CADE

Confusão e ordem

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Capítulo 1

Introdução

Palavras descontextualizadas. Frases desconexas. Título ambíguo. Interpretações variadas. O poeta romano Públio Ovídio Naso foi o primeiro a atribuir a noção de desordem e confusão à divindade Caos, que, segundo a mitologia grega, foi o primeiro Deus a surgir no universo, de difícil entendimento, que trazia desunião, desordem, cisão. Eros, por sua vez, era o seu oposto. Deus do amor, retrato da união e da organização.

Caos e Eros. Confusão e ordem. Para avocar Eros, contudo, Caos teria que estar presente. Com a pretensão e ousadia de bradar por Eros, tentarei desvendar da forma mais eloquente possível meus pensamentos – talvez caóticos – acerca do tema trazido por mim pela primeira vez em uma das sessões do maior encontro do antitruste brasileiro, o Ibrac, em 2015: vantagem auferida (VA) e dano. Qual o objetivo? Esclarecer alguns tópicos controversos, em primeiro lugar, e, em segundo, tentar conquistar corações e mentes na busca desenfreada de livrar-me, quem sabe, da solidão inquieta e angustiada que me acompanha há dois anos, amenizada pela presença do conselheiro João Paulo, que tem visão similar a minha.

Do título – um jocoso jogo de vocábulos do nosso antitruste – aspiro esclarecer 5 pontos, a saber: (1) o que me incomoda no artigo 37 da lei 12.529/11; 2) os pontos que convirjo e divirjo do Conselheiro João Paulo; (3) como ocorre a sanção pecuniária nas jurisdições cinco estrelas e como estas se assemelham à ideia subjacente da VA e do dano; (4) como interpreto o estudo realizado pelo Conselheiro Alexandre Cordeiro e, por fim, (5) qual poderia ser a agenda da comunidade antitruste brasileira acerca do assunto em tela, aproveitando para comentar o bem fundamentado texto do Dr. Mauro Grinberg. Vejamos, então.

Capítulo 2

O esclarecimento dos 5 pontos

A desvantagem econômica do dano auferido por conduta anticompetitiva e a limitação jurídica da multa

Acerca do item um, o artigo 37 tem cinco aspectos questionáveis, os quais são desconexos de lógica econômica ou de definições usuais do antitruste. Decerto, (1) a expressão “ramo de atividade” não se confunde com “mercado relevante dimensão produto”. Não por outra razão o Cade teve que se pronunciar para definir dita expressão (Resoluções 3/2012 e 18/2016); (2) “Brasil (ou mundo)” não é necessariamente o “mercado relevante dimensão geográfica”[1]; (3) “um ano” não é, na maioria dos casos, “o período de tempo” que as condutas anticompetitivas duram; (4) o “ano anterior a abertura do PA” em geral não tem relação com o período em que ocorreu a conduta; e (5) por haver a última frase “a qual nunca será inferior à VA, quando for possível sua estimação”, o parâmetro de 20% deixa de ser o limitador máximo da sanção pecuniária a ser aplicada no Cade.

Com respeito aos quatro primeiros itens, o mais adequado seria alterar a redação para algo como: “impor certo % sobre o faturamento do grupo no mercado relevante (do produto e geográfico) durante o período da conduta”, que, como será visto mais adiante, é uma proxy de VA e é o fundamento do que se faz nas jurisdições mais reputadas na área do antitruste. Não há razão, consequentemente, para o Brasil sancionar de forma tão díspar com o que fazem as melhores agências antitruste no mundo.

Com relação ao quinto item, não cabe interpretar o que não está escrito ou fazer o mau uso da gramática portuguesa. É verdade que muitos entendem que deve haver uma limitação máxima em sanções administrativas, mas não é “matando o idioma” que se traz Eros para aonde está Caos. O mais oportuno, portanto, seria, ademais de reescrever o inciso I do artigo 37, ter indicação explícita de um teto para a sanção pecuniária. Além disso, conquanto seja do desagrado de alguns, a expressão final do artigo 37 mostra quão preocupado o legislador estava com que a sanção pecuniária fosse dissuasória. Deveras, do ponto de vista dos incentivos, para o Estado, uma sanção monetária inferior a VA não faz sentido. Deixa de ser um remédio e passa a ser um placebo. Neste sentido, enquanto o projeto de lei (PL 283/2016) do Senado não vislumbra um limitador máximo e tem outros problemas na redação que podem (e devem) ser melhorados, o PL 7.238/2017 da Câmara, por sua vez, é inadequado, pois retira o objetivo central de uma sanção pecuniária: ser dissuasória.

