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Pelo MP: O informante confidencial como instrumento de combate à corrupção

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Capítulo 1

Introdução

Recentemente, o Ministério Público Federal apresentou à sociedade brasileira uma proposta de aprimoramento do sistema de justiça, focada no combate à corrupção e materializada em 20 anteprojetos de lei, agrupados em 10 grupos de medidas. A campanha, denominada “10 medidas de combate à corrupção”, vem obtendo amplo apoio popular, mediante a coleta de assinaturas necessárias à apresentação de projeto de [simple_tooltip content=’O site www.10medidas.mpf.mp.br reúne informações sobre as propostas, inclusive a íntegra dos anteprojetos de lei. Até a finalização deste artigo, já haviam sido coletadas 1.270.590 assinaturas’]lei de iniciativa popular[/simple_tooltip].

Em linhas gerais, as propostas são calcadas em três pilares: prevenção de atos de corrupção; combate à impunidade; e punição e recuperação do dinheiro desviado. Este trabalho tem por objeto a análise de uma das medidas de aprimoramento dos mecanismos de prevenção da corrupção, qual seja, a regulamentação da figura do “informante confidencial”, resguardando o sigilo da fonte de informação que deu causa à investigação relacionada à prática de ato de corrupção. Na verdade, como se verá adiante, trata-se de medida essencial não só à prevenção da prática ou continuidade de esquemas criminosos, como também à sua investigação e consequente combate da impunidade.

Capítulo 2

O sigilo da fonte de informação

Considera-se informante o indivíduo, servidor público ou não, que leva ao conhecimento do Ministério Público ou de outros órgãos de investigação informações acerca do cometimento de crimes ou atos de improbidade administrativa. Essas informações podem ser utilizadas para a instauração de investigações novas ou para instruir aquelas já em curso.

O processo penal brasileiro é familiarizado com o “informante anônimo”, ou seja, aquele que não tem sua identidade conhecida. Propõe-se a regulamentação, porém, da figura do “informante confidencial”, entendido como aquele que tem seus dados qualificativos conhecidos, porém mantidos de forma reservada pelo órgão destinatário das informações. O anteprojeto de lei da campanha ministerial tem a seguinte redação:

“Art. 1º Esta Lei disciplina, nos termos do art. 5º, inciso XIV, da Constituição Federal, o sigilo da fonte da informação que deu causa à investigação relacionada à prática de atos de corrupção.
Art. 2º Nas esferas administrativa, cível e criminal, poderá o Ministério Público resguardar o sigilo da fonte de informação que deu causa à investigação relacionada à prática de ato de corrupção, quando se tratar de medida essencial à obtenção dos dados ou à incolumidade do noticiante ou por outra razão de relevante interesse público, devidamente esclarecidas no procedimento investigatório respectivo.
Parágrafo único. O Ministério Público poderá arrolar agente público, inclusive policial, para prestar depoimento sobre o caráter e a confiabilidade do informante confidencial, os quais deverão resguardar a identidade deste último, sob pena de responsabilidade.
Art. 3º Ninguém poderá ser condenado apenas com base no depoimento prestado por informante confidencial.
Art. 4º No caso do conhecimento da identidade do informante confidencial ser essencial ao caso concreto, juiz ou tribunal, ao longo da instrução ou em grau recursal, poderá determinar ao Ministério Público que opte entre a revelação da identidade daquele ou a perda do valor probatório do depoimento prestado, ressalvada a validade das demais provas produzidas no processo.
Art. 5º Comprovada a falsidade dolosa da imputação feita pelo informante confidencial, será revelada a sua identidade e poderá ele responder pelos crimes de denunciação caluniosa ou de falso testemunho, sem prejuízo das ações cíveis cabíveis.
Art. 6º Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, à Lei nº 12.846, de 1º de agosto de
2013.”

Portanto, a partir do recebimento de informações fornecidas pelo informante, e conhecida sua identidade, esta será mantida em sigilo quando “se tratar de medida essencial à obtenção dos dados ou à incolumidade do noticiante ou por outra razão de relevante interesse público, devidamente esclarecidas no procedimento investigatório respectivo”.

A confidencialidade perdurará mesmo depois do início de eventual ação penal, inclusive em grau de recurso, somente podendo ser afastada: (i) por opção do Ministério Público, quando o conhecimento da identidade de noticiante for essencial ao caso concreto e o juiz ou tribunal assim determinar, sob pena de perda do valor probatório do depoimento prestado; ou (ii) quando comprovada a falsidade dolosa da imputação feita pelo informante confidencial. Além disso, o texto proposto veda de modo expresso a condenação baseada exclusivamente no depoimento do informante confidencial, a exigir que este seja corroborado por outros elementos de prova.

O informante confidencial não pode ser considerado testemunha. O valor probatório das informações por ele disponibilizadas é limitado, justamente pelo fato de sua confidencialidade não permitir à defesa aferir a credibilidade do depoente, confrontando-o de forma exauriente. Essa distinção elementar será abordada com maior profundidade adiante.

Capítulo 3

Fundamentos para regulamentação do informante confidencial

A regulamentação da utilização do informante confidencial possui como fundamento constitucional principal o art. 5º, XIV, CR/88, que assegura o sigilo da fonte da informação, quando necessário ao [simple_tooltip content=’“Art. 5º. (…) XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.’]exercício profissional[/simple_tooltip].

O sigilo da fonte é necessário, conforme exigido pela norma constitucional, em decorrência de duas circunstâncias jurídico-pragmáticas: (i) a essencialidade dos dados relatados pelo informante para a investigação de atos de corrupção e, portanto, para que o Ministério Público desempenhe de forma adequada suas atribuições constitucionais; e (ii) a usual indisponibilidade do informante em relatar as informações de que dispõe sem que lhe seja garantido que sua identidade não será revelada.

Quanto ao primeiro aspecto, deve-se ressaltar que o conhecimento e a comprovação dos atos de corrupção (crimes contra a Administração Pública e atos de improbidade administrativa) pelos órgãos de investigação, em regra, se mostra extremamente difícil. Isso porque as práticas corruptivas ocorrem, invariavelmente, em contextos velados, fora da visão de terceiros. Como a relação entre corrupto e corruptor é promíscua, ambos se preocupam em esconder o ilícito, sob pena de serem perdidos os ganhos recíprocos com ele auferidos.

