Dispõe o art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 que incorre nas mesmas penas do delito de organização criminosa (art. 2º, caput, da Lei 12.850/13) aquele que “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”. Não é preciso nenhum sacrificium intellectus (basta uma leitura in ictu oculi!) para perceber-se que se trata de preceito penal absolutamente indeterminado, por não estabelecer minimamente quais condutas encontram-se [simple_tooltip content=’Nesse sentido, Bitencourt/Busato, Comentários à Lei de Organização Criminosa, São Paulo, 2014, pág. 85: “O legislador, por fim, não indica os meios ou formas pelas quais o sujeito ativo pode impedir ou embaraçar investigação criminal, ficando em aberto um universo incalculável de possibilidades /…/. Trata-se de um tipo penal excessivamente aberto, vago e impreciso, ensejando dúvidas exegéticas. Indiscutivelmente essa descrição típica é extremamente aberta e gera absoluta insegurança sobre quais seriam os atos ou procedimentos que poderiam representar, por exemplo, embaraço à investigação criminal, gerando perplexidade ao intérprete”.’]proibidas[/simple_tooltip]. O problema agrava-se ainda mais com a utilização da cláusula geral [simple_tooltip content=’Sobre o grave perigo decorrente da utilização de cláusulas gerais cfr. Jescheck/Weigend, Lehrbuch des Strafrechts. Allgemeiner Teil, 5ª ed., Berlin, 1996, pág. 129.‘]“de qualquer forma”[/simple_tooltip]. O grau de indeterminação do referido preceito é tal que mesmo condutas absolutamente insuspeitas ser-lhe-iam tout court subsumíveis. Tome-se o seguinte exemplo, que nos serve como uma espécie de [simple_tooltip content=’O eminente filósofo norte-americano Daniel Dennett, Intuition pumps and other tools for thinking, New York/London, 2013, pág. 29, define da seguinte forma uma reduction absurdum: “The crowbar of rational inquiry, the great lever that enforces consistency, is reduction ad absurdum – literally, reduction (of the argument) to absurdity. You take the assertion or conjecture at issue and see if you can pry any contradictions (or just preposterous implications) out of it. If you can, that proposition has to be discarded or sent back to the shop for retooling. We do this all time without bothering to display the underlying logic: ‘If that´s a bear, then bears have antlers’ or ‘He won´t get here in time for supper unless he can fly like Superman’”. Sobre a estrutura lógica de uma reductio ad absurdum cfr. Blackburn, Oxford Dictionary of Philisophy, 2ª ed., Oxford/New York, 2008, pág. 310.’]reductio ad absurdum[/simple_tooltip]: o advogado que impetrasse habeas corpus para trancar inquérito policial em que se investiga eventual infração penal que envolve organização criminosa estaria realizando conduta subsumível ao art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Sim, pois estaria embaraçando, é dizer, criando dificuldades ou obstáculos a tal investigação. E mais: se for exitoso, é dizer, se conseguir efetivamente o trancamento do inquérito policial, terá impedido a investigação. Por óbvio, aqui não se ignora que, na realidade, não subsistiria crime algum, pois o advogado estaria agindo no exercício regular de um direito[simple_tooltip content=’Nesse sentido, Bitencourt/Busato, Comentários à Lei de Organização Criminosa, págs. 86-87.‘](art. 23, III, do CP)[/simple_tooltip]. Entretanto, o que se quer demonstrar com tal exemplo (repita-se, numa espécie de reductio ad absurdum) é que a indeterminação do preceito legal em comento pode nos conduzir a exegeses esdrúxulas e situações disparatadas, com enorme risco para a segurança jurídica.
A própria prática tem demonstrado as graves e indeléveis conseqüências da indeterminação do art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Com efeito, no âmbito da assim denominada «Operação Lava Jato», tem-se notícia de que o Ministério Público Federal requereu ao STF a abertura de inquérito para investigar a então Presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela suposta prática do delito tipificado no art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Entendeu o Parquet que a nomeação do ex-presidente para a Casa Civil seria uma espécie de estratagema para embaraçar a continuidade das investigações que contra ele se desenvolviam em Curitiba/PR, o que consubstanciaria, segundo a ótica ministerial, o delito de obstrução. Como se nota, o elevado grau de indeterminação do referido preceito penal permite que se especule despudoradamente a respeito das supostas intenções de um ato privativo da Presidente (art. 84, I, da CF) e, inclusive, que tal ato seja interpretado como crime! É de pasmar.
Em outros casos, ainda no âmbito da «Operação Lava Jato», verifica-se que não há, na realidade, qualquer conduta de impedir ou obstar investigação criminal, mas, na pior das hipóteses, uma simples cogitação nesse sentido. O elevado grau de indeterminação do referido preceito acaba por propiciar a punibilidade de meros pensamentos, o que, certamente, viola a velha máxima cogitationis poenam nemo patitur. E nisso não há nenhuma surpresa, pois já em 1985 Günther Jakobs elencava como aspecto central do Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) o desrespeito à [simple_tooltip content=’Jakobs, Kriminalisierung im Vorfeld einer Rechtsgutsverletzung, pág. 754.’]esfera privada do sujeito[/simple_tooltip].