Dito isso e já passando para o item dois da pauta, as discordâncias que o Conselheiro João Paulo e eu temos são pequenas e, certamente, podem ser ajustadas. Na substância do tema, por sua vez, concordamos.

Temos como princípio que a sanção seja maior do que a VA e que seja proporcional ao prejuízo causado à sociedade, ou melhor, que seja justa. Desta forma, entendemos que a sanção pecuniária base devesse ser uma função do mercado relevante (produto e geográfico) e do período da conduta – que, vale repetir, é a essência da estimação da VA – e, depois, devidamente majorada para ser dissuasória. Além disso, queremos que o Cade dê segurança jurídica às partes envolvidas. Esse ponto, entretanto, não pode ser o único objetivo do sancionador e tampouco pode se sobrepor ao princípio da dissuasão. Se assim fosse o caso, o Cade poderia dar total previsibilidade ao aplicar uma multa fixa de R$ 5 mil a todas as condutas. Ainda que haja completa segurança jurídica com esta regra, não teria sentido econômico ou jurídico. É por isso que, antes de desenhar os mecanismos da previsibilidade, há que dar contornos lógicos à sanção.

Conquanto reconhecemos o excelente trabalho que tem feito o Cade, em especial a Superintendência Geral (SG) neste quesito, a nossa visão é de que há imprecisão nas sanções que têm sido aplicadas pelo Tribunal, que reflete nas contribuições pecuniárias dos Termos de Cessação de Conduta (TCCs)[2]. Desta maneira, para além da discussão se a sanção é desconexa com os conceitos de VA e de dano, há diversas flexibilizações quando se constrói a base de cálculo para se aplicar o %. Como 15% de 10 é diferente de 15% de 100 (e considerando que 15 seja um número ótimo), ainda que o % seja o mesmo, se a base mudar, a sanção pecuniária final também mudará. Essa é a nossa constatação há dois anos, que, como será visto mais adiante, vai ao encontro do interessante estudo realizado pelo Conselheiro Alexandre Cordeiro, ainda que nossas interpretações sejam opostas.

Há, no entanto, quatro pontos que o Conselheiro João Paulo e eu divergimos. A primeira divergência é o fato do Conselheiro João Paulo denominar “dosimetria da pena” o que tenho chamado de “sanção pecuniária final (SPF)”. É uma discordância de forma, não de mérito, pois nós dois concordamos com a ideia de que há que se ter uma sanção pecuniária base e, além disso, incorporar outros fatores[3]. Eu, em particular, prefiro intitular daquela maneira, porque, nomear de forma mais precisa facilita a comunicação. Ao meu ver, é o artigo 45 o balizador da “dosimetria” (D) da “sanção pecuniária base (SPB)”, que por sua vez baseia-se no artigo 37. Ou seja, é no artigo 45 que se verifica os atenuantes e os agravantes da multa. Além disso, o artigo 38 traz a ideia da “sanção não pecuniária – SNP”, que tem o potencial de amenizar a sanção pecuniária base final (ou seja, a SNP, em geral, “joga para baixo” a sanção final, como seria o caso de a empresa adotar um programa pedagógico de compliance). Desta forma, ao meu ver, pode-se dizer que: SPF é uma proxy da SPB (artigo 37), considerando a D (artigo 45) e a SNP (artigo 38).