A dificuldade cognitiva e probatória dos atos de corrupção é mais acentuada nos casos em que praticados no âmbito de estruturas organizadas de poder, notadamente o poder estatal. Tais estruturas, mediante modos de agir complexos e sofisticados, funcionam como anteparo ao conhecimento dos atos criminosos, dando-lhes aparência de legalidade e, por conseguinte, prejudicando a investigação.

Essas dificuldades foram sopesadas, por exemplo, por ocasião do julgamento da Ação Penal 470/MG (“Mensalão”). Segundo trecho do voto da ministra Rosa Weber:

Quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito, pela elaboração de esquemas velados, destruição de documentos, aliciamento de testemunhas etc. Também aqui a clareza que inspira o senso comum autoriza a conclusão (presunções, indícios e lógica na interpretação dos fatos). Dai a maior elasticidade na admissão da prova de acusação, o que em absoluto se confunde com flexibilização das garantias legais […] A potencialidade do acusado de crime para falsear a verdade implica o maior valor das presunções contra ele erigidas. Delitos no âmbito reduzido do poder são, por sua natureza, em vista da posição dos autores, de difícil comprovação pelas chamadas provas diretas. […] A essa consideração, agrego que, em determinadas circunstâncias, pela própria natureza do crime, a prova indireta é a única disponível e a sua desconsideração, prima facie, além de contrária ao Direito positivo e à prática moderna, implicaria deixar sem resposta graves atentados criminais a ordem jurídica e a sociedade (fls. 52.709-11)”.

Diante disso, o uso de informantes se apresenta como figura essencial na persecução de crimes desta espécie. É o que destaca [simple_tooltip content=’Andrew E. Taslitz. Prosecuting the Informant Culture, 109 MICH. L. REV. 1077 (2011). ‘]Andrew E. Taslitz[/simple_tooltip]:

Igualmente, há amplos benefícios para a utilização de informantes pelos órgãos de controle. Em alguns casos, como nos crimes de colarinho branco ou organizações criminosas, a atividade criminosa é tão secreta, complexa ou de difícil detecção, ou sempre tem presentes ameaças de violência contra os co-conspiradores, que a acusação é impraticável sem informantes. (pp. 29-30, 131-34, 140, 145).” (tradução livre)

Esse contexto leva à maximização da importância da utilização dos dados recebidos de informantes que tenham conhecimento de atos de corrupção. Muitas das vezes, aliás, este será o único meio de o Estado tomar conhecimento do ilícito!

Porém, se é verdade que o informante tem papel essencial na descoberta e investigação de atos de corrupção, é igualmente verdadeiro que aqueles que se dispõem a colaborar com os órgãos de controle nesses moldes trazem para si enorme ônus pessoal. É que vigora no meio criminoso verdadeiro “código de silêncio”, com graves consequências para quem se [simple_tooltip content=’O código de silêncio é também característico das associações italianas do tipo mafioso, ali sendo denominado L’omertà (ou “imposição do silêncio”).’]dispõe a rompê-lo[/simple_tooltip].

Tratando desse fenômeno, com enfoque específico na corrupção policial – mas cuja aplicação no presente contexto é perfeita –, Maurice Punch destaca que “a quebra do código [de silêncio] gera fortes sanções informais, como ameaças, ostracismo, danos à propriedade particular; rumores maliciosos e descrédito através de falsas afirmações prejudiciais ou mesmo violência ”[simple_tooltip content=’PUNCH, Maurice. Police corruption: desviance, accountability and reform in policing. New York/London: Routhledge, 2011, p. 37′](Reiner 1992: 93)[/simple_tooltip]. Não por outro motivo é que, em não raras ocasiões, o informante condiciona sua colaboração à confidencialidade de sua identidade.

Portanto, a figura do informante é essencial para a investigação e persecução de atos de corrupção; por outro lado, a revelação de sua identidade pode lhe trazer riscos concretos, com o consequente desestímulo para a colaboração. Logo, não há dúvidas de que o resguardo do sigilo da fonte, ou seja, da identidade do informante é essencial ao desempenho adequado das funções constitucionais do Ministério Público, notadamente o exercício da ação penal e a propositura de ações para tutela do patrimônio público e da moralidade (improbidade administrativa e outras).

A propósito, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no caso State of New Jersey v. Sean Mcardle, assentou justamente que “o propósito da prerrogativa [de preservar a identidade do informante] tem duas finalidades: ‘proteger a segurança do informante e encorajar o processo de informação’ (State v. Sessoms, 413 N.J. Super. 338, 343 (App. Div. 2010). A prerrogativa, na verdade, visa a proteger o interesse público em um constante fluxo de informação aos agentes encarregados de aplicar a lei. (Grodjesk v. Faghani, 104 N.J. 89, 97 (1986))”.

A ponderação dessas circunstâncias legitima a interpretação do art. 5º, XIV, CR/88, de modo a fundamentar a figura do informante confidencial no ordenamento brasileiro. Pelas peculiaridades da investigação e persecução dos atos de corrução, a utilização do informante confidencial se afigura necessária ao exercício profissional por parte dos membros do Ministério Público, a fim de que estes cumpram satisfatoriamente suas atribuições, especialmente o exercício da ação penal e a proteção do patrimônio público e dos demais bens jurídicos atingido por atos de corrupção.

Em síntese, a prerrogativa constitucional que assegura a todos o sigilo da fonte deve ser entendida como elemento necessário ao exercício profissional-ministerial. Consequentemente, há perfeita harmonia entre o instituto do informante confidencial – justificado jurídica e pragmaticamente – e a Constituição da República, visto que os meios são proporcionais e adequados aos [simple_tooltip content=’Tem pertinência a invocação da teoria dos poderes implícitos, inaugurada no caso McCulloch v. Maryland (1819), da Suprema Corte dos Estados Unidos, pela qual “(…) a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos” (STF, MS 26.547 -MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23.05.2007, DJ de 29.05.2007)’]fins almejados[/simple_tooltip].

