Conrado Hübner Mendes – Pode-se dizer que sim, do ponto de vista jurídico, e caberia ao Congresso emendar ou legislar para combater essa interpretação. De novo, o caso é mais espinhoso, e temos que ampliar nossas categorias descritivas, analíticas e normativas para formar um juízo sobre o que passa. Não basta permanecer na querela interpretativa. Ao lado da discussão normativa há o jogo de forças. Ao lado de uma questão “de jure” há questões de fato, a dimensão bruta da política. O STF entrou num cabo-de-guerra com o Congresso da maneira mais inábil que se pode imaginar num campo tão explosivo da separação de poderes. Para além das suas interpretações constitucionais que oscilam conforme o vento e já não convencem, impressiona o amadorismo político do STF, que põe em jogo sua respeitabilidade a troco de nada. Há na adjudicação constitucional uma dimensão de realpolitik a ser gerida com muito cuidado. A colegialidade, a imagem de imparcialidade, argumentos constitucionais coerentes ao longo do tempo e tirocínio político têm muito a contribuir com isso. Mas o STF não valoriza nem pratica nenhuma dessas coisas: a colegialidade, a coerência argumentativa, os rituais da imparcialidade. Está colhendo o que plantou. Separação de poderes não é palavra mágica que se opera por força encantatória, ela se pratica na delicada interação entre os poderes. Jogar esse jogo é mais difícil do que ficar nas palavras de efeito de que se constitui boa parte das decisões do STF dos últimos tempos.
Eduardo Mendonça – Seria a palavra provisoriamente final, baseada na interpretação atual das normas em vigor. Não acho que esse entendimento pudesse ser inteiramente blindado contra uma eventual emenda à Constituição. Embora a separação dos Poderes seja uma das cláusulas pétreas, é pacífico que isso não impede toda e qualquer mudança no arranjo entre os Poderes. Protege-se, apenas, o núcleo do conceito. E, em se tratando de emenda – a última forma de adaptação institucional sem ruptura do sistema –, entendo que mesmo esse limite deve ser interpretado com cautela, e não de forma inflacionada. Sob esse ponto de vista, em linha de princípio, não veria inconstitucionalidade em uma emenda que atribuísse às Casas Legislativas a prerrogativa de suspender outras medidas cautelares que possam afetar, diretamente, o exercício do mandato parlamentar. Não me parece que faça sentido afirmar que Deputados e Senadores devam ser imunizados contra qualquer medida cautelar, mesmo quando não afetem o mandato. Por exemplo: imagine-se uma cautelar de indisponibilidade de bens, destinada a garantir a possível reparação ao erário em caso de condenação posterior. Ou, fora do domínio típico do combate à corrupção, uma cautelar de afastamento do lar baseada na Lei Maria da Penha. As prerrogativas parlamentares somente se justificam como proteção ao exercício da função pública, e não como privilégio aristocrático. Sendo assim, seria arbitrário impedir medidas cautelares que não tragam risco para a função. No entanto, em se tratando de uma medida que tenha essa potencialidade, me parece legítimo que eventual emenda crie algum tipo de controle por parte do próprio Legislativo.
Aliás, trazendo a discussão para o caso que será julgado hoje, acho que o argumento mais relevante em favor da posição do Senado teria sido justamente esse: considerando que o afastamento cautelar paralisa o exercício do mandato e, nesse sentido, produz um efeito similar ao da prisão, não me soa absurda a interpretação de que essa cautelar específica possa ser submetida à Casa Legislativa. Ou seja: um argumento vinculado à teleologia da prerrogativa parlamentar expressa, e não o discurso genérico de que Deputados e Senadores seriam imunes a toda e qualquer cautelar penal, que não tem amparo na Constituição. E isso, claro, sem prejuízo da constatação de que esse tipo de medida deve ser reservado para situações realmente excepcionais, em que haja forte indício de conduta ilícita e, sobretudo, risco concreto de dano.
De qualquer forma, é importante lembrar que há precedente recente e unânime do Plenário do STF, no sentido se ser possível determinar o afastamento cautelar do mandato, com a cautela que a situação exige. Trata-se do precedente firmado no caso do deputado Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados. A Primeira Turma do STF seguiu esse precedente e, portanto, não vejo consistência no argumento de que inventou uma jabuticaba. No máximo, teria usado uma jabuticaba já existente. Acho normal que o STF rediscuta a matéria com mais detalhe e já à luz da experiência acumulada em dois casos emblemáticos, mas sem esse clima de resistência cívica a um golpe judicial, que me parece bastante deslocado. Apresentar a decisão como uma invencionice sem precedentes é parte do discurso político de resistência à medida, mas o STF, no julgamento de hoje, certamente vai dialogar com a decisão similar que tomou há cerca de um ano, mesmo que seja para apresentar fundamentos que justifiquem a mudança do seu entendimento.