É o que se verifica, por exemplo, no recente requerimento do Ministério Público Federal de prisão preventiva de três Senadores da República pela suposta prática do crime tipificado no art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Aqui se vê claramente como a absoluta vagueza do referido preceito pode implicar numa excessiva antecipação do âmbito de tutela penal (em termos de iter criminis), acabando por atingir a própria esfera interna do cidadão. Confira-se o que sustenta o Parquet naquele requerimento:
“No dia 4 de maio de 2016, foi firmado pelo Ministério Público Federal e José Sérgio de Oliveira Machado acordo de colaboração premiada, cujos termos foram submetidos a Vossa Excelência para homologação no dia 13 de maio. No período de 4 a 11 de maio, foram colhidos depoimentos do colaborador e de seus três filhos. Um dos anexos desse acordo (e alguns termos de colaboração) descreve manobras dos Senadores Renan Calheiros e Romero Jucá, bem como do ex-Presidente José Sarney, para embaraçar a Operação Lava Jato, crime previsto no art. 2º, § 1º, da Lei nº 12.850/2013” (fl. 2 do requerimento).
A partir desse anexo, colheu-se depoimento específico do colaborador. Por sua vez, o depoimento explica e contextualiza parte das cerca de sete horas de conversas gravadas pelo colaborador com os Senadores Renan Calheiros e Romero Jucá e com o ex-Presidente José Sarney e outros interlocutores nos dias 23 e 24 de fevereiro e 10 e 11 de março do corrente ano.
O conteúdo dessas conversas revela a existência de um plano, em plena execução, para embaraçar a Operação Lava Jato. O plano tem uma vertente tática e outra estratégica, ambas de execução imediata. A vertente tática consiste no manejo de meios espúrios para persuadir o Poder Judiciário a, além de não desmembrar inquérito específico da Operação Lava Jato, a fim de que o investigado Sérgio Machado, que não é titular de prerrogativa de foro, não se tornasse, como se tornou, colaborador. A vertente estratégica se traduz na modificação da ordem jurídica, tanto pela via legislativa quanto por um acordo político com o próprio Supremo Tribunal Federal, com o escopo de subtrair do sistema de justiça criminal instrumentos de atuação que têm sido cruciais e decisivos para o êxito da Operação Lava Jato.
Na vertente tática, as conversas gravadas mostram os movimentos iniciais do próprio colaborador, do ex-Presidente José Sarney e dos Senadores Renan Calheiros e Romero Jucá para designar interlocutores com vínculos pessoais de relacionamento com Vossa Excelência para interceder e tentar persuadi-lo, por meio de argumentos extrajurídicos, a não desmembrar o Inquérito 4.215/DF, em curso no Supremo Tribunal Federal, em que José Sérgio de Oliveira Machado figura como investigado ao lado do Senador Renan Calheiros.
Na vertente estratégica, as conversas gravadas expõem a trama clara e articulada dos Senadores Renan Calheiros e Romero Jucá e do ex-Presidente José Sarney a fim de mutilar o alcance dos institutos da colaboração premiada no processo penal e da leniência administrativa para pessoas jurídicas responsáveis por ato de corrupção, impedir o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado definitivo dos processos penais pelos Tribunais Superiores, e, em prazo mais longo, subtrair atribuições do Ministério Público e do próprio Poder Judiciário”. (págs. 1-2).
Note-se bem: de acordo com o Ministério Público Federal, simples conversas entre um colaborador e Senadores da República seriam suficientes para configurar o delito tipificado no art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Entretanto, dessa forma ignora-se que pretender puni-los constituiria grave atentado ao princípio cogitationis poenam nemo patitur. Aliás, na decisão com que negou o pedido de prisão preventiva dos referidos parlamentares, o eminente Ministro Teori Zavascki observou, com sua habitual percuciência, que:
“(…) não se extrai do conteúdo das conversas gravadas pelo próprio colaborador, tomado isoladamente, fundamentos para embasar a cautelar requerida, de modo que as evidências apresentadas não são suficientemente concretas para legitimar a medida excepcional. O Ministério Público não apontou a realização de diligências complementares, tendentes a demonstrar elementos mínimos de autoria e materialidade, a fim de justificar a medida de cunho restritivo, fundamentando o seu pedido exclusivamente no conteúdo das conversas gravadas pelo colaborador e em seu próprio depoimento” (pág. 26).
