Há algo profundamente singular no embate ocorrido dentro do Supremo Tribunal Federal, em relação à cassação do mandato do deputado estadual do Paraná Fernando Francischini. Visto de longe, parece ser apenas mais um caso dentre tantos outros de individualismo radical por parte de um ministro do STF. Olhando apenas para as decisões monocráticas do ministro Nunes Marques, seria possível restringir a crítica sobre a dimensão monocrática da decisão, neste contexto em que um grupo político promove o descrédito da Justiça Eleitoral para questionar o pleito eleitoral caso seja derrotado.
Nesse sentido, a relevância do caso se encerra com a decisão da 2ª Turma do Supremo que reverte a monocrática. Sob essa ótica, seria um grave episódio de desgaste da reputação institucional do STF, por meio da ministrocracia e catimba constitucional. Uma ótima crítica dessa natureza foi veiculada por Thomaz Pereira no JOTA. Se for esse o caso, Nunes Marques passaria a desempenhar o papel do excêntrico ministro que não tem pudor em criar tensões sempre que entende, por alguma razão, relevante; passaria, com isso, a se tornar uma espécie de Marco Aurélio com viés bolsonarista, fadado a criar episódios de tensão e desgaste ao tribunal. A corte, por sua vez, teria que afobadamente criar todo tipo de contorcionismo para controlá-lo. É possível que seja apenas isso que ocorreu, mas aparentemente a questão é mais complexa.
Toda a mobilização do tribunal para conter a decisão de Nunes Marques sugere que não há apenas um ato de reação coletiva a excentricidades individuais. A intervenção do ministro André Mendonça e a notícia de que o próprio Nunes Marques participou de negociações para que a reversão de sua decisão ocorresse na 2ª Turma ao invés do plenário parecem sugerir que existe uma nova dinâmica se estabelecendo dentro do STF. Há uma intricada sequência de atos que envolvem diferentes processos e possibilidades de negociação entre os ministros.
Em primeiro lugar, há um movimento de auxílio à investida monocrática de Nunes Marques. O ministro defere medida cautelar para derrubar a decisão do TSE e não a submete para o referendo imediato dos pares; usando uma medida clássica de obstrução de controle de sua decisão pelo colegiado.
Como segundo movimento, para viabilizar que os demais ministros examinem o tema, é ajuizado um mandado de segurança que só poderia ser utilizado para essa finalidade muito excepcionalmente. O caso foi distribuído por sorteio à ministra Cármen Lúcia, que convoca uma sessão extraordinária via plenário virtual, colocando um prazo de um dia, para viabilizar que a monocrática fosse derrubada de imediato. A resolução que regula o plenário virtual prevê que sessões extraordinárias podem ser convocadas a pedido do relator, e com anuência do presidente.
Até este momento, o roteiro guarda muita semelhança com outros casos em que o tribunal se mobilizou para controlar monocráticas desestabilizadoras de um de seus ministros. Quando um caso era obstruído pelo presidente, que se recusava a pautar, uma possível estratégia do relator seria deferir uma liminar, monocraticamente. Essa alteração do status quo forçaria o presidente a pautar o caso, colocando-o em deliberação ao tribunal.
No caso de liminares monocráticas, a figura da suspensão de liminar foi utilizada algumas vezes para cassar decisão proferida por ministro do tribunal, forçando a remessa da deliberação do tema ao colegiado. Exemplo é o que ocorreu no caso do André do Rap, quando suspensão de liminar concedida pelo presidente Luiz Fux barrou decisão do ministro Marco Aurélio, que determinava a soltura do réu, e foi prontamente submetida ao colegiado para referendo. O recurso ao plenário virtual, contudo, é menos desgastante do que essas alternativas: em vez de combater uma monocrática controversa com mais uma decisão monocrática, submete ao colegiado a oportunidade de escrutínio sobre a decisão, e ao ministro a alternativa de submeter o caso ao colegiado caso deseje vê-lo deliberado.
Já o terceiro movimento começa a dar os contornos de singularidade ao caso. O ministro André Mendonça, por meio de um pedido de vista, suspende a deliberação do plenário virtual. Com isso, Mendonça teria impedido que o plenário ou qualquer outro grupo de ministros exercesse controle sobre a monocrática de Nunes Marques. Esse suporte não é trivial. Em momentos anteriores, cada ministro teve que defender sua decisão excêntrica e se desgastar de maneira isolada.
Porém, o mais curioso é o que ocorre depois, no quarto movimento, com a aparente derrota de Nunes Marques, que tem ganhado uma certa narrativa de capitulação. Como relator do caso, remete a análise de sua decisão para a 2ª Turma, onde também exerce a presidência. Com isso, libera o caso para julgamento e em seguida o inclui na pauta de julgamento. Ao exercer esse poder, optou por fazer tudo em um único dia. Na sessão de julgamento, teve apoio de Mendonça, mas foi vencido pelos votos contrários dos ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
A grande questão é por que ele agiu dessa maneira. Se Mendonça se mostrou disposto a pedir vista desse caso, poderia muito bem fazê-lo em todos os semelhantes. Além disso, como relator do caso e presidente da 2ª Turma, poderia não tê-lo liberado ou agendado o seu julgamento para depois das eleições.
Tudo indica que o ministro Nunes Marques preferiu negociar com seus pares em vez de manter sua posição de forma irredutível. Nisso, parece ser muito diferente de Marco Aurélio, que parecia em certa medida apreciar o espetáculo do esforço de seus colegas para conter seus arroubos monocráticos. Em uma situação dessas, provavelmente aguardaria por uma suspensão de liminar por parte do presidente ou qualquer outra solução ad hoc.
Se há uma negociação, há algo sendo dado e recebido em troca; algum tipo de composição de interesses. O que se diz publicamente é que a derrota na turma é melhor do que uma derrota no plenário, mas essa parece ser uma explicação pouco convincente. Talvez seja necessário manter uma suspeita de que os ministros vencidos no voto tenham ganhado muito mais do que perdido. Esse tanto de barulho não deve ter sido por nada.