A segunda divergência refere-se ao entendimento se 20% (mencionado no artigo 37) é o percentual que dará a multa máxima ou não. Para ele, sim, desde que o ramo de atividade seja interpretado conforme a Resolução nº 3/2012/Cade, e não como “mercado relevante”. Para mim, não. Mais uma vez, este ponto não modifica a substância do conceito da VA e do dano. Mesmo com este desacordo, convergimos na crença que deveria ter um limite sancionador no artigo 37, em especial porque há outras esferas sancionadoras no Brasil (civil e a criminal, esta segunda no caso de cartel hard core). Não é porque considero pertinente que devesse ter um limite, contudo, que julgo ser possível “interpretar” como gostaria que estivesse escrito. Por isso, compreendendo que, da forma como o artigo 37 está redigido, não é possível afirmar que haja um teto, muito embora eu entenda que a ideia seja boa.

A terceira divergência concerne ao trato dos valores monetários no tempo. Eu capitalizo o valor monetário pela taxa Selic a juros compostos[4], pois este é o custo de oportunidade do dinheiro (que é a rentabilidade mínima do infrator com o ganho auferido indevidamente). O Conselheiro João Paulo, por sua vez, tem capitalizado a Selic a juros simples. A forma mais coerente, contudo, seria encontrar a VA, descontar os impostos e atualizar dito valor pela Selic a juros compostos. A capitalização composta é possível de ser feita neste caso, porque não se está corrigindo valores de uma sanção (ou tributo, como faz o Tesouro Nacional), mas usando o conceito da estimação da VA e do dano.

Por fim, a quarta divergência, que parece ser a mais substantiva de todas, concerne à estimação da VA. Enquanto eu tenho estimado a VA, o Conselheiro João Paulo tem preferido estimá-la pressupondo um percentual predeterminado de 10%.

Este é o momento mais feliz de Caos, que está pulando sorridente do meu lado direito (lado emocional), esfregando uma mão contra a outra, louco por mais confusão. Sorte a minha, pois, que Eros – sentado de pernas cruzadas, calmo e tranquilo – está do meu lado esquerdo (lado racional). Este suposto dissenso também não passa de uma cambulhada de Caos.

Tanto o Conselheiro João Paulo quanto eu – porque usamos o conceito da VA – fazemos nossos cálculos considerando o mercado relevante (geográfico e do produto) e o tempo da conduta. A única diferença dos nossos cálculos, por conseguinte, é a determinação do sobrepreço (a diferença entre o preço do cartel e aquele que deveria estar ocorrendo, o preço contrafactual). Como disse anteriormente, eu tenho estimado este sobrepreço, enquanto que ele tem determinado um parâmetro fixo igual a 10%. É só isso. Nada mais.

O emprego da econometria não é uma condição sine qua non para a estimação da VA e do dano. No caso do cartel do GLP, por exemplo, estimei a VA usando econometria, mas, no caso do cartel do Leite tipo C, a estimei sem utilizar econometria, servindo-me apenas dos dados disponíveis. Embora a minha forma de estimar seja mais trabalhosa do que a do Conselheiro João Paulo, aquela é essencialmente a mesma desta.

Não obstante, se houver o entendimento de que seria esta a razão para aumentar a probabilidade de judicialização das decisões do Cade, que seja utilizado um % como regra geral (como vem adotando dito Conselheiro). Afinal, tendo a sanção uma lógica econômica implícita (a da VA e do dano), é imperante buscar por dar segurança jurídica às partes. Não compartilho que seja esse o melhor caminho, mas, acolhendo as ponderações de Eros, também não me oporia a seguir por esta vereda. A única questão é que seria pertinente haver um intervalo de percentuais a serem aplicados e não ter apenas um único valor (10%, para citar um exemplo), ideia com a qual o Conselheiro João Paulo também concorda.