Mas não é só: percebe-se também em tal requerimento uma tentativa de criminalização da própria atividade parlamentar! Com efeito, de acordo com o Ministério Público Federal, as conversas gravadas consubstanciariam o delito tipificado no art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, pois supostamente revelariam uma estratégia “de modificação da ordem jurídica (…) pela via legislativa”. Tratar-se-ia de uma “trama clara e articulada (…) a fim de mutilar o alcance dos institutos da colaboração premiada no processo penal e da leniência administrativa para pessoas jurídicas responsáveis por ato de corrupção, impedir o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado definitivo dos processos penais pelos Tribunais Superiores, e, em prazo mais longo, subtrair atribuições do Ministério Público e do próprio Poder Judiciário”. Ora, mas isso é absurdo, pois um parlamento é justamente, como diria Jeremy Waldron, uma [simple_tooltip content=’Waldron, Representative Lawmaking in Boston University Law Review 89, 2009, pág. 336.’]“instituição publicamente dedicada a fazer leis e mudá-las”[/simple_tooltip]. Ademais, não é preciso lembrar que os nossos congressistas são eleitos e periodicamente submetidos ao voto popular, o que lhes confere [simple_tooltip content=’Waldron, Representative Lawmaking, págs. 345 e ss.’]representatividade[/simple_tooltip]. Parlamentares legitimamente eleitos possuem liberdade de conformação (Gestaltungsfreiheit) das leis, que somente pode estar limitada pelas próprias normas constitucionais. Em outros termos: só há um limite para a liberdade de conformação do legislador legitimamente eleito: [simple_tooltip content=’Cfr. Sternberg-Lieben, Rechtsgut, Verhältnismässigkeit und die Freiheit des Strafgesetzgebers in Hefendehl/von Hirsch/Wohlers (edts.), Die Rechtsgutstheorie. Legitimationsbasis des Strafrechts oder dogmatisches Glasperlenspiel?, Baden-Baden, 2003, págs. 65 e ss.‘]a própria Lei Fundamental[/simple_tooltip].
As considerações acima expostas não devem ser tomadas, necessariamente, como uma censura à atuação do Ministério Público Federal, mas antes como uma crítica ao alto grau de indeterminação do art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, que, por possibilitar interpretações idiossincráticas e até mesmo teratológicas, é incapaz de proteger minimamente os cidadãos contra eventuais arbitrariedades.
Justamente por violar o princípio da taxatividade (nullum crimen nulla poena sine lege certa), consectário lógico do princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, da CF), sustenta-se aqui a flagrante inconstitucionalidade do tipo penal em questão. O princípio da legalidade funda-se, em primeiro lugar, num postulado central do liberalismo político, consistente na exigência de vinculação do Poder Executivo e Judiciário à [simple_tooltip content=’Cfr. Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil I, 4ª ed., München, 2006, § 5/19.’]lei[/simple_tooltip]. E mais: é justamente por meio da formulação precisa de leis penais (taxatividade) que se reduz o espaço semântico no qual o juiz poderia mover-se em sua liberdade interpretativa, o que, por óbvio, aumenta a proteção dos cidadãos frente a [simple_tooltip content=’Cfr. Palazzo, Strafgesetzlichkeit. Transformation und Vielschichtigkeit eines ,,Fundamentalprinzipsʻʻ, Berlin, 2010, págs. 39 e ss. Sobre tal questão cfr., ademais, Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil I, § 5/20; Kindhäuser, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 3ª ed., Baden-Baden, 2008, § 3/5; Eser in Schönke/Schröder, Strafgesetzbuch Kommentar, 27ª ed., München, 2006, § 1/17; Otto, Grundkurs Strafrecht. Allgemeine Strafrechtslehre, 7ª ed., Berlin, 2004, § 2/2.’]possíveis abusos[/simple_tooltip]. O segundo fundamento do princípio da legalidade encontra-se no postulado democrático da divisão de poderes: como a pena constitui uma gravíssima ingerência na liberdade do cidadão, seus pressupostos só podem ser legitimamente determinados pelo parlamento, enquanto instância que representa a vontade popular; ao juiz lhe falta legitimidade democrática [simple_tooltip content=’Cfr. Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil I, § 5/20; Sobre tal questão cfr., ademais, Rudolphi in Rudolphi/Horn/Günther/Samson, Systematischer Kommentar zum Strafgesetz Strafgesetzbuch, 8ª ed., München, 2005, § 1/11; Otto, Grundkurs Strafrecht, § 2/2. Batista, Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, 5ª ed., Rio de Janeiro, 2001, pág. 67; Queiroz, Curso de Direito Penal, 8ª ed., Salvador, 2012, págs. 74-75.’]para tanto[/simple_tooltip]. O terceiro fundamento do princípio da legalidade encontra-se no postulado da autodeterminação: a lei penal deve prever de forma clara e precisa quais condutas encontram-se proibidas, para que se garanta a cada um a possibilidade de calcular [simple_tooltip content=’Cfr. Ortiz de Urbina, ¿Leyes taxativas interpretadas libérrimamente? Principio de legalidad e interpretación del Derecho Penal in Montiel (edt.), La crisis del principio de legalidad en el nuevo Derecho Penal: ¿decadência o evolución?, Madrid/Barcelona/Buenos Aires/São Paulo, 2012, págs. 174 e ss.‘]as consequências jurídicas de sua conduta[/simple_tooltip].
