Cumpre analisar, inicialmente, os efeitos de eventual renúncia do cargo de presidente da República nos dois últimos anos do mandato, inexistindo vice-presidente. A propósito, vale lembrar que a renúncia implica o afastamento imediato e definitivo do cargo, com a consequente inviabilização da aplicação da pena de perda de cargo a quem não mais o ocupa. Se o processo por crime de responsabilidade ainda não tiver sido instaurado quando da renúncia, ele se torna inviável, pois não pode haver impeachment de ex-presidente da República. Os processos criminal, de crime de responsabilidade e eleitoral já instaurados persistem para a análise do cabimento da aplicação das demais penas (por exemplo, privativa de liberdade, inabilitação para o exercício de função pública por oito anos e inelegibilidade, respectivamente)[1].
Especificamente quanto ao processo criminal, a renúncia gera perda do foro por prerrogativa de função no STF, com a remessa do processo à primeira instância.[2] Também implica a inaplicabilidade das imunidades previstas nos parágrafos terceiro e quarto do artigo 86, sendo em tese viável não só a prisão após o trânsito em julgado da decisão condenatória, mas também prisões temporárias ou preventivas, assim como a instauração de processos não apenas em relação a atos praticados no exercício da função, mas também estranhos ao exercício da Presidência da República.
Feitos os esclarecimentos relativos à renúncia, convém analisar aos mecanismos de responsabilização do presidente da República, iniciando pelo processo criminal no Supremo Tribunal Federal. No dia 18.05.2017, o Ministro Edson Fachin autorizou a instauração de inquérito em face do presidente da República. O inquérito consiste em procedimento anterior à instauração do processo criminal, que se destina à colheita de provas e é concluído com o juízo do procurador-geral da República acerca do oferecimento, ou não, de denúncia em face do presidente. Caso o procurador-geral da República emita manifestação pelo arquivamento do inquérito, ao STF caberá acatá-la[3]; caso ofereça denúncia, o prosseguimento do processo penal estará condicionado à autorização de dois terços dos membros Câmara dos Deputados (art. 86 da CF/88).
Desse modo serão necessários votos favoráveis ao prosseguimento do processo de, ao menos, 342 deputados federais. Se não for obtido esse quórum na respectiva votação na Câmara dos Deputados, o processo ficará paralisado enquanto o réu se mantiver presidente da República, suspendendo-se igualmente o curso do prazo prescricional. Findo o mandato presidencial, o processo criminal e a contagem da prescrição serão retomados. Caso, porém, os votos pela autorização da instauração do processo superem o quórum de 2/3 dos deputados, caberá ao STF verificar a presença dos requisitos necessários ao recebimento da denúncia. O STF não está vinculado ao juízo realizado pela Câmara dos Deputados, de modo que poderá, ou não, receber a denúncia. Se recebida a denúncia, o presidente da República será afastado das suas funções por até 180 dias. No caso de esgotamento do prazo sem decisão final, cessará o seu afastamento, retornando o presidente ao cargo sem prejuízo do regular prosseguimento do processo criminal (art. 86, § 2º da CF/88). Se condenado, perderá o cargo como efeito reflexo da decisão.[4]
Um importante fator é que, ainda que o processo criminal seja instaurado pelo STF e o presidente seja afastado das suas funções, ele ainda será presidente da República; a bem da verdade, presidente afastado das suas funções. Assim, mantêm-se aplicáveis as imunidades previstas nos parágrafos terceiro e quarto do artigo 86, da Constituição Federal de 1988, no sentido de que o presidente da República, durante o período de mandato, somente poderá ser preso após o trânsito em julgado da decisão condenatória e só poderá ser responsabilizado criminalmente por atos praticados no exercício da função.
Já o impeachment é o processo em que se apura o cometimento de crime responsabilidade pelo presidente da República (art. 85 da CF/88). Ele se inicia com denúncia oferecida por qualquer cidadão (art. 14º da Lei nº 1.079/50), a qual é objeto de juízo preliminar de admissibilidade pelo presidente da Câmara dos Deputados. Porém, esta autoridade somente deixará de receber a denúncia nos casos de inépcia ou de ausência de justa causa,[5] sendo dispensada a oitiva prévia do presidente da República.[6]
Recebida a denúncia pelo presidente da Câmara, a mesma será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial composta por 65 deputados, a quem compete exame preliminar do processo (art. 19 da Lei nº 1.079/50). O seu relatório será submetido ao Plenário, que apenas por 2/3 dos seus membros poderá admitir a acusação e autorizar a instauração do processo contra o presidente da República. Atingindo-se o referido quórum, o processo será remetido ao Senado Federal que deverá deliberar, por maioria simples, sobre a efetiva instauração de processo de crime de responsabilidade contra o presidente da República.[7] Caso o processo seja instaurado, o presidente ficará suspenso de suas funções por até 180 dias (art. 86, §1º, II c/c §2º, da CF/88). O relatório da Comissão Processante será submetido a sessão plenária do Senado, presidida pelo presidente do STF, que o apreciará em votação nominal e aberta. A condenação do presidente está sujeita ao atingimento do quórum de 2/3 dos Senadores (54 dos 81 votos).
Caso seja condenado por crime de responsabilidade, o presidente da República perderá o cargo e ficará inabilitado para o exercício de função pública pelo prazo de oito anos. Como consequência da primeira sanção, não mais terá foro especial no STF (eventuais ações penais serão remetidas à primeira instância) e não lhe serão aplicáveis as imunidades previstas nos parágrafos terceiro e quarto do artigo 86 da Constituição Federal.
