Pedro Abramovay

Um voto histórico? Não. Não se trata de um voto que coloca o Supremo Tribunal Federal na vanguarda do Direito Constitucional mundial. Se os outros ministros seguirem a posição do Ministro Gilmar Mendes, o Tribunal estará se juntando a cortes como a espanhola, colombiana e argentina, que já trilharam o mesmo caminho.
É um voto correto. E importantíssimo para a afirmação da Constituição como eixo central do direito brasileiro.
A política de drogas, não apenas no Brasil, tem sido uma das maiores forças de desrespeito à Constituições democráticas e garantistas.
Sob a bandeira da Guerra às Drogas, abusos foram justificados e mentiras foram repetidas, desprezando evidências científicas.
No Brasil, o próprio judiciário chegou a proibir as marchas da maconha. Ou seja, a mera possibilidade de se manifestar pacificamente para a mudança dessa política era vedada, entretanto, lembrando que a democracia não é o regime das maiorias, mas o regime no qual minorias podem se tornar maiorias, o STF resgatou nossa democracia e liberou as manifestações.
A partir deste momento, notou-se uma virada no debate público no Brasil. Pesquisas sérias foram apresentadas e tanto o panorama dos danos da atual legislação, como alternativas baseadas na experiência internacional, ganharam espaço na opinião pública.
Este foi o pano de fundo do início do debate no STF. Enquanto advogados pró-descriminalização desfilavam dados científicos, pesquisas sobre os efeitos da lei atual e jurisprudência internacional, os defensores da criminalização usavam a retórica do medo. Um deles ameaçou dizendo que a decisão do STF transformaria o país em uma nação de polvos, lulas e equinodermos. Até mesmo o Procurador-Geral da República, em seu pronunciamento, afirmou que 90% dos usuários de maconha tornam-se viciados. O dado carece de qualquer embasamento científico.
O <a title="voto do ministro Gilmar " href="https://www.jota.info/drogas-a-integra-do-voto-do-ministro-gilmar-mendes">voto do ministro Gilmar </a>começou a posicionar o STF em sintonia com os debates mais atuais sobre o tema e deixou claro que a Constituição não está sendo cumprida pela atual lei de drogas.
Em primeiro lugar, o voto estabelece a impossibilidade do legislador criminalizar o porte de drogas para consumo pessoal. Para Gilmar Mendes a criminalização fere  o“direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”.“O princípio da liberdade geral (...) não tolera restrições à autonomia da vontade que não sejam necessárias para alguma finalidade de raiz constitucional” . Ou seja, o uso de drogas não gera um dano ao indivíduo que justifique a intervenção penal do Estado. “Dar tratamento criminal ao uso de drogas é medida que ofende, de forma desproporcional, o direito à vida privada e à autodeterminação. O uso privado de drogas é conduta que coloca em risco a pessoa do usuário. Ainda que o usuário adquira as drogas mediante contato com o traficante, não se pode imputar a ele os malefícios coletivos decorrentes da atividade ilícita. Esses efeitos estão muito afastados da conduta em si do usuário.”
O ministro não se restringe a este argumento. Seu voto afirma, com razão, que a criminalização, além de ser medida excessiva, não cumpre com a sua função primordial, que é a de proteger a saúde dos cidadãos. Ao contrário, ela torna ainda mais difícil a situação do cidadão ao oferecer a ele um tratamento penal, especialmente do usuário problemático de drogas, pois o estigmatiza como criminoso, tornando sua relação com a sociedade muito mais difícil.
Mas o próprio voto do ministro Gilmar reconhece a necessidade de se ir além. Afinal, a Constituição não é desrespeitada apenas pela letra da lei. A forma como a Lei de Drogas vem sendo aplicada é a maior violação à Constituição. O ministro aponta bem em seu voto que a falta de critérios objetivos para separar o usuário e o traficante na lei atual cria uma “zona cinzenta” entre essas duas figuras, possibilitando que situações objetivamente muito parecidas tenham consequências jurídicas radicalmente opostas. Uma pessoa com pequena quantidade de drogas, sendo rica, em geral não sofre maiores consequências, sendo pobre, pode pegar até 15 anos de prisão. O ministro ainda aponta que essa mesma falta de critérios faz com que ocorra uma inversão do ônus da prova, enterrando o princípio da presunção de inocência. Cabe ao acusado provar que não é traficante. É claro que isso está em desacordo com a Constituição.
O ministro chega a apontar soluções para essas vioações constitucionais.
Em primeiro lugar, o voto sugere a adoção de critérios quantitativos. Não específica quais seriam as quantidades, mas afirma a necessidade de que sejam feitos estudos para a determinação de tais critérios. Neste ponto, acredito que o Ministro poderia ter ido além. Afim de garantir o cumprimento da Constituição, poderia ter determinado a algum órgão técnico, como a ANVISA, o estabelecimento de quantidades que definissem parâmetros para o enquadramento de alguém como usuário ou traficante.
Por fim, para garantir o princípio da presunção de inocência, o voto determina que a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva – que deve ocorrer em até 24h - só poderá acontecer após audiência com um juiz. Essa medida é fundamental. Atualmente o judiciário tem delegado o protagonismo da justiça criminal às polícias. O voto lembra que atualmente “o enquadramento jurídico é feito pela autoridade policial, com base, principalmente, na palavra dos policiais condutores. A palavra e a avaliação dos policiais merece crédito, mas a garantia do devido processo legal pressupõe a avaliação feita por um juiz 'neutro e desinteressado', sobrepondo a avaliação de um 'policial envolvido no empreendimento muitas vezes competitivo de revelar o crime”
O resgate do papel do judiciário na avaliação do enquadramento penal do acusado de tráfico de drogas é fundamental para se recompor o Estado de Direito na aplicação da lei.
Um ponto não tratado pelo voto é o do autocultivo de maconha. Por se tratar de voto que abarca todas as drogas, o ministro pode ter se abstido de enfrentar a questão. Mas é importante frisar que a argumentação levantada em seu voto também permite que se discuta a impossibilidade do Estado interferir no cultivo para consumo próprio.
Alguns podem se questionar se o STF estará indo longe demais em seu papel de controle de constitucionalidade. Se essas são decisões que caberiam ao Congresso. O voto do ministro Gilmar Mendes não tratou de preferências políticas, de opções do legislador. O voto tratou apenas do respeito à Constituição. A Constituição é desrespeitada, no Brasil, quando se utiliza o direito penal para restingir a liberdade das pessoas de maneira abusiva, a Constituição é desrespeitada ao se estigmatizar o usuário problemático de drogas, negando-lhe acesso à saúde e, finalmente, a Constituição é desrespeitada por uma lei que, concretamente, encarcera pobres e solta ricos que praticam a mesma conduta. O papel de guardião da Constituição do STF só será cumprido se a decisão final, neste caso, oferecer soluções concretas para tão graves violações constitucionais.
O voto do ministro Gilmar não foi histórico no sentido de trazer uma grande inovação para o direito constitucional. Mas o voto pode sim garantir um papel fundamental na história do STF. O Tribunal, ao decidir a matéria, mostrará se está à altura de, mesmo em temas tão dominados por uma sufocante ideologia que corrompe a própria democracia, fazer valer a Constituição para brasileiros, indepedentemente de raça ou condição social.
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Pedro Abramovay é diretor da Open Society Foundations para a América Latina e ex-secretário Nacional de Justiça.
<a title="Leia a íntegra do voto de Gilmar Mendes" href="https://www.jota.info/drogas-a-integra-do-voto-do-ministro-gilmar-mendes">Leia a íntegra do voto de Gilmar Mendes</a>

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