Aqui gostaríamos de abrir um parêntese. De acordo com Roxin, o princípio da legalidade também teria como fundamento necessidades de [simple_tooltip content=’Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil I, § 5/22-23′]prevenção-geral positiva[/simple_tooltip]. Assim como já fizera Feuerbach, Roxin estabelece um vínculo incindível entre o princípio da legalidade e a finalidade da pena. Feuerbach foi o primeiro autor a fundamentar a necessidade de determinação da lei com base no efeito dissuasório exercido pela cominação penal. A construção de Feuerbach desenvolve-se com base nos seguintes argumentos: o homem não é um ser unicamente racional, mas também instintivo; a origem de todas as infrações estaria justamente aí, nos impulsos; para impedi-las, cabe ao Estado exercer uma influência psicológica sobre cada um dos indivíduos, neutralizando o estímulo ofensivo com um contra-estímulo, que deveria consistir na ameaça de um mal maior do que aquele que resulta da abstenção da conduta; isto se faz por meio da transmissão aos cidadãos de uma descrição clara e exata da conduta proibida, assim como da pena que lhes será imposta caso a [simple_tooltip content=’Feuerbach, Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Rechts, 14ª ed., Gieβen, 1847, § 13 (“Alle Uebertretungen haben ihren psychologischen Entstehungsgrund in der Sinnlichkeit, inwiefern das Begehrungsvermögen des Menschen durch die Lust an oder aus der Handlung zur Begehung derselben angetrieben wird. Dieser sinnliche Antrieb kann dadurch aufgehoben werden, dass Jeder weiss, auf seine That werde unausbleiblich ein Uebel folgen, welches grösser ist, als die Unlust, die aus dem nicht befriedigten Antrieb zur That entspringt») e § 14 (“Damit nun die allgemeine Ueberzeugung von der nothwendigenVerbindung solcher Uebel mit Beleidigungen begründet werde so muss I. ein Gesetz dieselben als nothwendige Folge der That bestimmen (gesetzliche Drohung). Und damit die Realität jenes gesetzlich bestimmten idealen Zusammenhanges in der Vorstellung Aller begründet werde, muss II. Jener ursachliche Zusammenhang auch in der Wirklichkeit erscheinen, mithin, sobald die Uebertretung geschehen ist, das in dem Gesetze damit verbundene Uebel zugefügt werden (Vollstreckung, Execution). Die zusammenstimmende Wirksamkeit der vollstreckenden und gesetzgebenden Macht zu dem Zwecke der Abschreckung bildet den psychologischen Zwang»); o mesmo, Revision der Grundsätze und Grundbegriffe des positiven peinlichen Rechts, Tomo I, Aalen, 1966, págs. 49 e ss.; o mesmo, Anti-Hobbes oder über die Grenzen der höchsten Gewalt und das Zwangsrecht gegen den Oberherrn, Gieβen, 1797, págs. 40 e ss.‘]pratiquem[/simple_tooltip]. Pois bem, Roxin retoma o argumento de Feuerbach, complementando-o com considerações a respeito das necessidades de prevenção-geral positiva. Vejamos o que diz Roxin. O professor emérito da Universidade de Munique afirma que existe um amplo consenso a respeito do caráter obsoleto da teoria da coação psicológica de Feuerbach, bem como do fundamento utilizado por este autor para justificar o princípio da legalidade. Entretanto, Roxin acredita que a tese de Feuerbach adquire grande atualidade se a faceta meramente intimidatória da pena for complementada com seu aspecto de formação da consciência social das normas (prevenção-geral positiva). Com efeito, diz Roxin: “se a cominação e imposição da pena também contribuem substancialmente para estabilizar a fidelidade da população ao Direito e em muitos casos para construir a predisposição ao comportamento em conformidade com as normas, isso somente é possível se há uma clara fixação da conduta punível; pois se não houvesse, o Direito Penal não poderia obter o efeito de formação das consciências de que depende o respeito aos seus [simple_tooltip content=’Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil I, § 5/23.‘]preceitos”[/simple_tooltip].
Entretanto, não podemos estar de acordo com Feuerbach e Roxin. Isso porque a clara e rigorosa fixação legal da conduta proibida não produz: (1) nem maior efeito dissuasório; (2) nem efeito sócio-integrador substancialmente maior. (1) Na realidade, em termos estritamente intimidatórios, a imprecisão costuma ser tão eficaz ou, até mesmo, [simple_tooltip content=’Mantovani, Diritto Penale. Parte Generale, 6ª ed., Padova, 2009, pág. 61: “Anche una norma di non rigorosa tassatività (…) può svolgere una precisa funzione intimidatrice (…)”; Montiel, Analogía favorable al reo. fundamentos y límites de la analogía in bonam partem en el Derecho penal, Madrid, 2009, págs. 71-72; Ortiz de Urbina, ¿Leyes taxativas interpretadas libérrimamente?, pág. 176.‘]mais[/simple_tooltip]. Não foi por acaso que na época do Nacional-Socialismo autores como Henkel defenderam a possibilidade de tipos penais indeterminados e do recurso à analogia in malam partem, justamente sob o argumento de que isso aumentaria o efeito dissuasório sobre a [simple_tooltip content=’Sobre o tema cfr. Greco, Conveniencia y respeto: sobre lo hipotético y lo categórico en la fundamentación del Derecho penal in InDret 4, 2010, pág. 6.’]população[/simple_tooltip]. (2) Tampouco é correta a afirmação, pelo menos no âmbito do Direito Penal «nuclear», de que a determinação legal contribui substancialmente para o aprendizado daquelas condutas que se encontram proibidas. Com efeito, qualquer pessoa sabe que é proibido matar, estuprar, roubar, etc., mas tal conhecimento não é adquirido através de normas de caráter penal, senão por meio da própria convivência em sociedade. Com tais considerações críticas pretendo apenas demonstrar que o princípio da legalidade não se justifica por uma lógica de eficácia preventiva, mas somente por considerações de garantia e respeito.