Quanto à segunda penalidade (inabilitação para o exercício de função pública por oito anos), sabe-se que no impeachment da presidente Dilma Rousseff o Senado Federal deliberou por votar separadamente as referidas penas, tendo sido aplicada a primeira, mas não a segunda. Não cabe aqui analisar o cabimento da condenação, mas apenas remarcar, com todas as vênias, que o fatiamento das penas do impeachment não parece ser uma alternativa constitucionalmente legítima.
Primeiro, porque o art. 52, parágrafo único, da CF/88 é claríssimo ao dispor que as penas do crime de responsabilidade consistem na condenação “à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”. Segundo, porque, em um regime presidencialista, o presidente é eleito para o cumprimento de prazo certo de mandato, somente podendo ser destituído pelo parlamento pela prática de crime de responsabilidade, e não por mero voto de desconfiança. Já em regimes parlamentaristas, via de regra, o primeiro-ministro se mantém no cargo enquanto tiver suporte parlamentar. A possibilidade de o parlamento afastar um presidente da República, sem aplicar-lhe a sanção de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos, acaba por autorizar o Parlamento a pura e simplesmente destituir o presidente da República, sem que lhe seja imposta pena que é inerente à condenação por crime de responsabilidade. Esta solução, além de violar a literalidade do art. 52, parágrafo único da CF/88, parece confundir os sistemas de governo presidencialista e parlamentarista, à revelia da opção do constituinte originário, confirmada pelo povo brasileiro no plebiscito de 1993, pelo sistema presidencialista de governo.
Cite-se, por fim, a eventual cassação da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral em razão da Ação de Investigação Judicial Eleitoral nº 1943-58, ajuizada pelo PSDB. O partido requerente acusa a chapa vencedora de abuso de poder político e econômico, alegando, por exemplo, uso indevido da máquina pública durante a campanha, manipulação na divulgação de indicadores socioeconômicos e gastos de campanha superiores ao limite informado. Posteriormente, o objeto da demanda foi alargado para incluir os fatos narrados nas delações premiadas feitas por executivos da empreiteira Odebrecht. A partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff, intensificou-se a discussão se o eventual reconhecimento destas irregularidades, e a consequente cassação da chapa e do mandato dos eleitos, necessariamente conduziria à responsabilização também do vice-presidente, ou se seria possível cindir a chapa, preservando o mandato do então vice-presidente (atual presidente da República), sob o argumento de que ele não participara das condutas alegadamente ilícitas. É importante esclarecer, por outro lado, que o conteúdo da delação da JBS e a conversa gravada por Joesley Batista não integram a demanda.
Caso a ação seja julgada procedente e a chapa seja efetivamente cassada, o presidente da República será destituído do cargo e não mais lhe serão aplicáveis o foro por prerrogativa de função no STF e as imunidades previstas nos parágrafos terceiro e quarto do artigo 86 da Constituição Federal. Neste caso, é bastante provável a interposição de recurso ao Supremo Tribunal Federal, a quem caberia decidir, em última instância, a controvérsia.
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[1] Assim, por exemplo, durante o seu processo de Impeachment, o presidente Collor encaminhou uma carta ao Senado Federal comunicando sua renúncia em 29 de dezembro de 1992, o que não impediu o Senado de votar no dia seguinte pela sua condenação à perda do mandato e à inelegibilidade por oito anos.
[2] “A jurisprudência dominante no STF é no sentido de que, cessado o mandato parlamentar por qualquer razão, não subsiste a competência do Tribunal para processar e julgar, originariamente, ação penal contra membro do Congresso Nacional” (STF, Pleno, AP 536 QO, Relator Min. Roberto Barroso, julgamento em 27.03.2014, publicação em 12.08.2014)
[3] Cite-se, por exemplo, os Inquéritos n. 2.044, 2.028 e 1.884.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 864; MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2017, pp. 362-363.
O STF também se pronunciou nesse sentido, como se pode constatar a seguinte passagem do voto do Ministro Nelson Jobim no julgamento do RE 225019, verbis:
“Se o STF receber a denúncia ou a queixa, “o presidente ficará suspenso de suas funções” (CF, art. 86, §1º, I). Condenado, o presidente sujeitar-se-á à prisão (CF, art. 86, §3º). Nessa hipótese, perde ele os direitos políticos e “… por efeitos reflexos e indiretos implica perda do cargo, à vista do disposto no art. 15, III”, diz JOSE AFONSO DA SILVA . São os efeitos extra-penais da sentença penal condenatória. A perda do mandato decorrerá da própria condenação, como determina a regra constitucional (art. 15, III). Não depende de deliberação das Casas do Congresso Nacional. Não dependente de outra manifestação do próprio STF. É efeito constitucional da condenação.” STF, Pleno, RE 225019, Relator Min. Nelson Jobim, julgamento em 08.09.1999, publicação em 26.11.1999.
[5] STF, Pleno, MS 30672 AgR, Relator Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 15.09.2011, publicação em 18.10.2011.
[6] STF, Pleno, ADPF 378, Relator Min. Edson Fachin, Relator para o Acórdão Min. Roberto Barroso, julgamento em 17.12.2015, publicação em 08.03.2016.
[7] STF, Pleno, ADPF 378, Relator Min. Edson Fachin, Relator para o Acórdão Min. Roberto Barroso, julgamento em 17.12.2015, publicação em 08.03.2016.