É que os órgãos de Estado, ao se desincumbirem de suas funções, devem fazê-lo na exata medida necessária ao atingimento da finalidade proposta, nem mais, nem menos. Disso decorre a necessidade de que a atuação estatal seja pautada pelo princípio da proporcionalidade, o qual apresenta não apenas a clássica e difundida feição negativa, de abstenção estatal, como também sua feição positiva, identificada modernamente como “princípio da vedação à proteção deficiente”.

Ou seja, o Estado não pode empregar meios e condutas que vão além do necessário para o atingimento dos fins propostos (feição negativa), ao mesmo tempo em que não lhe é permitido agir aquém do necessário para que suas atribuições sejam exercidas plenamente (feição positiva). Afinal, como assenta Baltazar Jr., “o dever estatal de garantir a segurança dos cidadãos é um dos fundamentos da ”[simple_tooltip content=’BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crime Organizado e proibição da insuficiência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 189′]própria existência e legitimação do Estado[/simple_tooltip] .

Sobre o tema, são elucidativas as palavras de [simple_tooltip content=’MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Revista Jurídica Virtual, Brasília, v. 2, n. 13, junho 1999. No mesmo sentido, v. FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação de seus ideais. In: Revista de Doutrina da 4ª Região, mar. 2009. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html. Acesso em 23 jan. 2016′]Gilmar Mendes[/simple_tooltip]:

Os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção […], expressando também um postulado de proteção […] Haveria, assim, para utilizar a expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção: […] (b) dever de segurança […], que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante a adoção de medidas diversas; […] Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever de proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental […].”

No mesmo sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424/DF, que a Constituição da República de 1988 traz, no rol de direitos fundamentais por ela elencados, verdadeiros deveres de proteção impostos ao Estado. Isso notadamente pelo fato de que “o Direito Penal é o guardião dos bens jurídicos mais caros ao ordenamento”, sendo que [simple_tooltip content=’Voto do Min. Luiz Fuz (relator), na ADI 4.424/DF’]“a sua efetividade constitui condição para o adequado desenvolvimento da dignidade humana, enquanto a sua ausência demonstra uma proteção deficiente dos valores agasalhados na Lei Maior”[/simple_tooltip].

Se o contexto da investigação/persecução de atos de corrupção apresenta dificuldades peculiares, e se é dever do Estado agir de forma adequada e suficiente no desempenho de suas funções e na proteção dos bens jurídicos, vale a lição de [simple_tooltip content=’BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crime Organizado e proibição da insuficiência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 240-241′]Baltazar[/simple_tooltip], para quem:

“O resultado das dificuldades probatórias […] é um alto grau de impunidade, o que encoraja a repetição do crime, ou seja, uma situação de perigo há de ser objeto do dever de proteção pelo legislador, mediante a publicação de normas processuais adequadas, incluindo aquelas que assegurem a produção da prova. […] Como refere Schünemann: ‘E ele [o Estado] deve organizar um processo penal que leve ao esclarecimento dos fatos criminosos, de tal modo que a desativação das possibilidades de persecução penal visadas com a organização do crime sejam compensadas’. Quer dizer, tais medidas são justificadas para assegurar a segurança do processo (Verfahrenssicherheit).”

Nesse cenário, a proposta de regulamentação da figura do informante confidencial tem o mérito, primeiro, de aumentar o [simple_tooltip content=’Da mesma forma são da denominadas “técnicas especiais de investigação”, instituídas com a finalidade de contornar as dificuldades probatórias inerentes aos atos de corrupção e crimes praticados por organizações criminosas’]leque de instrumentos de investigação[/simple_tooltip]; segundo, atribui segurança jurídica não apenas ao colaborador, como também ao interesse público tutelado pelo Ministério Público no caso concreto. Evita-se que sobrevenham fatos inesperados que obriguem a revelação da identidade do informante ou mesmo que os elementos obtidos a partir da colaboração venham a ter sua validade questionada.

Quanto a este último ponto (questionamento de validade), a utilização do informante confidencial se contrapõe à informação anônima – aquela em que não se tem conhecimento da identidade do seu autor. São comuns situações nas quais os órgãos de controle, ao tomarem conhecimento de informação relevante para a deflagração ou continuidade de investigação, preferem levá-la aos autos do procedimento investigativo como se anônima fosse, mesmo que a identidade do informante seja conhecida, como forma de evitar os pontos negativos acima mencionados (risco ao informante e desestímulo à colaboração).

Tal procedimento, entretanto, traz inconvenientes. O primeiro deles decorre do fato de a jurisprudência dos tribunais brasileiros, especialmente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, condicionar a admissibilidade de denúncia anônima que tenha sido usada para deflagrar uma investigação à realização de diligências preliminares corroborativas. O caso mais emblemático no qual esse entendimento foi aplicado é o Habeas Corpus nº 137.349-SP, que levou à controversa anulação da [simple_tooltip content=’

HABEAS CORPUS. “OPERAÇÃO CASTELO DE AREIA”. DENÚNCIA ANÔNIMA NÃO SUBMETIDA À INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR. DESCONEXÃO DOS MOTIVOS DETERMINANTES DA MEDIDA CAUTELAR. QUEBRA DE SIGILO DE DADOS. OFENSA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. PROCEDIMENTO DE INVESTIGAÇÃO FORMAL. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE MOTIVOS IDÔNEOS. BUSCA GENÉRICA DE DADOS. As garantias do processo penal albergadas na Constituição Federal não toleram o vício da ilegalidade mesmo que produzido em fase embrionária da persecução penal. A denúncia anônima, como bem definida pelo pensamento desta Corte, pode originar procedimentos de apuração de crime, desde que empreendida investigações preliminares e respeitados os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão, o que leva a considerar imprópria a realização de medidas coercitivas absolutamente genéricas e invasivas à intimidade tendo por fundamento somente este elemento de indicação da prática delituosa. A exigência de fundamentação das decisões judiciais, contida no art. 93, IX, da CR, não se compadece com justificação transversa, utilizada apenas como forma de tangenciar a verdade real e confundir a defesa dos investigados, mesmo que, ao depois, supunha-se estar imbuída dos melhores sentimentos de proteção social. Verificada a incongruência de motivação do ato judicial de deferimento de medida cautelar, in casu, de quebra de sigilo de dados, afigura-se inoportuno o juízo de proporcionalidade nele previsto como garantia de prevalência da segurança social frente ao primado da proteção do direito individual. Ordem concedida em parte, para anular o recebimento da denúncia da Ação Penal n.º 2009.61.81.006881-7. (STJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura; Sexta Turma, DJ de 30/05/2011) e Sobre os precedentes do Supremo Tribunal Federal acerca desse tema, confira-se: HC 108.147, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 1º.02.13; HC 105.484, Segunda Turma, Rel. Min.Cármen Lúcia, DJe de 16.04.13; HC 99.490, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 1º.02.11; HC 98.345, Primeira Turma, Redator para o acórdão: Min. Dias Toffoli, DJe de 17.09.10; HC 95.244, Primeira Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 30.04.10′]Operação Castelo de Areia[/simple_tooltip].