Feche-se o parêntese. Fazendo-se um estudo de Direito Comparado, pode-se constatar a existência de inúmeros pronunciamentos das Cortes dos mais distintos países no sentido da necessária observância por parte do legislador do princípio da taxatividade. De fato, já no ano de 1876, em United States v. Reese, a Suprema Corte Americana observou que “normas penais não devem ser enunciadas em linguagem excessivamente indeterminada. Se o legislador se compromete a definir numa lei um novo delito e sua pena, deve expressar a sua vontade numa linguagem que não agrida o senso comum. Qualquer um deve ser capaz de saber com segurança quando está cometendo um [simple_tooltip content=’United States v. Reese 92 U.S. 214 (1876).’]crime”[/simple_tooltip]. Por sua vez, a Corte Constitucional alemã (Bundesverfassungsgericht), em 1976, ressaltou que “De acordo com a jurisprudência desta Corte Constitucional, o art. 103.2 da Lei Fundamental impõe ao legislador (…) a determinação concreta dos pressupostos da responsabilidade criminal, de tal forma que o alcance e o âmbito de aplicação dos tipos penais sejam conhecidos e possam ser definidos pela interpretação. Tal imposição tem duplo objetivo. Por um lado, quer-se proteger os destinatários da norma: qualquer um deve ser capaz de prever se uma conduta é proibida e punível. Por outro, e em conexão com isso, quer-se garantir que será o legislador, e não o juiz, quem determinará se um comportamento é ou [simple_tooltip content=’BVerfGE 47, 109.’]não punível”[/simple_tooltip]. Bastou um lustro para que a Corte Constitucional Italiana, em 1981, observasse que “o legislador tem a obrigação de formular normas conceitualmente precisas, sob o perfil semântico da clareza e inteligibilidade dos termos [simple_tooltip content=’Corte Costituzionale sentenza n. 96/1981.‘]empregados”[/simple_tooltip]. No plano da jurisprudência internacional, merecem destaque os reiterados e sucessivos pronunciamentos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no sentido do devido respeito ao princípio da taxatividade (art. 7.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos). Assim, por exemplo, no ano de 1993, em Kokkinakis v. Grecia, este Tribunal explicitou que “(…) o art. 7.1 da Convenção não se limita a proibir a aplicação retroativa da lei penal em detrimento do acusado. Consagra, também, de uma maneira mais geral, o princípio de que somente a lei pode definir os delitos e as penas a eles cominadas (nullum crimen nulla poena sine lege), bem como o princípio que determina a proibição de aplicação extensiva da lei penal em detrimento do acusado, especialmente por analogia; a partir daí deduz-se que a infração deve encontrar-se claramente [simple_tooltip content=’Kokkinakis v. Grecia, 25 de maio de 1993.‘]definida em lei”[/simple_tooltip]. Tais considerações foram reiteradas por este Tribunal, nos mesmíssimos termos, em casos subsequentes, podendo-se aqui mencionar: Coëme and Others v. Bélgica, em [simple_tooltip content=’Coëme and Others v. Bélgica, 22 de junho de 2000.‘]2000[/simple_tooltip]; Kononov v. Latvia, em [simple_tooltip content=’Kononov v. Latvia, 17 de maio de 2010.‘]2010[/simple_tooltip]; Huhtamäki v. Finlândia, em [simple_tooltip content=’Huhtamäki v. Finlândia, 06 de março de 2012.‘]2012[/simple_tooltip].
