DISCURSO DE ÓDIO

Conteúdo versus contexto e liberdade de expressão: Lei da Alemanha x Lei dos EUA

Na Alemanha, importa o conteúdo, já Justiça dos EUA entende que é preciso avaliar o contexto

Suprema Corte dos EUA
Prédio da Suprema Corte dos EUA. Crédito: Pixabay

Constitucionalistas alemães citam recorrentemente o conceito de democracia combativa e democracia militante. O país tem tipos penais que protegem as instituições democráticas e os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. “Esses crimes são filhos do fracasso da República de Weimar”, ressalta Alaor Leite, doutor e mestre (LL.M) em Direito pela Universidade Ludwig-Maximilian, de Munique. “A democracia, para que possa sobreviver, precisa encontrar mecanismos de autodefesa”.

A República de Weimar representa o período na Alemanha entre o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, até 1933, quando começou o regime nazista. “A Constituição alemã e o Direito Penal visam oferecer alguns instrumentos para que a democracia possa se proteger”, explica Leite. “Uma democracia que se defende demais, corre o risco de se tornar o seu contrário. Essa é a balança sutil”.

Alaor Leite, que atualmente cursa a livre-docência na Universidade Humboldt de Berlim, pontua que a lei alemã faz uma distinção de três tópicos: desinformação ou fake news, discurso de ódio e proteção de instituições. “O debate alemão, de alguma maneira, conseguiu distinguir esses momentos”, avalia. “Essa tríade pode iluminar o debate brasileiro”.

“O modelo alemão não é essencialmente restritivo à liberdade de expressão, mas opera sinceramente com as restrições”, diz. Como exemplo, lembra que a Constituição da Alemanha criminaliza a negação do holocausto. “A Constituição alemã diz que há uma exceção historicamente justificável. Isso é controverso”, destaca. “Muitos constitucionalistas dizem que esse é um assunto político, não penal”, conta.

Já na legislação dos Estados Unidos, a liberdade de expressão leva em consideração o contexto, não somente o conteúdo.

Segundo Clarissa Piterman Gross, professora e coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia (PLED) da FGV Direito SP, nos Estados Unidos a Justiça entende que o Estado não deve restringir um discurso com base em seu conteúdo, na ideologia, na convicção que está sendo veiculada na mensagem. “Então, não faria muito sentido distinguir o tratamento do discurso de ódio e das defesas das instituições”, diz. “Discursos nos Estados Unidos podem ser combatidos, mas não com base no seu conteúdo”.

Gross lembra que nos Estados Unidos costuma ser aplicado o teste do perigo claro e presente para decidir se haverá restrição a um discurso. Um dos casos mais famosos em que o teste foi aplicado pela Suprema Corte americana é o julgamento, em 1919, do então secretário do Partido Socialista. Charles Schenk distribuiu panfletos contrários ao alistamento militar para a Primeira Guerra Mundial. Ele foi condenado com base na Lei da Espionagem. Em seu voto, o juiz Oliver Wendell Holmes disse: “Nós admitimos que em muitos lugares, e em tempos normais, os réus, ao dizer tudo o que foi dito na circular, teriam se mantido nos contornos de seus direitos constitucionais. Mas o caráter de cada ato depende das circunstâncias em que é feito”. O voto traz a relevância do contexto, ou seja, para Holmes, essas mesmas palavras do panfleto poderiam ter sido publicadas em tempo de paz, mas não em tempos de guerra.

“Nos Estados Unidos, é importante prestar atenção na finalidade que a Suprema Corte e os intérpretes das decisões atribuem à liberdade de expressão”, destaca a professora Clarissa Piterman Gross. “O discurso de uma pessoa não pode ser coibido pelo seu conteúdo, ela precisa ter o direito de manifestar as suas convicções, ainda que sejam imorais, porque ela faz parte da tessitura política daquele Estado”, diz. “Então um dano iminente que possa ser causado pelo discurso é uma justificativa para a restrição dele”, explica. “Se é uma convicção autêntica, ela pode ser expressa, inclusive se for falsa”.

Clarissa Piterman Gross e Alaor Leite participaram nesta quinta-feira (23/7) do webinar “Liberdade de expressão: vale tudo ou há limites?”, promovido pela Fundação Fernando Henrique Cardoso, pelo JOTA e pelo Instituto Palavra Aberta.

Publicado por JOTA em Quinta-feira, 23 de julho de 2020

Aqui no Brasil, depois de passar pelo Senado, está na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei das Fake News, PL 2630/2020. “O artigo 10 tem a previsão de coleta de dados e eventualmente o repasse a autoridades persecutórias”, destaca Alaor Leite. “Nós temos que ficar preocupados com esse tipo de coleta de dado em um país que ainda não regulou devidamente a questão da proteção de dados, sobretudos dos dados relacionados à segurança pública e a persecução penal”.

Gross também critica a falta de debate amplo sobre o tema. “A última versão foi disponibilizada muito em cima da hora. Estamos tendo dificuldade de discutir essa lei por causa da desestrutura do seu debate”, afirma. “Eu chamaria a atenção de que há ideias interessantes, do ponto de vista de transparência”, pondera. “Existem problemas substantivos com relação à privacidade e coleta coletiva de dados”, alerta. “Não podemos comprometer liberdades individuais para pensar a solução de uma maior qualidade do debate público e democrático no Brasil”.