Cabe uma explicação, pois, por que não sou favorável a adoção de um único percentual fixo. São sete razões, a saber: a primeira, porque seria um % arbitrário. A segunda, porque, de conhecimento deste valor por parte do cartelista, quanto menor este percentual for, menos dissuasória a multa será. Como o agente carteliza se a VA esperada for maior do que a sanção pecuniária final esperada, se ele puder impor um sobrepreço acima de 10% e o cartelista souber que o Cade o multará em 10%, qualquer VA acima de 10% será vantajosa e ele cartelizará. A terceira razão, porque reconheço que o Cade é a autoridade máxima no Brasil para estimar os reais sobrepreços das condutas anticompetitivas da economia brasileira. Se este órgão não fizer dita estimação, quem a fará? A quarta razão, porque é conveniente ter a sua própria jurisprudência e não ficar eternamente “tomando emprestado” percentuais estimados dos “países 5 estrelas”. Afinal, o Cade tem capital humano para fazer isso, tanto na SG quanto no DEE. A quinta razão, porque estimularia o mercado da reparação de danos na esfera civil, uma vez que diminuiria o custo das partes privadas. A sexta, porque o Cade teria importância majorada, ao ser o responsável por estimar a VA e o dano e repassá-los para outras instituições estatais (através de acordos) como o TCU, a CGU e a AGU. A sétima e última razão, porque a estimação da VA e do dano poderiam ser feitas em capítulo distinto do capítulo que abordaria a sanção, para servir de insumo para a aplicação da sanção pecuniária final, tal como indica o artigo 45 e tal como foi feito no caso do cartel do GLP do Pará[5] e no caso do cartel do Leite tipo C no Sul.

Passando para o item três da pauta, é importante observar como os países com 5 estrelas no ranking da Global Competition Review de 2013, chamados de elite do antitruste global, sancionam administrativamente, pois estes já devem ter passado por problemas semelhantes aos brasileiros. Indubitavelmente são, portanto, fonte de inspiração para o Brasil.

Os guias[6] acerca das sanções pecuniárias em cartel dos países Reino Unido, França, Alemanha e EUA, além do guia da União Europeia, utilizam o conceito da VA e do dano para sancionar carteis na esfera administrativa (com exceção dos EUA[7]), de acordo com a Tabela abaixo, derivada de pesquisa elaborada pelo Conselheiro João Paulo (TCC 08700.001560/2017-52 – sei no 0349712).

Note que cada país aplica de forma um pouco distinta, mas todos usam o conceito da VA e do dano. A ideia intrínseca entre todos os exemplos na Tabela é exatamente a mesma, cônsona com o que eu e o Conselheiro João Paulo temos defendido há cerca de dois anos.

Observando a Tabela, pode-se perceber que há uma preocupação em obter o faturamento da empresa com respeito ao mercado relevante e a duração da conduta[8]. As alíquotas variam até 30% sobre esta base de cálculo primária, sendo este percentual um análogo ao que se encontra nas estimações do sobrepreço, resultando na “sanção pecuniária base”.

Vale comentar que a sanção pecuniária base é aquela que não dissuade, pois é a proxy da VA e não do dano. Por isso é necessário acrescentar algo mais, com o intuito de se aproximar ao prejuízo causado pelo infrator (o dano). Por esta razão, com a sanção pecuniária base em mãos, em observância a Tabela acima apresentada, é imposto um adicional de dissuasão, além de considerar os agravantes e os atenuantes, resultando, finalmente, na “sanção pecuniária final”. Nada é dito sobre as sanções não pecuniárias, mas é plausível que estas devam existir. O intuito, em suma, é sancionar acima da VA (para que a multa seja dissuasória) e, além disso, alcançar um valor próximo ao dano. A razoabilidade deve prevalecer. Esse ponto, aliás, é exaltado nos guias francês, alemão e americano. Neste sentido, a OCDE indica que as sanções pecuniárias devem ser de 3 a 6 vezes maior do que a VA.

Cabe notar que, exceto pelos EUA, há imposição de um valor máximo legal nestas jurisdições. É, provavelmente, por esta razão que se defende a imposição de um patamar máximo no artigo 37. A ideia é plausível.

Por fim, vale comentar que em todas as jurisdições a reparação de danos na esfera civil ocorre com frequência e sanções adicionais são impostas aos agentes econômicos, além das multas administrativas. Nos EUA, por exemplo, há a regra do treble damage, que é a multiplicação do dano por 3. Além disso, exceto pelo DGComp, os países europeus também tipificam o cartel como crime, punível, portanto, na esfera criminal, como ocorre no Brasil (art. 4º da Lei 8.137/1990).