Dando-se continuidade ao estudo de direito comparado já iniciado, pode-se constatar, inclusive, a existência de decisões que efetivamente declararam a inconstitucionalidade de preceitos penais indeterminados. Assim, na Alemanha, já em 1952, o Tribunal Constitucional da Baviera (Bayerische Verfassungsgerichtshof) declarou a inconstitucionalidade, por violação do princípio da taxatividade, de preceito que estabelecia a responsabilidade penal “daquele que infringir a ordem pública ou atuar contra os interesses das forças armadas aliadas ou de seus membros”, por entender que os termos “ordem pública” e “interesses” eram [simple_tooltip content=’Bayerisches Gesetz- und Verordnungsblatt 1952, págs. 8 e ss. Cita tal precedente, Roxin, Strafrecht.Allgemeiner Teil I, 4ª ed., München, 2006, § 5/68.‘]excessivamente vagos[/simple_tooltip]. Por sua vez, a Corte Constitucional Italiana, em 1981, declarou a inconstitucionalidade do tipo penal de plágio (art. 603 do Código Penal Italiano), que incriminava a conduta de “submete[r] uma pessoa ao próprio poder de modo a reduzi-la a um total estado de sujeição”. Naquela célebre decisão, a Corte observou, com absoluta propriedade, que o princípio da taxatividade (art. 25 comma 2 da Constituição Italiana) impõe não somente a precisão linguística de um tipo penal, mas também a verificabilidade empírica da matéria de [simple_tooltip content=’Corte Costituzionale sentenza n. 96/1981. Sobre tal decisão cfr. as considerações de Canestrari/Cornacchia/De Simone, Manuale di Diritto Penale. Parte Generale, Bologna, 2007, pág. 133; Pagliaro, Principi di Diritto Penale. Parte Generale, 8ª ed., Milano, 2003, pág. 54; Marinucci/Dolcini, Corso di Diritto Penale, vol. I, Milano, 1995, págs. 277-278; Fiandaca/Musco, Diritto Penale. Parte Generale, 6ª ed., Bologna, 2009, págs. 79/80.’]proibição[/simple_tooltip]. Verbis: “nella dizione dell’art. 25 Cost. che impone espressamente al legislatore di formulare norme concettualmente precise sotto il profilo semantico della chiarezza e dell’intellegibilità dei termini impiegati, deve ritenersi anche implicito l’onere di formulare ipotesi che esprimano fattispecie corrispondenti alla realtà (…)”, o que dar-se-ia por meio de “riferimento a fenomeni la cui possibilità di realizzarsi sai stata accertata in base a criteri che allo stato attuale delle conoscenze appaiano verificabili”. Assim, concluiu a Corte, “la formulazione letterale dell’art. 603 prevede (…) un’ipotesi non verificabile nella sua effettuazione e nel suo risultato, non essendo né individuabili né accertabili le attività che potrebbero concretamente esplicarsi per ridurre una persona in totale stato di soggezione, né come sarebbe oggettivamente qualificabile questo stato, la cui totalità, legislativamente dichiarata, non è mai stata giudizialmente accertata”; “né è dimostrabile, in base alle attuali conoscenze ed esperienze, che possano esistere esseri capaci di ottenere con soli mezzi psichici l’asservimento totale di una [simple_tooltip content=’Corte Costituzionale sentenza n. 96/1981.’]persona”[/simple_tooltip]. No ano de 1972, em Papachristou v. City of Jacksonville, a Suprema Corte Americana, colocando em prática a sua void for vagueness doctrine [simple_tooltip content=’Sobre a void for vagueness doctrine cfr. Husak, Philosophy of Criminal Law, New Jersey, 1987, pág. 8; LaFave, Principles of Criminal Law, St. Paul, 2003, págs. 85 e ss.’](«doutrina da nulidade por vagueza»)[/simple_tooltip], declarou a inconstitucionalidade, por absoluta indeterminação (vagueness), da assim denominada Jacksonville Vagrancy Ordinance, que estabelecia o seguinte: “serão considerados vadios e puníveis (…) todos aqueles que vaguem de um lado para o outro sem nenhum objetivo legítimo, os vadios habituais, as pessoas perturbadoras, as pessoas que não realizem nenhum negócio legítimo e que passem habitualmente seu tempo frequentando casas de má fama (…) ou lugares nos quais sejam vendidas ou servidas bebidas alcoólicas, pessoas que sejam capazes de trabalhar, mas que habitualmente vivam da renda de suas esposas ou filhos [simple_tooltip content=’Papachristou v. City of Jacksonville 405 U.S. 156 (1972).’]menores[/simple_tooltip]”. No ano de 1999, em Chicago v. Morales, a Suprema Corte Americana declarou a inconstitucionalidade, por indeterminação, da assim denominada Chicago’s Gang Congregation Ordinance, que incriminava a conduta de “membros de gangues de rua” de “fazer rondas” (loitering) em qualquer espaço público. Entendeu a Suprema Corte Americana que a referida Ordinance era inconstitucional, por “não conseguir oferecer ao homem comum a adequada informação do que está proibido e do que está [simple_tooltip content=’Chicago v. Morales 527 U.S. 41 (1999). Sobre tal decisão cfr. Dubber/Hörnle, Criminal Law: A Comparative Approach, Oxford, 2014, págs. 96-97.‘]permitido[/simple_tooltip]”.
Mas a conclamação de que o princípio da taxatividade (nullum crimen nulla poena sine lege certa) impõe ao legislador a elevadíssima e incontornável tarefa de elaborar preceitos criminais claros e exatos (se não quer incorrer em inconstitucionalidade) não é mérito apenas de Cortes alienígenas. Absolutamente! Também o nosso Egrégio Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de observar que a legalidade penal consiste em “(…) ato-condição da descrição de determinada conduta humana como crime, e, nessa medida, passível de apenamento estatal, tudo conforme a regra que se extrai do inciso XXXIX do art. 5º da CF, ipsis litteris: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. (…) a norma criminalizante (seja ela proibitiva, seja impositiva de condutas) opera, ela mesma, como instrumento de calibração entre o poder persecutório-punitivo do Estado e a liberdade individual. (…) a norma estatal que descreve o delito e comina a respectiva pena atua por modo necessariamente binário, no sentido de que, se, por um lado, consubstancia o poder estatal de interferência na liberdade individual, também se traduz na garantia de que os eventuais arroubos legislativos de irrazoabilidade e desproporcionalidade se expõem a controle [simple_tooltip content=’HC 111.017/RS, rel. Min. Carlos Ayres Britto, Segunda Turma (julgado em 07/02/2012).’]jurisdicional[/simple_tooltip]”.