Juliano Zaiden Benvindo – Juristas vão, naturalmente, analisar esta questão pensando sob a possibilidade de ofensa à cláusula pétrea da separação de poderes e, mais precisamente, ministros do STF vão utilizar este argumento. É um questionamento válido, mas, novamente, expõe as tensões e os limites do direito constitucional. É uma discussão que pode se mostrar infindável e vai depender fortemente como as forças políticas – e aqui, obviamente, entra o STF – vão trabalhá-la. Veja: definir a inconstitucionalidade ou não desse movimento não é trivial e menos ainda trivial diante de uma Corte Constitucional que ainda não se entende e se apresenta como Corte e de um Congresso acuado que, cada vez mais, tem se desconectado de uma preocupação de legitimidade de sua atuação. O direito deveria servir como um parâmetro para “aliviar” esta tensão e pode até funcionar, mas é preciso entender que o jogo é bem mais “feio” em um sistema jurídico e político em que o nível de institucionalização tem decrescido a toda evidência. Em sistemas em que o nível de institucionalização está enfraquecido, o direito tem seu grau de “responsividade” muito prejudicado. É aqui que a análise deve ser cuidadosamente trabalhada, mais do que uma aposta em um jogo “limpo” pelo direito, pois não vai acontecer.
Miguel Gualano de Godoy – A prerrogativa de membros do congresso não poderem se presos, salvo em flagrante delito inafiançável, tem a função de proteção do mandato parlamentar, da representação popular encarnada pelo congressista. Não à toa a prisão em flagrante deve ser resolvida pela Casa Legislativa em 24hrs. É, assim, garantia de livre representação e medida de contrapeso na separação de Poderes para contrabalanço de eventual atuação indevida ou abusiva do Judiciário sobre o Legislativo.
Até aqui, creio não haja qualquer divergência.
Aqueles que acreditam que o STF possui competência para decretar medidas cautelares diversas da prisão, inclusive o afastamento de congressista do mandato parlamentar, sustentam que o afastamento do mandato é possível justamente por ser medida cautelar menos gravosa que a prisão. Tais medidas, inclusive o afastamento do mandato, estariam, assim, fora da excepcional previsão de revisão pela Casa Legislativa estabelecida no art. 53, §2º CRFB. Vale dizer, a exigência de revisão pela Casa Legislativa só foi prevista para o caso de prisão, por ser a medida mais severa. Assim, medidas cautelares diversas da prisão não necessitariam de referendo da Casa Legislativa, pois são menos gravosas. Onde a Constituição foi silente, deixou-se espaço para o adequado e regular exercício do Poder Judiciário.
Aqueles que criticam essa compreensão argumentam que o afastamento do mandato impossibilita o exercício da representação popular. A medida cautelar de afastamento do mandato sobre a pessoa física de Aécio Neves pode até ser menos grave que a prisão. Mas, para o Poder Legislativo, para o Senado Federal, ela equivale à prisão, pois retira do parlamentar o exercício do mandato, retira dele a liberdade e condição de representante popular. Assim, apesar de ser medida menos gravosa para a pessoa física do parlamentar, para o Poder Legislativo, para a Casa Legislativa que ele integra, tal medida equivale à prisão, pois retira um de seus membros representantes do povo. Nesse quadrante, também a medida cautelar de afastamento do mandato deveria ser submetida à revisão da Casa Legislativa.
Somado a isso, há essa possível reação do Congresso: uma PEC que estabeleça expressamente que toda e qualquer medida cautelar diversa da prisão também seja submetida à revisão da Casa Legislativa. É possível que essa eventual PEC seja impugnada perante o STF sob o argumento de que a revisão de toda e qualquer medida cautelar imposta a parlamentar afronta à cláusula pétrea da separação de poderes estabelecida no art. 60, §4º, III, da Constituição. Por outro lado, o controle judicial de constitucionalidade sobre PEC’s e Emendas à Constituição é muito mais limitado, restrito ao controle do procedimento. O ônus do STF é muito maior.
Como se vê, o debate está aberto e em andamento. As decisões, jurídicas e políticas, serão importantes apontamentos sobre a compreensão do tema e qual a amplitude do disposto no art. 53, §2º da Constituição.
Particular e pessoalmente entendo que essa eventual PEC é inconstitucional por violação à separação de Poderes, ao princípio republicano e à igualdade. Por isso, sequer pode-se admitir deliberação sobre o tema a que ela versa.