Estamos numa pequena sala de teatro. Somos espectadores, sim, mas não passivos. A interação com os artistas é garantida. Assim, ansiosos, aguardamos as cortinas levantarem. É quando, instantes antes do início do espetáculo, uma voz baixinha de fundo corta o silêncio e levanta a seguinte pergunta: “Senhoras e senhores, por que pagam tributos?”
Entreolhares. Reflexões no teto. Cabeças baixas.
Bom, é provável que, nessa mistura de reações, algumas lembranças fossem comuns em parcela significativa da plateia: por um lado, as histórias de corrupção e de má gestão; por outro, o preço do ingresso, da pipoca, da corrida de aplicativo… da gasolina. Sim, da gasolina, com aquela distópica marcação na bomba de sete reais o litro.
Cortinas levantadas. Artistas por entrar. Nesse breve intervalo, porém, a pergunta e todas as suas lembranças ainda martelam a cabeça daquela fração importante da audiência. Inseridas no contexto social comum de que tributos são meras ferramentas para dominação – instituídas e “legitimadas” pela cúpula do que convencionamos chamar de “Estado” –, essas pessoas se sentem quase que fisicamente agredidas e invadidas em seu patrimônio, ainda mais quando se lembram de que há pouco pagaram R$ 50 para abastecer o carro e a gasolina só dará para a volta para casa. Pior, ainda reflexivas, não se lembram da última vez em que disseram ao amigo frentista: “Completa; aditivada.” Orgulho ferido.
Os artistas começam a pisar no palco. À frente, destaca-se um. Grande. Alto. Pesado. Mas difícil ainda de bem enxergar. De toda forma, à medida que se aproxima, aquela parte da plateia agora se recorda da live do dia anterior. Nela, fora dito que por trás do elevado preço da gasolina havia um vilão, com nome e (grande) sobrenome: “Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).”
“Sim, é ele!” Pronto: antagonista em cena. Holofotes no centro do palco.
Já preparada para “saudar” o aparente vilão com sonora vaia, essa parcela dos espectadores observa que, três passos atrás, sobem ao tablado dois novos personagens. Seus nomes são igualmente meio compridos, mas acompanhados de números: “Medida Provisória nº 1.063/21 e Medida Provisória nº 1.069/21”. Enquanto caminham, também em direção às luzes centrais, seus movimentos coordenados(?) parecem até indicar que são um só. Diante dessa União, fica evidente para aquela parcela que se trata dos mocinhos.
Cenário montado. Atores em seus lugares. Vai começar!
Primeira a se dirigir ao público, a MP 63 apresenta suas credenciais. Diz que pretende estabelecer a venda de etanol do produtor diretamente ao posto revendedor, sem a necessária “intermediação” de distribuidores. Justifica o seu desejo no oferecimento de maior liberdade aos agentes que atuam nesse mercado e na consequente possibilidade de queda do preço desse combustível ao consumidor final.
A plateia reage. Na parte da “liberdade”, todos parecem balançar a cabeça positivamente, mesmo aqueles que nem haviam vaiado o suposto vilão ICMS. Afinal, “liberdade” – sempre que acompanhada de responsabilidade, de clareza, de simetria, de isonomia, de igualdade de condições – é algo positivo, de que a sociedade necessita e anseia. É um objetivo tão evidente, lembram-se, que consta daquele contrato social fundamental, chamado “Constituição”, em seu artigo 3º, inciso I: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária.” Portanto, nesse contexto, não se identificam na plateia vozes contrárias a esse valor quase sagrado, há séculos em processo de efetiva conquista.
Já na parte do “preço”, algumas cabeças param de balançar. Outras, inclusive, aparentam mudar a direção do movimento, alterando-o para o pendular horizontal, típico da negação. Nem mesmo o discurso (não escrito) da MP 63 de combate indireto ao vilão ICMS dá a impressão de convencimento. E isso, mesmo estando fresca na memória dessas pessoas a questão dos R$ 7 o litro da gasolina e do retorno para casa com o tanque “no cheiro”.
“Já nos próximos meses estarei plenamente em vigor e todos vocês verão”, diz MP 63.
Ao redor, observa-se mistura de alegria, ceticismo e até preocupação.
É quando a MP 69 se dirige ao público. No embalo da sua irmã, com pequenos ajustes, repete as pretensões de liberdade e de redução de preço do combustível – aproveitando aqui até para lançar olhar sarcástico ao ICMS, que continuava ao centro do palco. No entanto, a MP 69 dá um passo à frente, ganha os holofotes, e, encarando os olhos dos espectadores, anuncia: “Para quem quiser, já posso até entrar em vigor de imediato, sem espera de 90 dias”.
Agora sim: aqueles sentimentos de alegria, ceticismo e preocupação se acentuam entre os espectadores, refletindo, no pequeno espaço do teatro, os extremos do ambiente externo para o qual em breve retornarão.
Após instantes de agitação, as luzes se apagam. Certa apreensão.
Cinco segundos depois, um feixe fino busca iluminar o ICMS. Ele se manteve ao centro. Aquela figura alta e pesada aparenta estar levemente machucada. Não está cabisbaixo, mas também não apresenta postura que se possa chamar de confiante. Precisa descansar. Surge uma cadeira, com a inscrição “por Deus, fui apenas transferida entre estabelecimentos do mesmo titular”. ICMS olha e pensa: “Essa fica para outro dia”. Senta-se. Luzes se fortalecem. Movimentos lentos, gira o olhar. Encara a plateia. Vai falar.
