Contadora de Santa Catarina gravou vídeo, retratando-se de ofensa, que havia proferido contra o povo nordestino, e de sugestão de discriminação em contratação de empregados. Isso ocorreu após atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT), e de aplicação de multa.
Os casos de assédio eleitoral de empregadores contra empregados aumentaram de modo preocupante nesta eleição, segundo denúncia do próprio MPT. Há depoimentos que apontam coação para cometimento de crime, com a ocultação de celulares em roupa íntima, para gravação do voto e posterior apresentação ao empregador, sob pena de perda de emprego.
O assédio eleitoral é a utilização pelo empregador de sua posição na relação de trabalho, coagindo, ameaçando ou prometendo benefício, para que empregados votem ou deixem de votar em determinadas pessoas ou partido. Trata-se de uma tentativa de recompor a velha política do clube das elites da República Velha, por meio do “voto de cabresto.”
Se pensarmos, além disso, nas ameaças e ofensas que o presidente e seus aliados, de dentro e de fora do governo, políticos e empresários, têm feito contra as instituições e o Estado democrático de Direito, cujo exemplo extremo é representado por Roberto Jefferson, podemos concluir que, pela primeira vez na história brasileira, a elite política e econômica envereda, sem freios, pelo caminho da antilegalidade.
Tenho insistido no prefixo “anti,” porque observei, desde o início desse processo, que não se trata apenas de cometer ilegalidades ou de descumprir a Constituição. Na verdade, essa elite passou a abertamente militar contra a ordem constitucional, empregando todos os artifícios tecnológicos possíveis para inverter a verdade de fatos e atitudes, buscando converter política e direito em instrumentos de pura e simples dominação e exploração social. Daí chamar esse regime, instaurado por essa elite, de anticonstitucional.
Antes, era o pobre periférico que se opunha ao direito, visto como instrumento de opressão, num país que havia sido colonizado, dividido entre os que se voltavam para fora e os condenados a viver em seu interior, explorados por uma política colonial persistente. A elite bradava seu cumprimento da lei, numa cruzada moralista permanente — mesmo que se tratasse da velha regra de destinar aos amigos tudo, aos indiferentes, a letra da lei, e aos inimigos, a força bruta.
Quando essa elite descumpria a regra, com método sofisticado, pela sonegação, “caixa dois,” pequena e grande corrupção, além do recurso a golpes de quando em quando, apresentava sempre a justificativa da autodefesa da sociedade contra os políticos, engendrando uma segunda legalidade, profunda e fictícia, que determinava a restauração da tradicional ordem das coisas. Aos pobres, empurrados para a periferia material e imaterial, sobrava ou o desconhecimento, ou a descrença no caráter da lei, pois a experiência era sempre a de ser objeto da violência nas relações privadas e públicas, tendo a força bruta sempre voltada contra si.
Trinta e poucos anos de aplicação — mesmo que contraditória e moderada — dos valores da Constituição Cidadã mudaram muita coisa: a emergência do povo, a explosão da diversidade, o acesso a bens e serviços, o empoderamento de grupos oprimidos e de identidade invisibilizada.
A elite viu-se sem pretexto para pregar a legalidade que lhe convinha, pois novas interpretações se impuseram, quando as desigualdades e as injustiças se tornaram transparentes, sobretudo pelo fato de o Brasil se ter inserido na ordem interamericana e internacional, processo em que, inclusive, recuperou suas raízes africanas e foi instado a refazer sua relação radical com as sociedades indígenas, provocado e condenado a reparar os erros de seu processo anticivilizatório colonial.
Hoje, é a elite que prega a desobediência (in)civil. Quer ditadura, armas contra o povo, pressionar trabalhadores a votar em seus candidatos enlouquecidos pela obsessão pseudorreligiosa e militarista. Brada contra a Constituição e as instituições que essa criou ou aperfeiçoou, fala mal dos direitos humanos, faz pouco caso dos deveres e despreza as políticas públicas.
Nesse contexto, é lícito indagar quais diferenças haveria entre Bolsonaros, bolsonaristas, Jeffersons, Damares, Moros, lavajatistas, Pazuellos, Salles, Guedes, religiosos fanáticos, preconceituosos e negacionistas, empresários assediadores, proprietários rurais armados, destruidores do patrimônio ambiental, políticos apoiadores de milícias urbanas, destruidores das estruturas de Estado e de proteção do trabalho, militantes antieducação, contra o ensino público e universal, anticultura, doutrinadores da irrealidade, influenciadores digitais propagadores de fake news, artistas financiados para impor uma arte fácil e descartável, desvirtuando e estandardizando culturas, enfim, todos os que, aparentemente, têm em comum a contribuição para encaminhar o Brasil a uma ordem incompatível com as escolhas constitucionais do povo brasileiro, contra o Estado democrático de Direito.
Levados ao poder direta ou indiretamente pelo voto, em escolhas de legitimidade discutível, tendo em vista o abuso de poder político, social e econômico, e o emprego intensivo de maquinário tecnológico destinado a gerar dúvidas sobre o próprio plano da existência e da importância da política e da democracia, talvez a diferença esteja em que uns já foram condenados, em seu colaboracionismo golpista. Outros gozam do benefício da dúvida, muito embora usufruidores da aliança espúria entre política, religião, justiça e malfeitoria.
Essa dúvida permite que todos posem de benfeitores exatamente da política, da religião e da justiça.
Malfeitoria e benfeitoria são termos que escolhi pela adequação perfeita entre o regime anticonstitucional que se está impondo no Brasil, e sua analogia com o regime colonial, nos quais os feitores exerciam a força para retirar do povo suas riquezas, entregando-as a preço vil aos que comandavam o império da ambição desmedida.
Terá a ordem da feitoria um fim, após ter implantado o Estado da maior desigualdade e pobreza mundial já testemunhado?
Para tanto, é preciso recuperar a coragem política e jurídica. Não se intimidar em levar adiante um processo sério de investigação dos crimes cometidos e de condenação de seus responsáveis. Nisso se inclui até mesmo contestar os mandatos políticos conquistados à custa daquele abuso e daquele uso indevido da tecnologia. Se bolsonarismo, lavajatismo, evangelicalismo, militarismo, milicialismo e ganância se enraizaram nas estruturas e instituições brasileiras, cumpre-nos o esforço político e jurídico de arrancar as ervas daninhas do espaço e do tempo constitucionais.