Portanto, como se vê, também a Suprema Corte brasileira impõe ao legislador o devido respeito ao princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, da CF), admitindo, inclusive, o controle de constitucionalidade de preceitos penais que o violem por qualquer [simple_tooltip content=’Muito embora raramente o Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade de uma norma penal.. Por isso mesmo, tem absoluta razão Streck, A hermenêutica filosófica e a teoria da argumentação na ambiência do debate “positivismo (neo)constitucionalismo” in Miranda Coutinho/Mont’Alverne Barreto Lima, Diálogos Constitucionais, Rio de Janeiro, 2006, pág. 302, ao assinalar que “Em algumas áreas como o Direito Penal, chega a existir uma espécie de blindagem, que imuniza o legislador contra qualquer interferência da jurisdição constitucional”.‘]razão[/simple_tooltip].
Por óbvio, não se ignora que, ao contrário do que sucede em outras áreas do conhecimento humano, a exemplo da Matemática, onde se faz uso de uma linguagem altamente formalizada, os preceitos penais contidos nos distintos códigos e leis encontram-se formulados em linguagem ordinária ou natural, cujas características consistem justamente na vagueza e [simple_tooltip content=’Cfr. Hassemer/Neumann, Nomos-Kommentar zum Strafgesetzbuch, Tomo I, 2ª ed., Baden-Baden, 2005, § 1/35 e ss.; Eser/Burkhardt, Strafrecht I. Schwerpunkt. Allgemeine Verbrechenselemente, 4ª ed., Münche, 1992, § 2/17; Frister, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 3ª ed., München, 2008, § 4/12; Porciúncula, Lo «objetivo» y lo «subjetivo» en el tipo penal: hacia la «exteriorización de lo interno», Barcelona, 2014, pág. 165, nota 877. O termo «porosidade» deve-se ao filósofo vienense Friedrich Waismann, Verifiability in Antony Flew (edt.), Logic and Language: First Series, Oxford, 1952, págs. 122 e ss., quem, sob a influência de Wittgenstein, o definiu como «possibilidade de vagueza» (pág. 126). O primeiro a introduzir o termo «porosidade» (open texture) no âmbito jurídico foi Hart, The Concepto f Law, 2ª ed., New York, 1997, págs. 124 e ss., mas num sentido mais amplo do que aquele utilizado por Waismann. Sobre tal questão cfr. a obra de Endicott, Vagueness in Law, New York, 2000, págs. 37-38, quem, na linha de Hart, utiliza o termo «open texture» num sentido amplo, sem distingui-lo do termo «vagueness»: “The distinction disappears by stipulation for the purpose of this book: like Grice, I have defined ‘vague’ to apply to an expression if there are actual or possible borderline cases of its application. That stipulation seems to cost us nothing, because no one has ever shown that the distinction has any consequences at all for jurisprudence. And, in fact, open texture and vagueness cannot be distinguished as properties of the meaning of expressions by the contingency of whether there are actual borderline cases. Nothing about the meaning of “bald” depends on whether borderline cases happen to exist. In any case, there is so much actual vagueness in law that possible vagueness does not need to concern us, and I will not use the term ‘open texture’”. Schauer, Playing by the Rules. A Philosophical Examination of Rule-Based Decision-Making in Law and in Life, New York, 2002, por sua vez, segue Waismann, fazendo uma clara distinção entre «vagueness» e «open texture»: “Open texture is distinct from vagueness. In contrast to currently identifiable vagueness, open texture according to Waismann is the possibility that even the least vague, the most precise, term will turn out to be vague as a consequence of our imperfect knowledge of the world and our limited ability to foresee the future. Open texture is the ineliminable possibility of vagueness, the ineradicable contingency that even the most seemingly precise term might, when it confronts an instance unanticipated when the term was defined, become vague with respect to that instance. No matter how carefully we may try to be maximally precise in our definitions, and therefore in the generalizations that those definitions both reflect and create, some unanticipated event may always confound us (…) Open texture is this indelible feature of language, a consequence of the confrontation between fixed language and a continuously changing and unknown world” (p. 36). Sobre o tema vagueza no âmbito filosófico cfr. a obra de um dos mais influentes filósofos da atualidade, Williamson, Vagueness, London/New York, 1996, quem traça um excelente histórico do problema, desde o famoso paradoxo sorites, proposto pelo lógico grego Eubulides de Mileto, até as modernas contribuições da lógica fuzzy sobre o tema. Veja-se também a obra editada por Keefe/Smith, Vagueness: A Reader, Cambridge/London, 1999, que conta com artigos de importantes filósofos como Bertrand Russell, Max Black, Carl Hempel, Michael Dummett, etc.’]porosidade[/simple_tooltip]. Tampouco se desconhece que, em algumas hipóteses, o legislador não pode renunciar à utilização de elementos que necessitam de um complemento [simple_tooltip content=’Como já proclamou a Corte Constitucional alemã em BVerfGE NJW 1978, 101.‘]valorativo[/simple_tooltip]. Assim, algum grau de indeterminação será [simple_tooltip content=’Como já proclamou a Corte Constitucional alemã em BverfGE 4, 352.’]inevitável[/simple_tooltip]. Entretanto, não pode haver qualquer dúvida de que, a partir de certo grau, o enunciado passa a violar o princípio da taxatividade. A questão é: a partir de que grau?