Ou seja, mesmo que um informante anônimo apresente dados concretos e detalhados que deem conta do cometimento de ilícitos, de acordo com o referido entendimento jurisprudencial essas informações não podem ser usadas autonomamente. Cabe ao Ministério Público, por outros meios, obter elementos que confirmem aqueles dados fornecidos. Todavia, tal corroboração nem sempre é possível sem a realização de medidas coercitivas ou invasivas (conduções, quebra de sigilo bancário e/ou fiscal, entre outras), o que, por si só, pode inviabilizar a investigação.

Os precedentes jurisprudenciais citados trazem uma significativa margem de incerteza sobre a validade da investigação deflagrada a partir de uma informação anônima. É impossível definir, a priori, o que seriam as diligências preliminares corroborativas necessárias para se admitir as informações anônimas, fazendo-se necessária a submissão da questão à apreciação imparcial do juiz competente para o caso. Todavia, mesmo que um juiz venha a considerar válidas as diligências preliminares realizadas, autorizando a partir daí medidas coercitivas ou invasivas, tal juízo terá contraditório diferido. Assim, sempre estará sujeito a futuros questionamentos nas instâncias superiores, podendo levar à ulterior [simple_tooltip content=’A exigência de diligências preliminares corroborativas em relação à informação anônima também ocorre no direito norte-americano, como decidido pela Suprema Corte, por exemplo, em Illinois v. Lance Gates et ux., 462 U.S. 213 (1983). O problema da jurisprudência brasileira está, na verdade, em admitir a revisão de decisões judiciais que deram amparo à produção de prova a partir de informação anônima corroborada, em maior ou menor grau, por outras diligências. Isso porque a finalidade do sistema de nulidades das provas no processo penal é prevenir desvios de conduta dos órgãos de persecução penal, e não erros judiciários (salvo quando evidentemente grosseiros). No direito norte-americano tal distinção está consolidada em diversos precedentes – United States v. Leon, 468 U.S. 897 (1984), Massachusetts v. Sheppard, 468 U.S. 981 (1984), entre outros –, de tal maneira que a prova “ilícita” não é excluída se a sua produção foi fundada em determinação judicial. Nessa situação, a Suprema Corte reconhece discricionariedade e deferência ao juiz, limitando-se a analisar se a polícia agiu de boa-fé e com confiança razoável no mandado judicial. Para uma análise aprofundada do tema, v. DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. Informantes confidenciais e anônimos: perspectivas para atuação mais eficiente do Estado a partir de uma análise comparativa do tratamento jurídico nos EUA e no Brasil. In: Ministério Público e princípio da proteção eficiente. Coordenação: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. São Paulo: Almedina, no prelo, p. 39-61′]anulação da totalidade das investigações[/simple_tooltip].

Além disso, adotar como anônima uma informação que foi fornecida por sujeito identificado impede e/ou dificulta o controle em relação ao conteúdo da informação. Caso se constate, por exemplo, que aquela informação foi falseada de forma dolosa, restará inviabilizada a responsabilização civil e criminal do informante, já que não se terá conhecimento de sua identidade.

Todos esses fundamentos, aliados à previsão constitucional do art. 5º, XIV, CR/88, demonstram que a regulamentação da figura do informante confidencial constitui nítida evolução para o sistema de justiça brasileiro, especialmente no combate à corrupção.

Não bastasse isso, a proteção da identidade do informante e a legitimidade da utilização das informações por ele fornecidas encontram amparo na legislação das principais democracias do mundo, bem como em instrumentos internacionais.

O Informe Anual de 2000, do Relator Especial das Nações Unidas para Liberdade de Expressão, encampou o conjunto de princípios de acesso à informação desenvolvidos pela ONG Article 19 – International Centre Against Censorship. No Anexo II do citado relatório, denominado The Public’s Right to Know: Principles on Freedom of Information Legislation, é prevista a proteção ao denunciante como um [simple_tooltip content=’UNITED NATIONS. Commission on Human Rights. Report of the Special Rapporteur on the Promotion and Protection of the Right to Freedom of Opinion and Expression (E/CN.4/2000/63). Disponível em: http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G00/102/59/PDF/G0010259.pdf?OpenElement. Acesso em 16 jan. 2016′]princípio de acesso a informação[/simple_tooltip].

Além disso, durante a Cúpula do G20, realizada em Seul no ano de 2010, foi adotado o Plano de Ação Anti-Corrupção, que tem como uma das prioridades em sua agenda a proteção de denunciantes. De acordo com o estudo, a proteção de denunciantes é essencial para encorajar relatos de má conduta, fraude e corrupção de autoridades públicas, sendo que o risco de corrupção é significativamente elevado em ambientes onde o [simple_tooltip content=’G20 ANTI-CORRUPTION ACTION PLAN PROTECTION OF WHISTLEBLOWERS. Study on Whistleblower Protection Frameworks, Compendium of Best Practices and Guiding Principles for Legislation (2010). Disponível em: http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf. Acesso em 16 jan. 2016′]ato de denunciar autoridades não é estimulado, nem protegido[/simple_tooltip].

Também a [simple_tooltip content=’Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 348, de 18 de maio de 2005, e promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006′]Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[/simple_tooltip], em seu art. 33, impõe aos Estados-parte a obrigação de assegurar a proteção aos denunciantes:

Artigo 33
Proteção aos denunciantes
Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.