Com relação ao item quatro da pauta, o Conselheiro Alexandre Cordeiro, em recente publicação no Jota, apresentou uma rica e ampla reflexão sobre a jurisprudência no Cade acerca do uso dos critérios do artigo 37, após a lei 12.529/11. Ainda que eu não tenha estudado a metodologia utilizada em tal trabalho – o que, portanto, poderia me levar a discordar de alguns critérios usados (e, consequentemente, de alguns resultados) –, é possível observar que apenas 23% dos casos foram multados segundo os critérios impostos no artigo 37. Ou seja, quatro em cinco casos fogem à regra dos parâmetros estabelecidos em dito artigo.

Este resultado, vale dizer, também foi corroborado pela tese de doutorado de Daniel Silva Boson (dosimetria das penas), que mostrou haver inconteste arbitrariedade nas sanções impostas pelo Tribunal entre os casos e entre as partes em um mesmo caso (o PA de Memória Dram é um bom exemplo). Pelas conclusões destes dois estudos, destarte, não é possível afirmar que haja estabilidade, previsibilidade e robustez na forma como o Cade vem sancionando. Pelo contrário. É, assim, uma regra não-regrada[9].

Corrobora ainda mais o entendimento de que não há jurisprudência na aplicação do artigo 37, quando o estudo segmenta as sanções aplicadas em sete grupos de “exceções”, apontando que, neste caso, 90% das sanções estão enquadradas. Mas se a maioria dos casos é formada por exceções, então, conclui-se que a regra geral não é seguida. Mesmo assim, ainda há um grupo de 10% de casos que nem mesmo nas sete exceções se encaixam. A flexibilização à regra, desta forma, corresponde a 77% dos casos.

De acordo com informações extraídas da apresentação do Conselheiro João Paulo (USP, junho/2017), é fato que houve diversas flexibilizações à regra geral ao menos nos últimos dois anos. O faturamento bruto do grupo, por exemplo, já foi compreendido como o valor nocional (cartel do câmbio), como contratos não executados (lava jato, Petrobras), como produção brasileira (cartel de GIS), como lucro (voto vista, cartel do leite tipo C no Sul), e como valor das compras de insumos (cartel das laranjas). Além disso, ora usa-se o faturamento do grupo no Brasil, ora usa-se o conceito do mercado relevante geográfico. Com relação ao ramo de atividade, talvez a variável mais flexibilizada, este já foi alterado para ser o mercado relevante dimensão produto (carteis autopeças) e para alguma coisa intermediária entre este conceito e o ramo de atividade (carteis de autopeças). O ano da conduta também foi flexibilizado para o ano da maior venda durante a conduta (cartel DRAM), pelo último ano da conduta (cartel DRAM), pelo ano de maior percentual de share da empresa durante o cartel (cartel DRAM), pelo ano de instauração do inquérito e pelo ano anterior ao julgamento (cardiologistas no RJ). Desta forma, dados os resultados dos estudos e os exemplos ora citados, não é possível afirmar que haja previsibilidade nas sanções.

Para além destes números, caberia compreender qual foi a metodologia de pesquisa adotada, porque esta pode alterar significativamente o resultado da pesquisa. Neste caso, como apontou o Conselheiro João Paulo (TCC 08700.005258/2016-92 – SEI 0328875 – parágrafo 5), em diversos votos pôde-se perceber uma dissonância entre a descrição textual e o cálculo da sanção em si. Para dar dois exemplos, em um dos casos, embora estivesse escrito no texto “faturamento”, o cálculo havia sido feito com base no “lucro” da empresa. Em outro caso, embora tivesse sido dito que a base estivesse em reais, ela estava computada em dólares (o que considerou implicitamente taxa de câmbio de 1:1).

Por fim, no tocante ao item cinco – e aproveitando para endereçar a boa provocação feita pelo Dr. Mauro Grinberg (porcentagem sobre o faturamento ou VA?), ainda que saiba que esta pergunta não tenha sido direcionada para a minha pessoa –,   entendo que seria oportuno construir uma agenda positiva (Cade e sociedade) para responder com mais cuidado qual o caminho que se deve tomar.

