com o pagamento de salários dignos a seus trabalhadores e apoiam isso em suas cadeias de valor. “Levaria 1.200 anos para uma trabalhadora do setor de saúde ganhar o que um CEO de uma das 100 maiores empresas da lista da Fortune ganha em média por ano”, completa o texto.
O estudo de Sergio Gobetti abarca um universo bem mais restrito. Seu alvo foi a mais recente atualização dos dados do Imposto de Renda, que também foi objeto de análise por parte da secretaria de política econômica do ministério da Fazenda.
“O que se vê é que, além dos mais ricos terem, em média, maior crescimento de renda do que a base da pirâmide, a performance é tanto maior quanto maior é o nível de riqueza. Ou seja, enquanto a maioria da população adulta teve um crescimento nominal médio de 33% em sua renda no período de cinco anos, marcado pela pandemia, a variação registrada pelos mais ricos foi de 51%, 67% e 87% nos estratos mais seletos. Entre os 15 mil milionários que compõe o 0,01% mais rico, o crescimento foi ainda maior: 96%”, diz Gobetti, que comparou os dados nominais de 2022 com 2017.
Dessa forma, explica o economista, a proporção do bolo apropriada pelos 1% mais rico da sociedade brasileira cresceu de 20,4% para 23,7%% entre 2017 e 2022, sendo que a maior parte foi absorvida por somente 153 mil adultos. Menos mal que todos os segmentos cresceram no período e todas as camadas da sociedade tiveram ganho de renda, mas é importante ressaltar que a grande maioria da população praticamente empatou com a inflação do período, enquanto uma minoria bateu com folga a inflação.
Os materiais evidenciam que a reforma da renda, que a PEC da reforma tributária determinou que o governo envie até março, precisa ser tema prioritário. Uma grande massa de rendimentos hoje, via dividendos ou recursos da atividade rural, não é tributada no Brasil.
Ainda que seja necessário lembrar que parte da cobrança de dividendos em tese estaria na alíquota de 34% do IRPJ/CSLL nas empresas, o volume exacerbado de deduções existentes derruba a alíquota efetiva em vários casos para baixo de 20%. O sistema brasileiro precisa mudar.
No início do ano, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, indicou que por conta das eleições municipais, há risco de a discussão da reforma da renda ficar para 2025. A fala não significa que ele jogou a toalha, segundo apurou o JOTA , mas evidencia que entre regulamentar a reforma do consumo aprovada pelo Congresso e enfrentar o tema da renda, o segundo tende a esperar (mesmo com o projeto enviado). Até tem lógica, o tema é urgente e talvez faça mais sentido deixar alguns capítulos, como o imposto seletivo, para 2025 para ter espaço político para a renda.
Além disso, a sociedade, especialmente os mais ricos, têm o desafio de se conscientizar de que o agravamento da desigualdade é um problema. Não há críticas aqui a ganhar dinheiro e enriquecer. Mas quem está em posição de liderança nas empresas precisa pensar e efetivamente agir para compartilhar mais os ganhos com seus trabalhadores (via salários) e consumidores (via preços).
Parece coisa de sonhador, mas na verdade é pragmatismo. Uma sociedade em que poucos ganham e muitos ficam no mesmo lugar ou perdem é uma panela de pressão crescente. Não é de se estranhar que extremismos surjam a toda hora pelo mundo e a democracia frequentemente tem sido questionada. A tarefa não é só de governos, que inclusive tendem a perder a mão quando se trata de enfrentar injustiça, é de todos.