No mesmo sentido, dispõe a [simple_tooltip content=’Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002′]Convenção Interamericana contra a Corrupção, da Organização dos Estados Americanos – OEA[/simple_tooltip], em seu art. III.8:

Artigo III
Medidas preventivas
Para os fins estabelecidos no artigo II desta Convenção, os Estados Partes convêm em considerar a aplicabilidade de medidas, em seus próprios sistemas institucionais destinadas a criar, manter e fortalecer:
[…]
8. Sistemas para proteger funcionários públicos e cidadãos particulares que denunciarem de boa-fé atos de corrupção, inclusive a proteção de sua identidade, sem prejuízo da Constituição do Estado e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico interno.

Já no direito norte-americano, em que a utilização de informantes como fonte de investigação é difundida, há inúmeros precedentes que legitimam o chamado informer´s privilegie (“privilégio de informante”), assim entendida a prerrogativa assegurada ao Estado de preservar o sigilo da identidade do informante.

No [simple_tooltip content=’McCray v. Illinois, 386 U.S. 300 (1967)’]caso McCray v. Illinois[/simple_tooltip], por exemplo, a Suprema Corte reconheceu a legitimidade de prisão de traficante de drogas realizada a partir de informações repassadas por um informante. O traficante preso questionou em juízo o sigilo da identidade do informante, o qual, entretanto, foi [simple_tooltip content=’Consta do summary (ou ementa) daquele julgado: Following receipt of information from an informer, two Chicago policemen made a warrantless arrest of the petitioner for possessing narcotics. At the pretrial hearing on petitioner’s motion to suppress the evidence which was found on his person, the officers testified that: the informant had told them that petitioner “was selling narcotics and had narcotics on his person” and the area where petitioner could then be found; they found him in that vicinity; after pointing petitioner out, the informant departed; they arrested petitioner and searched him in their vehicle and found the narcotics on his person. The officers also testified that, during the one to two years, respectively, that they had known the informant, he had frequently furnished accurate information about narcotics activities which had led to many convictions. Petitioner requested the informant’s identity, and the State, relying on the testimonial privilege under Illinois law against such disclosure, objected. The State’s objections were sustained, petitioner’s motion to suppress was denied, and he was thereafter convicted upon the basis of the evidence seized. The judgment of conviction was affirmed by the State Supreme Court, which held the arrest lawful and not vitiated by the application of the “informer’s privilege.” Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/386/300/case.html. Acesso em 16 jan. 2016‘]mantido pela Corte[/simple_tooltip]. No mesmo sentido, pela validade do informer´s privilegie: Georgia in Anderson v. Statte, 72 Ga. App. 487, 493 (34 SE2d 110) (1945); People v. Hobbs (1994); Pass v. State, 227 Ga. 730 (4) (182 SE2d 779) (1971); Morgan v. State, 211 Ga. 172, 177 (84 SE2d 365) (1954); Stanford v. State, 134 Ga. App. 61 (1) (213 SE2d 519) (1975); Thomas v. State, 134 Ga. App. 18 (1) (213 SE2d 129) (1975); Welch v. State, 130 Ga. App. 18, *164 19 (3) (202 SE2d 223) (1973); Morrison v. State, 129 Ga. App. 558 (5) (200 SE2d 286) (1973); Butler v. State, 127 Ga. App. 539 (2) (194 SE2d 261) (1972); Staggers v. State, 101 Ga. App. 463, 465 (114 SE2d 142) (1960); Smallwood v. State, 95 Ga. App. 766 (1) (98 SE2d 602) (1957); Roddenberry v. State, 90 Ga. App. 66 (82 SE2d 40) (1954).

Diante de tais fundamentos, portanto, não há dúvidas de que a proposta em questão revela verdadeiro avanço no manejo de elementos de informação relevantes para a investigação de atos de corrupção. A regulamentação do instrumento do informante confidencial, cuja eficiência e importância são indiscutíveis, propicia o uso das informações por ele fornecidas pelo Ministério Público de modo mais confiante, eliminando a insegurança hoje vigente no que tange às provas derivadas de informantes anônimos.

Capítulo 4

Das críticas formuladas à medida

Não obstante o notável avanço a ser trazido pela regulamentação da figura do informante confidencial, desde a divulgação da proposta pelo Ministério Público Federal foram suscitados alguns questionamentos acerca da sua legalidade e constitucionalidade. A seguir, passa-se a expor referidas críticas e indicar os fundamentos pelos quais elas são totalmente impertinentes.

1. DA FIGURA DO INFORMANTE CONFIDENCIAL EM FACE DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO, SOB A ÓTICA DO DIREITO AO CONFRONTO (RIGHT OF CONFRONTATION). COMPATIBILIDADE.

Uma das objeções realizadas ao sigilo da fonte consiste na sua suposta inconstitucionalidade. Alega-se, em síntese, violação do direito ao confronto, que assegura à defesa o conhecimento e acompanhamento da fonte das informações para adequada discussão sobre a sua credibilidade e a legalidade da prova. O argumento deriva do princípio do contraditório e estaria também embasado na jurisprudência do STF, notadamente a que deu ensejo à edição da Súmula Vinculante nº 14. Nesse sentido, Flavio Antônio da Cruz invoca a vedação ao anonimato prevista no art. 5º, IV, da CR/88 e as decisões norte-americanas no caso Pointer v. Texas (380, US 400, 1965) e Giglio v. USA (405, US 150, 1972), afirmando que “a acusação é obrigada a revelar ao acusado todos os elementos de informação relevantes para [simple_tooltip content=’CRUZ, Flavio Antônio da. Teste de integridade e sigilo da fonte: exame crítico. Boletim IBCCRIM. Ano 23, n. 277, dezembro/2015, p. 4-6. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/pdfs/Boletim277.pdf. Acesso em: 21 jan. 2016′]o exercício do direito à defesa”[/simple_tooltip].

É preciso separar o joio do trigo.

