Administração Pública

Normas para contratações públicas em tempos de crise: uma resposta a calamidades

Mudanças, necessidades e desafios para a transparência e a eficiência na gestão de recursos públicos

contratações públicas
Crédito: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

As recentes mudanças climáticas que têm afetado o Rio Grande do Sul têm lançado um desafio adicional ao Estado brasileiro. Já é possível ver os estragos que as fortes chuvas que acometeram a região deixaram, mas não é possível saber exatamente o que será encontrado quando a água toda baixar.

Uma coisa, contudo, já se sabe: o aparato burocrático não está preservado. Com o alagamento de prédios e os danos a equipamentos e redes, a administração dos municípios, do estado e dos órgãos federais lá situados fica comprometida. A situação levou o governo federal a refletir sobre como ficam as aquisições públicas em situações como essa. Diante de uma calamidade aguda como a inundação no sul do país, fica impossível operacionalizar alguns processos necessários para as aquisições governamentais.

Uma das primeiras questões que se tornaram urgentes foi a das doações para salvar vidas. Houve intensa mobilização das organizações da sociedade civil, de empresas e de pessoas físicas para viabilizar tais doações. Diante disso, o governo federal emitiu, no dia 10 de maio, o Comunicado 02/2024 para desburocratizar o recebimento de doações destinadas ao socorro no estado gaúcho. Mas é preciso ir além desse recebimento.

A Administração Pública precisa comprar bens e contratar mão de obra essenciais para garantir serviços básicos do dia a dia, por exemplo, os de segurança, educação e obras, como a construção de estradas e o fornecimento de energia e água. Em situações de calamidade, essas contratações incluem ainda, por exemplo, a de equipes de resgate, profissionais e fornecedores de equipamento e suprimentos para a saúde, de alimentos, empresas de construção civil, contratações que são fundamentais para a reconstrução da infraestrutura danificada, como estradas, pontes e hospitais.

Em dias normais, as contratações públicas são feitas por sistemas informáticos conectados, preferencialmente por licitações em meio eletrônico, para garantir a transparência e a participação de diversos fornecedores concorrentes e, com isso, a aquisição da melhor proposta pelo melhor preço. No entanto, a situação calamitosa pede urgência e resultou na inutilização de prédios e equipamentos de órgãos governamentais, o que impede ou dificulta a abertura e o acompanhamento de processos burocráticos, como é o caso de uma licitação ou mesmo a assinatura de um contrato.

Em resposta a essa emergência, o governo federal promulgou a MP 1221, em 17 de maio, com uma série de disposições para facilitar as contratações de bens, obras e serviços necessários para lidar com os impactos de calamidades. Trata-se de uma ação para garantir agilidade na resposta às emergências, evitando prejuízos na manutenção dos serviços públicos, e para prezar pela segurança dos cidadãos e do patrimônio público e particular.

A MP diminui as obrigações impostas pela Lei 14.133/21, que normatiza as contratações governamentais. A regra para casos de calamidade permite a dispensa de licitações, inclusive para serviços de engenharia, e amplia o limite de valor de contratos verbais para até R$ 100 mil. Os prazos para apresentação de lances e propostas em licitações podem ser reduzidos pela metade dos que estão estabelecidos na Lei 14.133/21, como forma de acelerá-las.

Também fica facilitado o acesso ao Sistema de Registro de Preços (SRP), em que são documentados valores e quantidades de itens contratados em uma Ata de Registro de Preços, como resultado de uma licitação (ou de uma contratação direta com vários órgãos). Órgãos públicos dentro de um limite, podem aderir a esse registro quando precisarem adquirir os itens contratados, sem precisar abrir nova licitação.

Aplicada a MP, é possível contratar até cinco vezes o quantitativo de cada item de uma ata de registro de preços. Já a Central de Compras do Governo Federal (gerida pela Secretaria de Gestão e Inovação Seges/MGI) poderá gerenciar contratações desse tipo sem limitações de quantitativos.

Também foram ampliadas as possibilidades de parcerias entre órgãos públicos. A Lei 14.133/2021 proíbe que órgãos federais utilizem as Atas registradas por órgãos estaduais e municipais (e os Estados de utilizarem as atas municipais). A Lei também proíbe que um órgão utilize o SRP a partir de uma contratação direta, a não ser que se associe previamente com outro órgão.

Todas essas proibições foram suprimidas no contexto da MP: a União pode aderir a atas dos órgãos estaduais e municipais e o Estado aderir nas atas municipais e, além disso, um órgão pode utilizar o SRP em uma dispensa ou inexigibilidade sem estabelecer uma parceria prévia com outros órgãos; isso poderá ser feito depois. Com essas permissões, significam que mais entidades governamentais podem se associar para realizarem compras em conjunto em um só processo de contratação.

Essa é uma estratégia para simplificar e acelerar os trâmites, garantindo que os recursos sejam direcionados de forma eficiente e sem burocracia excessiva, especialmente em momentos críticos como os de calamidade. Além disso, é possível que possam obter preços e condições mais vantajosos, com a perspectiva de adquirirem bens e serviços em maior quantidade.

Na expectativa de agilizar novos contratos e de garantir que, antes de tudo, os serviços necessários sejam prestados, a MP dispensa a apresentação de documentos técnicos preliminares na fase preparatória das contratações, cobrando que a gestão de risco seja feita ao longo da execução contratual. E se a quantidade de fornecedores de bens e serviços essenciais para a resolução da situação for restrita, a apresentação de alguns documentos relacionados às regularidades fiscal e econômico-financeira também pode ser dispensada.

É preciso ter em mente também que, nessas situações, muitos fornecedores deixam de existir ou perdem a capacidade de atendimento. Por isso, é vital manter os contratos existentes, diminuindo a necessidade de novas contratações. Assim, pela MP, os contratos vigentes podem ser prorrogados por prazo superior aos limites legais atuais, além de ajustados em até 50% do valor inicial e contratos feitos já sob as regras da MP podem ter ajuste de até 100%. Estes terão duração de um ano, podendo ser prorrogados por período igual, desde que as condições e os preços permaneçam favoráveis para a Administração Pública. Vale lembrar que, sob a Lei 14.133/21, alterações contratuais consensuais devem respeitar limites de até 25% do valor inicial atualizado.

É importante reconhecer que essas mudanças também trazem consigo desafios e preocupações, especialmente no que diz respeito à transparência e ao controle dos gastos públicos. A dispensa de licitações e a flexibilização dos procedimentos de contratação exigem um acompanhamento rigoroso para evitar possíveis abusos e garantir a aplicação adequada dos recursos. Por isso, todos os contratos firmados com base na Medida Provisória precisam constar no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) em até 60 dias depois de firmados. Incluindo a exposição de dados sobre os fornecedores, o valor empenhado e o que foi contratado, entre outras informações.

Isso porque, enquanto as medidas emergenciais são necessárias para lidar com as situações críticas, e o salvamento de vidas é prioridade, é crucial que o governo mantenha um compromisso contínuo com a transparência, a prestação de contas e a responsabilidade fiscal. A integração dos contratos no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) é um passo fundamental nesse sentido.

A MP 1221/24 representa uma resposta importante às necessidades urgentes do estado do Rio Grande do Sul, bem como de todas as calamidades que não esperamos que aconteçam, mas cuja ocorrência potencial não pode ser ignorada. A norma é o primeiro passo em direção a uma recuperação completa e sustentável, mas ainda resta o desafio de garantir a reconstrução das áreas atingidas, o fortalecimento das instituições e o bem-estar de todos os cidadãos afetados.