Alguns critérios têm sido utilizados para aferir se um preceito penal indeterminado ultrapassa o limite daquilo que se considera tolerável (em razão, repita-se, das características da linguagem ordinária e da impossibilidade do legislador renunciar à utilização de elementos valorativos), terminando por violar o princípio da taxatividade (nullum crimen nulla poena sine lege certa). Um dos critérios mais festejados pela doutrina, e provavelmente o mais seguro deles, reza o seguinte: um enunciado penal indeterminado deverá ser considerado inconstitucional sempre que o legislador dispusesse da possibilidade de uma redação legal mais clara e [simple_tooltip content=’Adotam tal critério, por exemplo, Jakobs, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 2ª ed., Berlin/New York, 1993, § 4/25; Eser in Schönke/Schröder, Strafgesetzbuch Kommentar, § 1/20. Na doutrina italiana, Mantovani, Diritto Penale, pág. 64, sustenta o seguinte: “(…) la funzione garantista del principio di legalità, realisticamente inteso, consiste non nell’eliminare il soggetivismo ineliminabile, né nel realizzare la certezza assoluta, ma soltanto la maggior certezza possibile”.’]precisa[/simple_tooltip]. Ora, a aplicação do referido critério ao art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, não deixa qualquer dúvida a respeito de sua inconstitucionalidade. Com efeito, é inegável que o legislador tinha a possibilidade de formular o tipo penal em questão de modo muito mais claro e determinado, enunciando aquelas condutas que, a seu ver, poderiam configurar tal crime. Note-se que, para tanto, não seria necessário qualquer esforço: bastaria que tivesse tomado como parâmetro o próprio art. 23 da Convenção de Palermo (United Nations Convention Against Transnational Organized Crime), que contém uma adequada proposta de formulação do tipo penal de obstruction of justice. Confira-se:
“Article 23. Criminalization of obstruction of justice
Each State Party shall adopt such legislative and other measures as may be necessary to establish as criminal offences, when committed intentionally:
(a) The use of physical force, threats or intimidation or the promise, offering or giving of an undue advantage to induce false testimony or to interfere in the giving of testimony or the production of evidence in a proceeding in relation to the commission of offences covered by this Convention;
(b) The use of physical force, threats or intimidation to interfere with the exercise of official duties by a justice or law enforcement official in relation to the commission of offences covered by this Convention. Nothing in this subparagraph shall prejudice the right of States Parties to have legislation that protects other categories of public officials”.
Note-se que o referido dispositivo faz menção a condutas (empiricamente constatáveis) que poderiam configurar o crime em questão, ao contrário do art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, que a pretexto de defini-lo, acaba incorrendo numa tautologia: dá-se o crime de impedimento ou embaraçamento de investigação de organização criminosa quando alguém impede ou embaraça investigação que envolve organização criminosa! Um completo nonsense! Em suma: tendo-se verificado que o legislador dispunha de total condição de ofertar ao art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 uma redação muito mais clara e precisa (bastando, para tanto, uma simples leitura do art. 23 da Convenção de Palermo), pode-se concluir pela sua manifesta inconstitucionalidade, por violação do princípio nullum crimen nulla poena sine lege certa (art. 5º, XXXIX, da CF).
Mas não é só: para além do critério, que acabamos de expor, da “maior precisão possível”, há ainda outro bastante conhecido, adotado pela Corte Constitucional alemã. De acordo com este tribunal, as exigências de precisão de um tipo penal devem aumentar com o quantum da pena nele [simple_tooltip content=’BVerGE 14, 295 e ss.’]previsto[/simple_tooltip]. Muito embora não se esteja de acordo com tal critério, já que, segundo nos parece, não há qualquer razão para o abrandamento das exigências de taxatividade quando a pena cominada ao delito é [simple_tooltip content=’Assim, Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil I, § 5/70.‘]diminuta[/simple_tooltip], o certo é que ele também nos mostra a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Sim, pois, de acordo com tal critério, um tipo penal cuja pena é elevada (a mesma do delito de organização criminosa, reclusão de três a oito anos e multa) deveria estar formulado com grande precisão. Mas o que se verifica é exatamente o contrário: um tipo absolutamente indeterminado!