Bruno Silveira de Oliveira

Em vigor há menos de um mês, o novo CPC já conseguiu feitos dignos de nota:
(i) teve mais de 30 (trinta!) dos seus dispositivos revogados pela Lei 13.256/2016 (que, tendo sido publicada antes do início de vigência do Código, remendou ainda dentro do útero enunciados com más-formações);
(ii) viu conferida interpretação extensiva ao rol (taxativo!) de hipóteses de cabimento do agravo de instrumento (que assim vai se tornando “taxativo” pero sin perder la ternura jamás);
(iii) viu aprovado pelo FPPC enunciado que sugere a admissão de mandado de segurança contra decisão interlocutória insuscetível de agravo de instrumento (cujo rol era taxa... ah, deixa pra lá!), quando “sua impugnação em sede de apelação se demonstrar inútil ou ineficaz”;
(iv) recebeu “nota técnica” do FONAJE “recomendando” a não aplicação da regra de contagem de prazos em dias úteis (CPC, art. 219) aos processos dos Juizados Especiais, em razão da especialidade destes e de alegada incompatibilidade daquela norma com os princípios que os regem, notadamente o da celeridade;
(v) presenciou o endosso da “nota técnica” do FONAJE pelo Colégio Permanente de Corregedores-Gerais dos Tribunais de Justiça do Brasil;
(vi) levou o Supremo Tribunal Federal a debater sobre a (in)aplicabilidade, perante aquela Corte, da regra que prevê sustentação oral no agravo interno interposto contra decisão (monocrática de relator) que extinga ação rescisória, mandado de segurança e reclamação (CPC, art. 937, VI, §3º);
(vii) viu aprovado pela ENFAM enunciado sugestivo da competência de “órgão colegiado de uniformização do próprio sistema” para o julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) instaurado no âmbito dos Juizados Especiais – em aberta contrariedade (ou, quando menos, em amplíssima “extensão”) aos artigos 977 e 978 do CPC, que preveem a competência de tribunal para julgamento do incidente, e assim também em relação ao artigo 985, I, do mesmo diploma, segundo o qual a tese jurídica fixada por ocasião do julgamento do IRDR deverá ser aplicada a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou Região. [destaquei];
A tinta na imprensa oficial mal esfriou e o texto do Código já recebe retalhos e retaliações de toda sorte.
O que eu penso a respeito de tudo isso? Se concordo com as sugestões interpretativas ou discordo delas? Não importa agora. O ponto não é esse. É justamente a vastidão e a rapidez das censuras lançadas ao código. Prontas, súbitas, amplas, gerais e irrestritas. Ninguém parece gostar do rebento. A grita não tem cor institucional, partido político, etnia ou faixa etária. Vem de tudo que é canto e se refere a tópicos os mais diversos da recém-vigente legislação. Nem Joana, a famigerada mãe, acharia normal tanta balbúrdia.
O que isso significa? No mínimo duas coisas.
Em primeiro lugar, significa pressa.
Gabam-se os feitores do código e seus consultores de haverem realizado inúmeras audiências públicas ao redor do país, franqueando durante o processo legislativo participação a um sem número de pessoas e de grupos de interesses. Têm razão. Eis um mérito que o código efetivamente possui. Não se pode tachá-lo de antidemocrático sob esse aspecto. Mas de pouco adianta abrir o contraditório a manifestações as mais diversas e submeter o projeto a uma tramitação que, em perspectiva histórica, revelou-se comprimida, apressada, incompatível com a envergadura política, jurídica e axiológica que a feitura de um Código de Processo Civil possui.
Desde a constituição da Comissão de Juristas (encarregada pelo Senado Federal de elaborar o anteprojeto), em 30 de setembro de 2009, até a promulgação da Lei 13.105, em 16 de março de 2015, passaram-se menos de seis anos. A razoável duração do processo legislativo exigia mais detida reflexão, mais tempo para a decantação e para a maturação das ideias, um respiro para que se pudesse, com maior proveito, antever os pontos (vários) em que o texto legal entraria – como efetivamente entrou – em rota de colisão com a realidade do sistema de Justiça brasileiro.
Com o perdão da obviedade, leis visam a regular fatos, pretende-se por meio de suas normas influenciar o comportamento dos destinatários, a ponto de obter deles determinadas condutas (precisamente aquelas “desejadas”, isto é, prescritas, pelas normas que se veicula).
Exatamente por isso, o “sucesso” de qualquer lei, sob a perspectiva de sua capacidade de pautar mudanças ou determinar comportamentos, depende essencialmente de variáveis fáticas, relacionadas às condições, possibilidades ou probabilidades de que dispõem os destinatários para, ao tempo de vigência da norma, ajustarem seu(s) comportamento(s) àquele(s) prescritos pelo respectivo comando.
Assim, formular uma lei veiculando normas cujo sucesso depende, em inúmeros casos, de uma conjugação tanto ampla quanto improvável de fatores (deixando pouca margem de adaptação comportamental aos destinatários) é normatizar com vocação ao fracasso. O CPC atual contém alguns comandos com esse perfil.
Entra em cena, então, o fator fantasia, outro causador dessa rápida e aguda “rebelião dos fatos” contra o novo CPC.
Alguém realmente acha que o Supremo Tribunal Federal tem condição (humana, física, estrutural, quantitativa, energética, temporal) para se por a ouvir sustentações orais a não mais poder em agravos regimentais interpostos contra essas ou aquelas decisões monocráticas de relator?
