seguro de responsabilidade civil

TJSP: Seguradora deve indenizar empresa que vendeu barrinhas com fungos ao Exército

Tribunal considerou que seguradora Tokio Marine caiu em contradição tentando se esquivar de sua obrigação

Crédito: Unsplash

A 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu, na semana passada, o direito da distribuidora de alimentos Cellier a ser indenizada por um seguro de responsabilidade civil após a empresa vender ao Exército brasileiro barrinhas de proteína que desenvolveram fungos prematuramente.

Para o relator, desembargador Alfredo Attié, a seguradora Tokio Marine, que negou a cobertura sob o argumento de que a contaminação por fungos seria um excludente de cobertura, caiu em contradição na “busca, por todos os meios, [de] se esquivar de sua obrigação”.

A apólice previa a assunção do risco de eventual responsabilização por defeito de fabricação, falha ou mau funcionamento de produtos comercializados em território brasileiro. Havia ainda um adicional em relação às despesas necessárias para a retirada de produtos do mercado. Ao mesmo tempo, o contrato também previa que a seguradora não seria responsável pela: “ação de fungos, mofos, esporos, bactérias, ou qualquer outro tipo, natureza ou descrição de microrganismo, incluindo, porém, não limitado, a qualquer substância cuja presença figure como ameaça real ou potencial à saúde humana”.

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A Cellier se viu na situação de acionar o seguro quando teve de reparar o Exército em razão do desenvolvimento de fungos em produtos vendidos à Força. A empresa era responsável pela comercialização de kits com alimentos, dentre os quais barras de proteína, que seriam consumidos pelos militares.

Mesmo seladas em recipientes de borracha e dentro da data de validade, as barrinhas estavam infestadas de fungos. A proliferação, como mostrou depois o laudo pericial, ocorreu em virtude de um defeito de fabricação:  a barrinha tinha água demais, de forma que os microrganismos puderam se desenvolver prematuramente.

A fabricante não é a Cellier, mas foi ela a acionada para realizar o recall dos kits para substitui-los com novas barrinhas, bem como foi a responsável por reparar o dano causado. Segundo o Exército, 11 militares apresentaram sintomas de intoxicação alimentar após a ingestão do produto.

Nos cálculos da distribuidora, a retirada de circulação e entrega de novos produtos resultou em um desembolso de cerca de R$ 1,49 milhão. Por sua vez, a reparação do dano sofrido pelo contrato com o Exército, por perder os kits pela ação do fungo e ter de repô-los, custou-lhe pouco mais de R$ 2,7 milhões.

A Tokio Marine, contudo, sustentou que o sinistro se enquadrava na excludente de cobertura prevista na apólice. Após a produção de prova, que constatou o defeito de fabricação, a seguradora acolheu o pedido em parte, pagando a parcela devida em relação ao recall, R$ 1 milhão, nos termos do limite contratual.

A Cellier foi atrás do restante na Justiça. Na primeira instância, amargou uma derrota, já que o juiz considerou “irrelevante que o desenvolvimento dos fungos deu-se por falha de fabricação, sendo incontroverso que houve a contaminação por fungos, bem como considerando que tal cláusula de exclusão foi devidamente contratada e não se revela abusiva”.

A segunda instância lhe foi mais favorável. Alinhada ao relator, a 27ª Câmara de Direito Privado do TJSP reformou a sentença cujo “entendimento não pode prevalecer, sob pena de premiar o comportamento contraditório da” seguradora.

O desembargador Alfredo Attié ressaltou que a seguradora não pode invocar uma cláusula do contrato principal para negar uma indenização, sendo que concordou em pagar os valores referentes à obrigação acessória, do recall. O magistrado também deu razão à distribuidora de alimentos no sentido de que o aparecimento dos fungos decorreu de falhas na fabricação.

Attié criticou, além disso, a lógica argumentativa da Tokio Marine, que, em um segundo momento, negou a cobertura pelo fato de o Exército brasileiro não ter formalizado uma reclamação, apenas pedido a substituição dos produtos, o que, afirmou, o desembargador, não é verdade.

E, mesmo que fosse, “sendo a tal ‘reclamação’ necessária para a concessão da cobertura, nos termos da cláusula 1.1.1 das condições gerais, não havia sentido em a ré indenizar a autora pelas despesas com o recall, de modo que tal justificativa também não se sustenta, a não ser que se permita à requerida agir contraditoriamente”.

“Como premissa basilar do dever de lealdade e de transparência, está a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium non potest), o que não foi observado pela ré, que, como já aludido, apresentou justificativas inconstantes para a negativa de cobertura, sem contar que o fato de ter aceitado pagar o valor referente a uma cobertura prevista expressamente como acessória, mas ter se negado a pagar a indenização referente a cobertura principal, pelo mesmo fato gerador.”

O Tribunal determinou o pagamento da indenização, cujo valor deverá corresponder ao do preço final da mesma quantidade de barrinhas distribuídas ao Exército, nos termos da apólice.

Para Luca d’Arce Giannotti, sócio de Ernesto Tzirulnik Advocacia, que atuou do lado da Cellier, a decisão é relevante porque retoma uma posição tradicional do TJSP. É comum, de acordo com o advogado, que as seguradoras “cheguem com um caminhão de motivos” à Justiça para não pagar a indenização que já tinham afastado nas apurações ou não apresentaram na negativa, mas não se acolhia o argumento de comportamento contraditório.

“Há muito tempo não se aplicava isso. Sempre se alegou que a seguradora tinha que ser coerente, mas o Tribunal simplesmente não apreciava a tese ou decidia que o venire contra factum proprium não estava configurado,” disse Giannotti. “Vamos esperar que esse acórdão seja o primeiro de uma nova safra que force as seguradoras a serem mais cuidadosas e coerentes na forma como elas apuram o sinistro e na forma como elas se defendem em juízo.”

Procurada, a Tokio Marine afirmou que não iria se pronunciar. O processo tramita no TJSP sob o número 1108402-23.2021.8.26.0100. Leia a íntegra do acórdão.