Se 2015 foi o ano que parecia não terminar no Supremo Tribunal Federal, o primeiro semestre de 2016 valeu por um ano inteiro para a Corte, dada a quantidade de decisões relevantes – e controversas -, e frente ao desafios institucionais que os ministros tiveram que enfrentar, especialmente em processos com potencial de gerar conflitos com o Legislativo e o Executivo.
O julgamento mais importante neste primeiro semestre foi, certamente, o que permitiu a execução da pena após condenação em segunda instância, independentemente do trânsito em julgado da ação penal. Contribuiu decisivamente para o resultado o entendimento de ministros do Supremo de que o sistema processual e recursal no País promove a impunidade ou contribui para que crimes não sejam punidos em tempo razoável.
Ao analisar o Habeas Corpus 126.292, o tribunal alterou novamente sua jurisprudência sobre o tema e provocou impacto direto na Operação Lava Jato e nas negociações de acordos de colaboração premiada com a força-tarefa do Ministério Público Federal. A decisão mereceu críticas generalizadas da advocacia criminal e contestações enfáticas da academia. E já é alvo de tentativas de reversão no Congresso Nacional e no próprio STF.
As críticas à decisão se baseiam em previsão expressa da Constituição: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
O entendimento de que a pena só poderia começar a ser executada depois de julgados todos os recursos foi firmada pelo STF em 2009, no julgamento do Habeas Corpus 84.078.
Os ministros vinham, há meses, indicando que reveriam essa jurisprudência. Em fevereiro do ano passado, o JOTA publicou: “O sinal foi dado ontem (10/02) pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. O tribunal poderá rever futuramente o entendimento de que a prisão de um condenado só pode ocorrer depois do trânsito em julgado do processo”.
Mendes havia votado, em 2009, com a maioria da Corte contra a possibilidade de execução provisória da pena. A mudança de entendimento do ministro e a alteração na composição do STF desde 2009 já indicavam que a Corte caminhava para rever a interpretação da Constituição. Esta tendência foi consolidada um ano depois, na sessão de 17 de fevereiro deste ano.
Reações
No Congresso, um projeto de lei do deputado Wadih Damous (PT-RJ) propõe que os recursos extraordinário e especial suspendam a eficácia da decisão condenatória e, assim, impeçam a execução provisória da pena.
No Supremo, duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC 43 e 44) buscam reverter a recente decisão da corte. As ações, propostas pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pedem que a Corte reconheça a legitimidade constitucional da nova redação do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP), inserida pela Lei 12.403/2011, que estabeleceu a necessidade de trânsito em julgado para se iniciar o cumprimento da pena.
O projeto no Legislativo é tratado por integrantes do Ministério Público, da Polícia Federal e por parte da imprensa como um retrocesso jurisprudencial e uma tentativa de enfraquecer a Operação Lava Jato.
Diante da possibilidade de serem presos depois do julgamento em segunda instância, réus da Lava Jato se sentiriam pressionados a fechar acordos de delação premiada o quanto antes. Tirar do mundo jurídico essa pressão sobre os investigados seria um estímulo à impunidade, de acordo com aqueles que defendem a execução provisória da pena.
No Supremo, não há votos suficientes para novamente reverter o entendimento sobre este tópico. Dos sete ministros que julgaram ser possível a prisão antes do trânsito em julgado, nenhum até o momento deu indicação de que alterará o voto.
Advogados apostavam que o ministro Edson Fachin poderia mudar de posição. Mas logo depois de publicadas notas na imprensa nesse sentido, uma decisão monocrática do ministro solapou qualquer esperança de criminalistas.
Para fechar o semestre e ampliar a polêmica sobre este tema, o ministro Celso de Mello, ao analisar o HC 135.100, concedeu liminar, para suspender a execução de mandado de prisão contra uma pessoa condenada pelo Tribunal do Júri e com recurso julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com base no princípio da presunção de inocência.
“Com essa inversão, o acórdão local entendeu suficiente à nulificação da presunção constitucional de inocência a mera prolação, já em primeira instância, de sentença penal condenatória recorrível, em frontal colisão com a cláusula inscrita no inciso LVII do artigo 5º de nossa Lei Fundamental, que erigiu o trânsito em julgado da condenação criminal em fator de legítima descaracterização do postulado do estado de inocência”, afirmou.
“Vê-se, portanto, qualquer que seja o fundamento jurídico invocado (de caráter legal ou de índole constitucional), que nenhuma execução de condenação criminal em nosso país, mesmo se se tratar de simples pena de multa, pode ser implementada sem a existência do indispensável título judicial definitivo, resultante, como sabemos, do necessário trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, acrescentou o decano.
Ampliação
Há movimentos e argumentos também no sentido oposto: de ampliação da decisão sobre execução provisória. No Ministério Público há quem defenda a prisão depois do julgamento por órgão colegiado, inclusive pelo júri. Assim, não seria preciso o julgamento em duas instâncias, mas tão somente por órgão colegiado – como previsto na Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa).
A tese encontrou guarida no Superior Tribunal de Justiça no julgamento da Ação Penal 675. Em abril, a Corte Especial do STJ determinou a execução imediata da pena imposta ao desembargador Evandro Stábile, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT). Ele foi condenado no STJ, em ação originária, portanto, sem o duplo grau.
Ainda no âmbito da política criminal, o Supremo considerou válida a legislação que permite à Receita Federal ter acesso aos dados bancários dos contribuintes sem a necessidade de prévia autorização judicial. Decisão que impactou centenas de processos penais por sonegação fiscal e lavagem de dinheiro e que poderiam ser anuladas se o entendimento do STF fosse distinto.
Que recado o tribunal mandou com essas duas decisões?
Em artigo no JOTA, Silvana Batini interpretou a mensagem do Supremo:
“As duas decisões (execução provisória e acesso a dados bancários) da última semana sinalizam uma disposição do Supremo em colocar um pouco de ordem nesta casa. Readequar a compreensão do sigilo bancário, como fez ontem, é sintoma disto. Permitir que penas sejam executadas após condenação em segundo grau é uma decisão que reconhece que nosso sistema recursal frequentemente torna impossível a punição. Se essa interpretação estiver correta, é provável que o esforço transformador e ordenador do Supremo continue avançando nas próximas semanas. Por exemplo, a mudança ficará mais completa se o Supremo também reconhecer a inconstitucionalidade de algumas absurdas e quase inexplicáveis regras de prescrição. Como se sabe, prescrição é uma espécie de punição que recai sobre aquele que se mantém inerte. No Brasil, mesmo que o Estado esteja agindo para buscar uma condenação, a prescrição continua correndo. E ainda pode ser contada retroativamente. A prescrição da pretensão executória começa a correr antes do trânsito em julgado final, ou seja, antes de nascer o próprio direito subjacente a ela. Até os professores têm dificuldade de ensinar isto a seus alunos.”