De fato, é verdade que o conselho terá que seguir por uma das duas sendas hoje colocadas à mesa até que um único rumo seja dado pelo legislador (através de um dos dois PLs). Como bem observou o Dr. Grinberg, se antes não havia ninguém no Tribunal que advogava por sanções vinculadas aos conceitos da VA e do dano, e similar ao que se faz nas melhores jurisdições antitruste no mundo, hoje há dois conselheiros.

Seria oportuno, assim, que, antes de haver uma conclusão final pelo Tribunal do Cade acerca do que fazer sobre este árduo tema, o Tribunal promovesse um seminário interno no órgão, com alguns membros da SG, do DEE e da Procade; e, depois, num segundo momento, organizar um encontro com a sociedade civil e outros órgãos públicos. Afinal, trata-se de determinar, desde uma encruzilhada, o caminho a ser seguido nos próximos anos. Logo, seria indicado que uma decisão tão importante com esta contemplasse a opinião prévia de todos.

Com toda vênia ao Dr. Grinberg e diante do exposto neste texto, não compartilho com a visão de que “a base de cálculo está posta para o grupo majoritário”, pois, como visto, em 77% dos casos há flexibilização de alguma sorte. Tampouco divido a preocupação de que o ponto central no uso do conceito da VA esteja na sua “estimação”. O argumento levantado pelo Dr. Grinberg é que, a depender do método, pode haver divergências sobre qual destes usar, o que, para agravar, poderia, além de toda contenda, resultar em uma “complexa revisão judicial”. Como pontuado neste artigo, o sobrepreço (alvo da estimação) pode ser indicado por um percentual (sem a necessidade de se estimar), como é feito nas jurisdições 5 estrelas. Portanto, usar o conceito de VA e do dano não quer dizer necessariamente estimar. Eu, em particular, advogo que seria salutar para o Brasil estimar os nossos próprios sobrepesos (o que estimularia a reparação de danos privados na esfera cível), mas cabe esclarecer que usar o conceito da VA e do dano não está ligado a que tenha que fazer estimações econométricas. Esse é um esclarecimento importante.

Além do mais, é fato que questionar o valor da sanção é um direto das partes, mas, por qual razão o Judiciário designaria a um perito de sua escolha (e pago pelas partes), tendo a estimação da VA ou do dano feitos por uma instituição igualmente do Estado, no caso o Cade? Sei que é o que é feito hoje, mas o Cade tampouco estima ditos valores. Sem prejuízo de que o Judiciário possa discordar dos parâmetros, das hipóteses e dos resultados feitos pelo Cade, o juiz teria em mãos o melhor estudo que ele poderia ter dentro da esfera governamental, pois é o Cade a autoridade máxima antitruste no país. Note que não se está falado aqui de questionamentos tributários ou sobre fraudes em licitação pública, mas de condutas anticompetitivas.

Tome o caso do GLP do Pará como exemplo. Lá, no item da sanção pecuniária, foram usados os artigos 37 e 45 com cautela, expondo com detalhes todos os parâmetros e dando total transparência as hipóteses usadas nas quantificações. Tanto foi verdade que as partes puderam contestar o valor final (pela via do embargo) questionando hipóteses usadas. O juiz, se o caso fosse judicializado, poderia fazer o mesmo, sem ter a necessidade da contratação de um perito.

Concluo este longo e atípico texto mensal (que era para ser o de julho!) com a certeza de que todos os envolvidos (Cade e a sociedade antitruste) querem o melhor para o antitruste brasileiro, para o nosso país e para os seus cidadãos. Que coloquemos, assim, Caos de castigo. Conquanto a sua presença tenha sido deveras profícua para trazer novas reflexões, é o momento de ele dar lugar a Eros, seu oposto. É ora, por isso, de união e de definições.