ICMS começa reflexivo: concorda que, ao longo dos anos, ficou quase cumulativo. Devolver créditos não é seu forte. Até se recorda, saudoso, que surgiu com promessa de creditamento quase irrestrito. Mas o tempo trouxe CIAPs, diferimentos, créditos presumidos, transferências, créditos físicos (?!), bases de cálculo “por dentro” (?!?!), discussões de obrigações de dar e fazer (haja honorários!)… Tudo ficou obscuro. Tanto que termina por confessar que são tamanhas as barreiras para recuperar esses míticos créditos que, se a conversa fosse sobre esse assunto, era melhor a plateia se preparar para uma jornada shakespeariana e um final rodriguiano.
De toda maneira, pondera, ele é meio, não é fim. “Como todos os tributos”, ressalta. Ao mesmo tempo em que pode ser sim obscuro, pesado e complexo, pode também ser claro, leve e simples. Pode ser instrumento de dominação, confisco e expropriação, mas igualmente de distribuição de renda, serviços e dignidade. Agressor ou agregador.
“São vocês que me escolhem.”
Silêncio absoluto.
Apesar desses momentos de aparente nocaute coletivo, alguém da plateia retoma a consciência, lembra-se da bomba de gasolina, da live e dos dizeres de MP63 e MP 69, imposta o que resta da voz ofegante e pergunta:
“Mas e o que fazes no caso dos combustíveis?!”
Sentado, ICMS apenas ergue os olhos. É sutil, mas esses marejam. Não é para menos. Vem à sua cabeça a recordação da substituição tributária para frente (no primeiro elo da cadeia econômica), ainda que aplicada junto à tributação no Estado de destino (no último elo da mesma cadeia econômica). Ou dos modelos de repartição de receitas distintos, sendo o combustível derivado ou não de petróleo (sendo que a contestada gasolina é, ela própria, misturada fisicamente ao etanol, obtido da cana de açúcar). E isso sem contar complementos, restituições, ressarcimentos, SCANCs, GIAs… “Que confusão!”
Quer se manifestar, mas ainda não consegue. Ao fitar os olhos das MPs se recorda que sua incidência média é de 24% do total do preço da gasolina e que, em alguns Estados, passa dos 30%. Em um país essencialmente rodoviário e de tributação regressiva como o nosso, de fato, é um soco no estômago.
“E elas prometem que a venda direta baixará o preço da gasolina. Isso soa muito justo”, pensa.
Mas aí, já meio estirado na cadeira, quase sem forças para sequer abrir a boca, lembra que sempre defendeu a liberdade. Até porque, sem ela, os produtos não seriam produzidos, as mercadorias não circulariam, as pessoas não consumiriam. Ou seja: a economia não aconteceria. E ele, ICMS – e todos os seus irmãos, tributos –, não existiriam para efetivar seus propósitos (fossem eles quais fossem).
“Tanto que aqui quis dar a mão às MPs quando se dirigiram à plateia.”
Só que daí a concluir que as promessas das suas parceiras de palco levarão à tal baixa do preço da gasolina parecia ilógico. “Nem mesmo ajustaram as minhas já confusas regras para essa pretendida nova realidade! Como se pode avançar em vigência imediata, como disse MP 69, sem a devida organização dos Estados, que irão me cobrar?!” De fato, não fazia sentido, sobretudo quando pensava que essa mudança, sem o tempo mínimo para a definição do modelo tributário estadual, poderia violar, inclusive, o Pacto Federativo, já que as MPs imporiam obstáculo expressivo à efetiva autonomia financeira dos Estados.
E não apenas isso: para a grande maioria dos contribuintes – que somente desejam pagar seus tributos sob regras claras e simples – seriam causadas ainda mais insegurança e complexidade, violando o direito deles de real livre exercício de atividade econômica. Além disso, seria aberto espaço para a atuação dos oportunistas tributários, em afronta evidente ao direito à livre concorrência.
Então, repetiu para si: “Se vamos defender a liberdade, vamos fazer no estilo posto completo: tudo.”
Um pouco mais revigorado, ergue a cabeça e, dirigindo-se à audiência e às próprias MPs 63 e 69, passa, ponto a ponto, por todas as mazelas sobre as quais acabara de refletir. De como ficara lento e pesado. Obscuro e complexo. E de que maneira, sobretudo nos combustíveis, seus vários percursos abriram caminhos para os nocivos devedores contumazes (aqueles que simplesmente escolhem não o pagar, certos da impunidade). Frisou que ninguém mais que ele desejava uma nova realidade, de simplicidade e racionalidade.
Para esse específico mercado, ressaltou, nada melhor para esses objetivos do que a cobrança monofásica e a aplicação de alíquotas únicas, por produto, em todo o território, incidentes sobre uma base de cálculo fixa. Simples, previsível e transparente.
“Não somos heróis, nem vilões. Somos ferramentas a serviço de vocês. E são vocês que escolhem como, o que e por que seremos”, repetiu, agora incluindo na lista seus irmãos de Código Tributário.
Após essa fala, estendeu as mãos para os lados e recebeu em troca as das MPs 63 e 69. Curvaram-se os três e assim se mantiveram, em reverência ao público, deixando que as cortinas baixassem antes de aplausos ou vaias.
Enquanto a plateia ainda ficava em dúvida de como reagir, uma mensagem final foi projetada no tecido vermelho recém arriado:
“Só com diálogo, respeito, transparência, planejamento e olhar no bem comum é que será formada a verdadeira cidadania fiscal, a ser composta por cada membro dessa plateia e por todos os que estão lá fora. Vocês pagam tributos para serem esses cidadãos conscientes, reais protagonistas da melhor sociedade possível a ser formada, tanto hoje, quanto amanhã.”
Ass: Democracia.