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STF: Árbitro ou protagonista na crise política em 2016?

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Capítulo 1

Imparcialidade ou omissão?

A crise política que culminou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff desafiou o Supremo Tribunal Federal e ameaçou tirá-lo da condição de árbitro minimamente isento dos conflitos. O tribunal buscou se equilibrar durante todo o ano numa faixa estreita que o separava da condição de moderador e de partícipe da crise. Um descuido, uma decisão em falso, uma declaração fora do tom e o Supremo seria acusado de interferir indevidamente para proteger a presidente Dilma Rousseff ou para derrubá-la e levar Michel Temer ao comando do País.

A tentativa de manter-se como espécie de poder moderador, contudo, não blindou o Supremo. O tribunal de hoje foi mais ativivista no processo de impeachment do que o STF do caso Collor. Além disso, o tribunal viu-se diante de críticas de ambos os lados. Foi acusado de integrar o grupo de atores responsáveis pelo “golpe contra Dilma Rousseff” por não interferir na condução do processo ou por não adentrar o mérito das acusações de crime de responsabilidade. De outro lado, foi também censurado, por aqueles que eram favoráveis à saída de Dillma, por ter paralisado liminarmente no final de 2015 o movimento iniciado na Câmara pelo impeachment da presidente.

À beira do precipício, o Supremo se desequilibrou em pelo menos três momentos. E cambaleou essencialmente pela ação isolada de seus integrantes. Novamente, o STF viu-se desgastado institucionalmente pelo fenômeno que dia a dia se agrava: a monocratização das decisões da Corte e o fato de os ministros, por vezes, terem uma agenda própria em detrimento da agenda institucional.

A coexistência de 11 Supremos foi a marca do ano.

O caso mais grave, gerado por este fenômeno, fechou 2016. Evidenciou desarranjos internos do Supremo, elevou à máxima potência o dano gerado à Corte pela atuação dos ministros como se fossem 11 ilhas, suscitou dúvidas sobre a capacidade do tribunal de fazer cumprir suas decisões e gerou danos à imagem do STF na opinião pública.

No dia 5 de dezembro, o ministro Marco Aurélio Mello liminarmente destituiu o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), por ter passado o senador a responder a ação penal no Supremo pelo crime de peculato. Na semana anterior, o tribunal recebera a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República em 2013 contra Renan Calheiros pelo escândalo provocado pela descoberta (ainda em 2007) de que a empreiteira Mendes Júnior pagava a pensão alimentícia da filha do senador, gerada fora do casamento.

O ministro se baseou no entendimento precário da Corte de que réus em ações penais no Supremo não poderiam ocupar cargos na linha sucessória da Presidência da República. O julgamento da ADPF 402, iniciado no dia 3 de novembro, foi uma tentativa de o Supremo dar uma resposta ao presidente do Senado, que tachou de “juizeco” o magistrado que autorizou a operação da Polícia Federal contra a Polícia Legislativa, suspeita de atuar para obstruir investigações da Lava Jato.

Depois de cinco votos favoráveis à tese de que réus não poderiam exercer cargos na linha sucessória e de que não poderiam substituir o presidente da República em razão de viagens internacionais, o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo. O decano da Corte, ministro Celso de Mello, antecipou seu voto, garantindo maioria a esse entendimento. Mas o julgamento, ressalte-se, não foi concluído.

O ministro Marco Aurélio juntou os dois fatos: a maioria precária no julgamento da ADPF 402 com o recebimento da denúncia contra Renan Calheiros. Sem consultar os colegas, mesmo diante da gravidade da decisão, afastou liminarmente o presidente do Senado.

“Urge providência, não para concluir o julgamento de fundo, atribuição do plenário, mas para implementar medida acauteladora, forte nas premissas do voto que prolatei, nos cinco votos no mesmo sentido, ou seja, na maioria absoluta já formada, bem como no risco de continuar, na linha de substituição do Presidente da República, réu, assim qualificado por decisão do Supremo”, afirmou.

A decisão causou desconforto no Supremo. Ministros da Corte criticaram, reservadamente, o fato de a decisão não ter sido compartilhada com o plenário do STF. O ministro Gilmar Mendes sugeriu o impeachment do ministro Marco Aurélio, numa declaração inédita que revelava o clima conflagrado na Corte. Enquanto isso, o ministro Marco Aurélio antecipava à imprensa que não levaria a liminar a referendo do plenário naquela semana. E isso provocava mais espanto entre os ministros.

No Senado, a liminar gerou uma rebelião. Também por sugestão de um dos ministros do tribunal, conforme noticiou a imprensa, Renan Calheiros recusou-se a ser notificado da decisão. E os integrantes da Mesa Diretora da Casa divulgaram nota para adiantar que só cumpririam a decisão do Supremo se confirmada pela maioria dos ministros no plenário. Como Marco Aurélio resistia a liberar a liminar para julgamento, criou-se um impasse institucional.