 

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[1] Assim como ocorria na lei 8.884/94, a interpretação sempre considerou a geografia mais abrangente da empresa. No caso de condutas ocorridas no Brasil, a delimitação territorial é a brasileira (faturamento do grupo no Brasil). Se o legislador quisesse estreitar esta definição para alguma outra, teria feito. Cabe mencionar que o Conselheiro Alexandre Cordeiro em seu estudo (que será mencionado mais adiante neste texto) considerou a dimensão como sendo o Brasil, provavelmente por desconsiderar os carteis internacionais. Com efeito, no caso de condutas anticompetitivas com efeitos no Brasil, o faturamento considerado tem sido do grupo no mundo.

[2] A metodologia adotada pela SG é orientada por como o Tribunal julga. Se o entendimento no Tribunal for alterado por maioria, a SG deverá acompanhar este grupo. Os comentários aqui feitos, portanto, recaem sobre as decisões do Tribunal, e não questionam o que tem feito a SG.

[3]A este respeito vale observar este site: http://www.perguntedireito.com.br/157/quais-sao-as-tres-fases-da-dosimetria-da-pena.

[4] Seria conveniente evitar a expressão “selicar” (para expressar que se está usando a taxa Selic com capitalização simples) e a mencionar que “a Selic é do Tesouro”. Primeiro porque selicar não é verbo e, em segundo, porque o Tesouro não calcula a Selic. O Tesouro, assim como o Cade, usa aquela taxa, que é calculada e divulgada diariamente pelo BCB. O Tesouro facilita a vida dos cidadãos ao disponibilizar uma “calculadora” em seu site. Isso não faz do Tesouro o “fornecedor primário” desta importante variável econômica. Ele é um usuário, assim como é o Cade.

[5] No caso do GLP do Pará eu, em um capítulo, estimei a vantagem auferida. No capítulo da sanção pecuniária, eu utilizei o artigo 37 e o artigo 45 para calcular a sanção pecuniária base e final. Não utilizei o artigo 38. Neste caso, aliás, vale recordar que o artigo 37 é explícito ao dizer que “a multa não poderá ser inferior a vantagem auferida quando ela puder ser estimada”. O Cade neste caso, no entanto, aplicou multa de R$ 38 milhões, enquanto a vantagem auferida pôde ser estimada e foi de R$ 48 milhões.

[6] OFT´s guidance as to the appropriate amount of penalty (Reino Unido, 2014); The method relation to the setting of financial penalties (França, 2011); Guidelines for the settings of fines in cartel administrative offence proceedings (Alemanha); United States sentencing commission. Guidelines manual, part R, cartels hard core (EUA, 2016) e Guidelines on the method of setting fines imposed pursuant to article 23(2)(a) for regulation no 1/2003 (Comunidade europeia, 2003).

[7] Nos EUA, o DoJ atua como se fosse o Ministério Público, logo, ele não multa, ele entra com uma ação na justiça e quem sanciona é o Juiz. O DoJ pode entrar com uma ação criminal, quando se trata de um cartel, ou com uma ação civil, quando se trata de qualquer outra conduta anticompetitiva. Além disso, há as multas na esfera civil (com o conceito do treble damages). Já o FTC é um similar ao Cade, pois atua administrativamente e pode sancionar. Na Europa, a Comissão Europeia é um similar ao Cade também (esfera administrativa). Não há ação penal em nível da comunidade europeia, mas sim em nível nacional. É recente, porém, as ações criminais, embora as ações na esfera civil ocorram com frequência.

[8] Períodos inferiores a 6 meses, serão considerados 6 meses. Períodos superiores a 6 meses, serão considerados como um ano.

[9] Nesse sentido, cite-se: “Um último tema relacionado à dosimetria das penas impostas pelo CADE é a falta de critério, ao longo do histórico de julgamento do órgão, quanto a qual deve ser o ‘faturamento’ considerado para fins de cálculo do percentual da pena: o faturamento total da empresa condenada ou tão somente o faturamento auferido no mercado relevante investigado. Essa indefinição sobre a base de cálculo aplicável, evidentemente, provocou diversos problemas práticos, sendo o mais notório a ausência de clareza e previsibilidade quanto ao montante de uma eventual penalidade imposta pelo CADE” (GILBERTO, André Marques. O processo antitruste sancionador: Teoria e prática da investigação das infrações à concorrência. São Paulo: Editora Singular, 2016).