Como já observado, o conceito de informante (anônimo ou confidencial) não pode ser confundido com o de testemunha. Informante é aquele que disponibiliza ao Ministério Público e outros órgãos investigativos informações sobre o cometimento de crimes ou atos de improbidade administrativa. Sua identidade pode ser desconhecida (informante anônimo) ou conhecida, porém mantida em sigilo pelos órgãos de controle por razões de interesse público (informante confidencial). Devido ao anonimato ou confidencialidade, o informante não é chamado como testemunha do caso. Testemunha é a pessoa cuja identidade é conhecida por todos os sujeitos processuais (acusação, defesa e juízo), e que, perante o juízo, declara o que conhece sobre o fato criminoso e de suas circunstâncias, sob o compromisso de dizer a verdade. As características do depoimento testemunhal, como anota Mirabete, são a[simple_tooltip content=’MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 553′] “judicialidade (tecnicamente só é prova testemunhal a prestada em juízo); a oralidade; a objetividade (a testemunha deve limitar-se aos fatos e não externar suas opiniões); e a retrospectividade (só se refere a fatos passados, não fazendo prognósticos)”[/simple_tooltip].

A elementar distinção entre testemunhas e informantes é fundamental para a adequada compreensão do papel de tais figuras no processo penal, considerando o princípio do contraditório (e o direito ao confronto dele derivado). Em relação à testemunha o contraditório é pleno, de tal maneira que o valor probatório de seu depoimento é acentuado, podendo servir de amparo, por si só, a uma [simple_tooltip content=’Trata-se de decorrência do sistema de livre convencimento motivado, que permeia a valoração da prova em nosso sistema jurídico. Ver, por todos: “PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONFIGURAÇÃO. EXAME DE CORPO DELITO. HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. DENÚNCIA. INÉPCIA. NÃO CONFIGURAÇÃO. DESCRIÇÃO EM TESE DE CRIME. – A configuração do crime de atentado violento ao pudor, por não deixar vestígios, prescinde da realização do exame de corpo delito, sendo suficiente a manifestação inequívoca e segura da vítima, quando em consonância com os demais elementos probatórios delineados no bojo da ação penal. (…) Habeas-corpus denegado” (STJ – HC: 11033 RS 1999/0096492-6, Relator: Ministro VICENTE LEAL, Data de Julgamento: 02/12/1999, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 28.02.2000 p. 127)’]decisão condenatória[/simple_tooltip]. No caso do informante anônimo não há contraditório, o que impede que as informações sirvam de base para uma decisão condenatória, somente viabilizando a instauração de uma investigação preliminar dos fatos. A posição do informante confidencial é intermediária. Como não há anonimato – afastando, assim, o disposto no art. 5º, IV, da CR/88 –, é razoável admitir que suas declarações tenham maior credibilidade que a dos informantes anônimos. Entretanto, devido à justificada confidencialidade (art. 5º, XIV, da CR/88 e princípio da proibição da proteção deficiente), o seu valor probatório é reduzido, jamais podendo dar ensejo, isoladamente, a uma decisão condenatória. Sua função, assim, é precipuamente orientadora das investigações, permitindo aos órgãos de apuração ter conhecimento de fatos delituosos e, a partir daí, alcançar outros elementos de prova da prática dos atos de corrupção.

No caso Pointer v. Texas (380, US 400, 1965), citado pelos críticos da medida, a principal testemunha de um crime de roubo prestou depoimento em uma audiência preliminar na presença do acusado. Este, não tendo advogado, não realizou o cross-examination, isto é, não inquiriu a testemunha da acusação. Posteriormente, durante o julgamento, a mesma testemunha mudou de Estado e a acusação ofereceu a transcrição do depoimento da testemunha como prova, o que foi impugnado pela defesa. A Suprema Corte decidiu que o uso da transcrição do depoimento retirava a oportunidade do advogado do acusado de inquirir a principal testemunha do caso, violando o direito ao confronto. Afirmou-se, assim, que houve violação da Sexta Emenda à Constituição, que assegura ao acusado o direito de confronto com a testemunha [simple_tooltip content=’Nas palavras do Justice Black, no caso Pointer, “it cannot seriously be doubted at this late date that the right of cross-examination is included in the right of an accused in a criminal case to confront the witnesses against him. And probably no one, certainly no one experienced in the trial of lawsuits, would deny the value of cross-examination in exposing falsehood and bringing out the truth in the trial of a criminal case”. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/380/400/case.html. Acesso em 22 jan. 2016′](“with the witnesses”)[/simple_tooltip].

Como se vê, o que se discutiu em Pointer v. Texas foi o direito de confronto em face de testemunha (witness), devidamente identificada nos autos, e não de informante. Trata-se, enfim, de precedente que não guarda relação de similitude com a discussão sobre o valor probatório das informações disponibilizadas por informante confidencial, aplicando-se, assim, a distinção (distinguishing).

No caso Giglio v. USA (405, US 150, 1972), também citado pela crítica acima, a Suprema Corte decidiu que a acusação não apresentou todas as evidências necessárias para o julgamento, notadamente um acordo formulado com a principal testemunha do caso, no sentido de que ela não seria processada se prestasse depoimento perante o júri e no julgamento. Tratava-se, no caso, de uma testemunhal fundamental à acusação, sem a qual, segundo o Chief Justice Burger, [simple_tooltip content=’Como afirmou o Chief Justice Burger: “Here, the Government’s case depended almost entirely on Taliento’s testimony; without it, there could have been no indictment and no evidence to carry the case to the jury. Taliento’s credibility as a witness was therefore an important issue in the case, and evidence of any understanding or agreement as to a future prosecution would be relevant to his credibility and he jury was entitled to know of it”. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/405/150/case.html. Acesso em 22 jan. 2016′]“não haveria evidência para levar o caso ao júri” [/simple_tooltip](tradução livre). Mais uma vez, trata-se de precedente que abordou a produção de prova testemunhal, não cuidando das particularidades inerentes à figura do informante confidencial.