Esperavam mesmo que as Justiças Estaduais e todos os Tribunais Regionais Federais se organizassem, realizassem as despesas e arregimentassem, durante a vacatio legis, a estrutura de conciliadores e mediadores necessária à realização das audiências obrigatórias? Sem referido material humano, supõem seja eficaz que um magistrado – o mesmo que haverá de presidir a instrução e julgar, na eventualidade de não se chegar à solução autocompositiva – promova conciliações e mediações sob o crivo da confidencialidade (que há de permear os diálogos e as negociações naquele tipo de ambiente)?
Chegaram a acreditar em algum momento que o rol taxativo de admissibilidade do agravo de instrumento resolveria – nos rigores de sua “taxatividade” – o problema da (ir)recorribilidade em separado das interlocutórias? Um rol que, entre outras coisas, não contempla sequer a interposição de agravo contra decisão que rejeita preliminar de incompetência absoluta?
Alguém honestamente acredita que um tribunal, ante situação de patente incompetência do juízo, deixará de admitir o agravo ou o sucedâneo recursal que a impugnou para, em vez disso, condenar o processo a anos de tramitação inútil e dispendiosa? Beiraria a irresponsabilidade na gestão dos dinheiros e desforços públicos empregados em vão. Note-se bem: não estou dizendo que devamos ignorar a taxatividade daquele rol, não estou, aqui, defendendo que simplesmente se mande às favas a literalidade da lei, novamente, o ponto não é o que penso ou deixo de pensar a respeito das inflexões hermenêuticas que já se apresentam ávidas por driblar as dificuldades mais evidentes impostas pela lei. O que afirmo é apenas o óbvio: isso vai acontecer! Já está acontecendo. Era óbvio desde sempre que aconteceria.
Contra obviedades fulgurantes, ainda assim, criaram-se todas aquelas normas (entre outras), cuja eficácia depende de coisas tão facilmente obteníveis quanto uma passagem do cometa Halley pela órbita da Terra ou um processo que tramite sem tempos mortos. Aliás, que oportunidade perdida! Poderíamos haver simplesmente inserido no Código um artigo proscrevendo a ocorrência dos chamados tempos mortos de tramitação. Eureka! Como ninguém pensou nisso antes?!?  
Talvez haja outros fatores para tantas e tão precoces conflagrações. Não tenho a pretensão de exauri-los ou de monopolizá-los e já é hora de encerrar. O saldo? Um Código cheio de normas com vocação para “não pegarem”.
Não me despeço defendendo algum tipo de desobediência civil, algo como uma aplicação seletiva, restrita àquilo que sacia os humores estomacais do hermeneuta. É evidente que não! Bom ou ruim, esse é o código que temos e que desde 18/03/2016 deve ser aplicado e obedecido (por todos!). A ninguém é dado – perdão, novamente, por outra obviedade – negar vigência às escolhas políticas do legislador apenas porque não lhe apetecem.
Assim, irrelevante para fins de interpretação/aplicação a circunstância de o código haver sido açodadamente promulgado. Isso ajuda a explicar a diatribe, é verdade, mas não justifica acenos ao rompimento com a literalidade da lei ou com os limites semânticos de sua interpretação.
Isso, ou teremos ao longo dos próximos anos tantos Códigos de Processo Civil dentro da Lei 13.105/2015 quantos sejam os interesses contrariados, à moda do título deste ensaio, tomado de empréstimo de Erasmo Carlos que, sem querer, saber ou me dar permissão, tornou-se para mim, nestes dias de aguda incerteza jurídica, o profeta dos esboços interpretativos prolífica e desapegadamente sugeridos por aí (valeu, Tremendão!).
Circunstância muito diversa, porém, é negar-se aplicação imediata àquilo que não pode (simplesmente porque não há meios para) ser aplicado imediatamente. Valho-me, como exemplo, da conclusão a que chegou a comissão de estudos designada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo para inventariar e avaliar os primeiros impactos do novo CPC sobre a realidade daquela Justiça. No tocante à audiência de conciliação ou de mediação obrigatória, concluiu-se que até a efetiva implantação, nas unidades judiciárias cíveis, de estrutura mínima de conciliadores/mediadores preparados e capacitados à realização (adequada e efetiva) daquele tipo de ato, intercorreria situação de legalidade remanescente, capaz de validar os despachos que, nesse ínterim, ordenassem a citação do réu para responder (ou de “ilegalidade progressiva” desses mesmos atos, vistas as coisas sob outro ângulo, à medida que a unidade judiciária passasse a dispor das condições estruturais necessárias ao fiel cumprimento do artigo 334).
Aqui a realidade resiste à lei, revida com toda força da facticidade, que senão intocável (porque decerto pode ser alterada) é ao menos infensa a quaisquer pretensões de eficácia normativa imediata. Pior para o CPC se o código previu, como condição para a correta aplicação de uma sua norma, a articulação de estrutura operacional relativamente complexa e dispendiosa, incapaz de ser implementada da noite para o dia.
Por fim, até que floresça algo minimamente estável e uniforme dos muitos germes de CPC's que habitam a Lei 13.105/2005 e lhe disputam a melhor interpretação, ficaremos com a certeza da incerteza. Para o jurista (analítico, dogmático, metódico), o desconforto do “pior vício de um sistema de formas processuais”; para o poeta, a beleza do paradoxo de nossas convicções, em cujos domínios “tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro.”.
Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

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JOTA

Está em cena uma rebelião dos fatos contra o novo CPC

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