Na jurisprudência norte-americana, conforme diversos precedentes citados no tópico anterior deste trabalho, é plenamente aceita a validade probatória das declarações do informante confidencial. Há, como dito, uma prerrogativa do Estado de preservar o sigilo da identidade do informante (informer´s privilegie), sem que isso comprometa o valor probatório de seu depoimento. Tal prerrogativa não é absoluta, devendo as cortes judiciárias balancear o interesse público de proteger a identidade do informante com a necessidade do réu em identificá-lo para exercício de sua defesa. Nesse sentido, analisando o caso Roviaro v. United States (353, US 53, 1957) e outros precedentes da Suprema Corte norte-americana, explica Deltan Martinazzo Dallagnol:

[simple_tooltip content=’DALLAGNOL, op. cit., no prelo. As decisões citadas em nota de rodapé pelo autor são as seguintes: United States v. Cartagena, 593 F.3d 104, 112 (2010); United States v. Smith, Crim. No, 04-680, 2005 U.S. Dist. LEXIS 3782 (E.D. Pa. 2005), United States v. Rios, Crim. No. 96-0540-06, 1997 U.S. Dist. LEXIS 8843 (E.D. Pa. 1997); United States v. Bazzano, 712 F.2d 826 (3d Cir. 1983); United States v. Estrella, 567 F2d. 1151 (1st Cir. 1977); State v. Burnett, 201 A.2d 39, 43-44 (N.J. 1694). A obra de Ingram referida é: JEFFERSON L. INGRAM, Criminal Evidence 391 (11th ed. 2012)’]“O privilégio, portanto, pode ceder quando a revelação da identidade é importante para a defesa ou para um julgamento justo, como foi o caso em Roviaro, no qual a Corte entendeu que o IC [informante confidencial] seria uma testemunha crucial para que a defesa apresentasse sua versão do caso.
Quanto a esse ponto, entendem as cortes norte-americanas que o réu tem o ônus de provar que a identidade do informante é de importância significativa para a apresentação de uma defesa. A ‘mera especulação’ sobre a relevância não é suficiente.
Contudo, mesmo na hipótese de que a necessidade de revelação da identidade deva ser reconhecida, a decisão em Roviaro afirmou, em obter dictum, que ‘o julgador pode requerer a revelação da identidade e, se o Governo retém a informação, encerrar o caso’. Embora dictum não tenha autoridade de precedente, a passagem sugere que o Governo ainda tem a chance, de um lado, de revelar a identidade do informante e prosseguir no caso ou, de outro lado, manter o sigilo da fonte e sofrer as consequências processuais dentro do caso (como seu encerramento). Ingram, depois de analisar o assunto, afirma que o Governo tem de fato tal escolha”
[/simple_tooltip].

Casuisticamente, portanto, as informações disponibilizadas pelo informante confidencial podem ser consideradas essenciais ao julgamento ou à defesa. Caberá ao réu, nesse caso, o ônus de comprovar a imprescindível necessidade da identificação do informante para exercício do contraditório e da ampla defesa, não bastando, sob pena de aniquilação do instituto, a mera especulação. Comprovada a real necessidade de identificação do informante, o juiz ou tribunal poderá determinar ao Ministério Público que opte entre a revelação da identidade ou a perda do valor probatório do depoimento prestado (e somente dele), como bem consignado na proposta do anteprojeto de lei analisado.

No direito brasileiro, não há qualquer abordagem legal ou jurisprudencial da figura do informante confidencial.

A Lei nº 9.807/99, que trata da proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, não possui relação com o assunto. Afastar a pertinência da regulamentação do informante confidencial sob a alegação de que a lei brasileira disciplina a proteção de testemunhas ameaçadas é uma abordagem extremamente míope do tema. É preciso não só diferenciar as figuras do informante confidencial e da testemunha, como também enfrentar a importância da confidencialidade para que determinadas informações efetivamente cheguem ao conhecimento dos órgãos de controle. Mesmo em um ambiente ideal de funcionamento do sistema de proteção a testemunhas – do qual, diga-se de passagem, a realidade brasileira está bem distante –, há que se considerar a existência de práticas criminosas em que a identificação da fonte levaria à inarredável negativa de depoimento sobre os fatos. São casos de crimes praticados por policiais e organizações criminosas, por exemplo, em que os riscos à vida e à integridade física do informante são consideráveis, nele incutindo o justo receio de ser identificado. O conhecimento dos fatos por meio de fonte mantida em sigilo, nessas situações, é uma opção mais razoável do que o não conhecimento dos fatos.

[simple_tooltip content=’Súmula Vinculante nº 14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”’]Quanto à Súmula Vinculante nº 14, seu propósito é assegurar o amplo acesso à defesa de elementos de prova já documentados em procedimento investigatório que digam respeito ao exercício do direito de defesa[/simple_tooltip]. É evidente, porém, que o exame da constitucionalidade do informante confidencial em face dos direitos ao contraditório e à ampla defesa guarda peculiaridades, como exaustivamente exposto neste trabalho. Aliás, a confidencialidade do informante impõe que sequer haja documentação da sua identidade nos autos, de tal forma que a defesa, em regra, poderá ter acesso somente às informações por ele disponibilizadas e aos elementos de prova posteriormente colhidos durante a investigação.

2. DA DISCRICIONARIEDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO QUANTO AO SIGILO DA IDENTIDADE DO INFORMANTE.

A segunda objeção formulada contra a proposta ora em comento critica a discricionariedade dada ao Ministério Público para assegurar o sigilo da identidade do denunciante (art. 2º) e para revelar tal identidade em troca da manutenção do valor probatório (art. 4º). Segundo os autores da crítica, a manutenção do sigilo deve ser direito do denunciante, que [simple_tooltip content=’OLIVEIRA, J. M. F. et al. Como Combater a Corrupção? Uma avaliação de impacto legislativo de proposta em discussão no Congresso Nacional. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/ Senado, Julho/2015 (Texto para Discussão nº 179). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 16 de julho de 2015′]só pode ser excepcionado nos casos de má-fé ou consentimento deste[/simple_tooltip].

Embora à primeira vista a crítica pareça tentadora, a análise da prerrogativa de informante, sob a ótica de sua finalidade e razão de ser, indica a impertinência da ponderação.

Conforme redação da proposta apresentada pelo Ministério Público Federal, o sigilo da identidade do informante visa a preservar a obtenção dos dados necessários à investigação, à incolumidade do noticiante ou a outra razão de relevante interesse público. Logo, além da preservação da incolumidade do noticiante, estão em jogo outros valores igualmente caros, sempre com vistas ao atendimento do interesse público.

Não é recomendável, portanto, que a manutenção do privilégio esteja sujeita à discricionariedade do informante. Isso traria grande insegurança à investigação/persecução e submeteria a utilidade da atividade ministerial ao interesse exclusivo do informante, que sequer é parte na relação processual instaurada.

Desconsidera-se, dessa forma, que além de tutelar a incolumidade do noticiante, a prerrogativa do informante tutela o [simple_tooltip content=’A recusa em revelar a identidade do informante em determinado caso concreto, por exemplo, pode ter por finalidade a preservação daquela fonte de informação, para futuras colaborações. O alerta é de Andrew E. Taslitz (Prosecuting the Informant Culture, 109 MICH. L. REV. 1077 (2011), para quem, “as vezes, entretanto, o Estado faz uso do privilégio de informante com o intuito de protege-lo ou assegurar sua utilidade como fonte de informações”’]interesse da investigação/persecução em curso e até mesmo de outras[/simple_tooltip], cuja disponibilidade só pode ser acometida ao respectivo titular, no caso, o Ministério Público.

A opção quanto a revelar ou não a identidade do informante possui repercussão direta na continuidade da ação penal em curso, ou mesmo na qualidade da acusação formulada, razão pela qual o ato de revelá-la ou não se caracteriza como [simple_tooltip content=’Ao abordar o tema dos litisconsortes, Fredie Didier Jr. diferencia as condutas determinantes e condutas alternativas. Segundo o autor, “considera-se determinante a conduta da parte que a leva a uma situação desfavorável; é, por isso, potencialmente lesiva”. Por sua vez, “a conduta alternativa é aquela pela qual a parte busca uma melhora na sua posição processual – é alternativa porque esse resultado almejado não ocorrerá necessariamente, mas é o que se busca”. Com base nessa distinção, Didier aduz que “a conduta determinante de um litisconsorte não pode prejudicar o outro” (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 446.) Aplicando-se referida noção à situação tratada neste trabalho, analogicamente, conclui-se que a revelação ou não da identidade do informante é conduta determinante para o Ministério Público, e como tal, somente a este cabe a decisão quanto a praticá-la’]“conduta determinante”[/simple_tooltip]. Por isso, não faz qualquer sentido atribuir a terceiro – o informante – o juízo quanto a praticar ou não tal conduta.

Ademais, no direito anglo-saxão, fonte de inspiração da proposta sob análise, não pairam quaisquer dúvidas quanto ao fato de serem os órgãos encarregados da aplicação da lei os titulares da prerrogativa em questão. Tal como assentado em [simple_tooltip content=’Roviaro v. United States, 353 U.S. 53 (1957). Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/353/53/case.html#60. Acesso em 29 jan.2016′]Roviaro v. United States[/simple_tooltip], “o que geralmente é referido como privilégio de informante é, na realidade, a prerrogativa de o Estado manter sob sigilo a identidade de pessoas que forneceram informações sobre crimes” (tradução livre).

No mesmo sentido, [simple_tooltip content=’DALLAGNOL, op. cit., no prelo’]Deltan Martinazzo Dallagnol[/simple_tooltip]:

O privilégio de IC é o direito potestativo do Governo (Polícia e Ministério Público), existente nos EUA, ao sigilo de fonte no que toca à identidade do informante. Ele está bem estabelecido no Direito norte-americano e já era reconhecido na Inglaterra pelo menos desde 1794. Desde 1961, Wigmore – uma das maiores autoridades anglo-saxãs em matéria probatória – defendia que o privilégio é importante não apenas para proteger o informante e então encorajar a cooperação com os órgãos de aplicação da lei, mas também para proteger o interesse do Governo, que frequentemente utiliza informantes profissionais em investigações. De acordo com Wigmore, ‘[q]ue o governo tem esse privilégio é bem estabelecido, e sua solidez não pode ser questionada.’”

Assim, é evidente que a prerrogativa de informante confidencial deve ser atribuída não ao informante, mas sim ao órgão que atua na condição de Estado-acusação.

 

Capítulo 5

Conclusão

A proposta de regulamentação da figura do informante confidencial insere-se, portanto, em um viés de incremento dos mecanismos de prevenção e combate da corrupção. Por assegurar maior previsibilidade e segurança jurídica, incentiva a cooperação do indivíduo que tenha conhecimento de fatos criminosos e deseja levá-los ao conhecimento dos órgãos de controle.

A proposta se fundamenta não apenas no art. 5º, XIV, CR/88, que assegura o sigilo da fonte, quando essencial para o desempenho profissional, mas também na teoria dos poderes implícitos e no princípio da proporcionalidade, sob sua feição positiva, de vedação da proteção deficiente.

Sob o ponto de vista pragmático, a proposta tem o mérito de atenuar as dificuldades probatórias inerentes aos atos de corrupção, constituindo instrumento que maximiza as possibilidades de atuação no seu combate.

A previsão da figura do informante confidencial busca inspiração no direito norte americano, em que sua utilização é difundida e reconhecida pela jurisprudência, além de possuir previsão em diversos instrumentos internacionais de combate à corrupção.

A proposta não importa em qualquer violação ao princípio do contraditório, inclusive na acepção do direito ao confronto (right of confrontation), uma vez que o informante confidencial não se confunde com a testemunha. O depoimento do informante não é prestado em juízo e não pode, por si, impor a condenação. Dessa forma, o informante não pode nem deve estar sujeito ao cross examination (perguntas formuladas pela parte que não a arrolou).
Por fim, a discricionariedade assegurada ao Ministério Público para revelar a identidade do informante, visando a manter o valor probatório do depoimento – se assim determinar o Juiz –, decorre da circunstância de que não se protege, como a confidencialidade, apenas a figura do informante, mas também outros valores de relevante interesse público. Ademais, em se tratando de condutas que gerarão efeitos na ação penal, cujo titular é o Ministério Público, nada mais natural que atribuir a este a decisão sobre os desdobramentos da utilização do informante confidencial.

Certamente, o combate à corrupção do Brasil será fortalecido com a aprovação da medida proposta pelo Ministério Público Federal, sem que isso implique em violação de quaisquer direitos individuais, os quais permanecerão respeitados.

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BIBLIOGRAFIA

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