A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, viu-se diante do desafio de equacionar uma conta complexa: respeitar a decisão de um dos integrantes da Corte, convencer o ministro Marco Aurélio de que era preciso submetê-la ao plenário o mais rápido possível (assim como fez o ministro Teori Zavascki ao afastar cautelarmente o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha), garantir a autoridade do tribunal, estabelecer um diálogo institucional com o Senado e fazer com que o STF não se tornasse um fator adicional desestabilizador da situação política (como se Renan Calheiros fosse um esteio para a governabilidade).

Na terça-feira (6/12), depois de intensas conversas e negociações, a solução estava dada e partiria do ministro Celso de Mello. Mas o Supremo pagaria um preço alto pela saída encontrada. O decano da Corte faria uma retificação na parte dispositiva do seu voto para consignar que réus não poderiam assumir a Presidência da República, mas não precisavam ser afastados do cargo por decisão do STF.

Por 6 votos a 3, o tribunal referendou parcialmente a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio. A maioria do Supremo julgou que réus que estejam na linha sucessória não podem substituir o presidente da República, mas podem permanecer nos cargos que ocupam.

“Os conflitos multiplicam-se e não há soluções fáceis ou conhecidas para serem aproveitadas”. Ministra Cármen Lúcia.

O resultado provocou danos à imagem da Corte. A decisão do Supremo foi interpretada por parte da imprensa e pela opinião pública como um acerto político indevido para salvar Renan Calheiros e como um sinal de que as investigações contra esquemas de corrupção podem sofrer revés no tribunal. Por fim, o Supremo foi desafiado como há muito não se via. E justamente no que há de mais caro para um tribunal: o cumprimento de suas decisões.

O desrespeito à decisão liminar do STF foi seguido por outro. Na semana seguinte a esta crise, o ministro Luiz Fux concedeu liminar em mandado de segurança (MS 34.530) impetrado pelo deputado Eduardo Bolsonaro e determinou que o Senado devolvesse para a Câmara o projeto de 10 medidas de combate à corrupção. Argumentou o ministro que a proposta de iniciativa popular não tramitou conforme o regimento interno da Câmara e foi desfigurada ao ser votada pelos parlamentares.

A decisão atiçou o Legislativo. Parlamentares acusaram o Judiciário de interferir indevidamente no processo legislativo. Novamente, o presidente do Senado recusou-se a respeitar a liminar. Disse que não devolveria o projeto e aguardaria o julgamento do agravo contra a decisão, apenas em 2017. Quando o assunto for julgado, porém, Calheiros não será mais presidente do Senado. O ministro Gilmar Mendes novamente foi ao ataque. Comparou a liminar com o “AI 5 do Judiciário” e disse que, pela decisão do colega, seria melhor fechar o Congresso e entregar as chaves para o Ministério Público, que patrocinou as 10 medidas.

Em resposta às sucessivas críticas de Mendes aos colegas, os juízes federais divulgaram nota, afirmando que o ministro do Supremo descumpre a lei ao atuar como comentarista de decisões judiciais: “Nada impede que o ministro Gilmar Mendes, preferindo a função de comentarista à de magistrado, renuncie à toga e vá exercer livremente sua liberdade de expressão, como cidadão, em qualquer dos veículos da imprensa, comentando, aí já sem as restrições que o cargo de juiz necessariamente lhe impõe, o acerto ou desacerto de toda e qualquer decisão judicial.”

No processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff, o tribunal balançou para um lado quando o então presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, fatiou o julgamento da petista no Senado Federal. A manobra – não submetida ao plenário da Casa – criou uma situação sui generis: Dilma Rousseff foi condenada por crime de responsabilidade, mas manteve seus direitos políticos.

O Supremo pendeu para o outro lado em razão da atuação do ministro Gilmar Mendes. Seja por suas declarações públicas, críticas à presidente Dilma Rousseff e ao seu governo, seja pela liminar que concedeu para impedir a posse do ex-presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil. Liminar, por sinal, que tornou-se definitiva, sem nunca ter passado pelo plenário.

Na conta final, descontando um e outro ponto, o Supremo fez sua escolha. Por suas ações ou inações, a atuação do STF na crise política de 2016 pode ser tachada de autocontida, cautelosa ou tímida.

Para os defensores da tese de que o impeachment foi um golpe, o Supremo foi negligente. Para aqueles que torceram pela queda da presidente Dilma Rousseff, o STF foi intervencionista, mas não impediu a saída política. Em qualquer lado que se esteja, será difícil, entretanto, acusar o Supremo de ter assumido partido. A Corte apostou na velha e batida metáfora futebolística de que o bom juiz é aquele que não aparece e que deixa o jogo ser jogado, ganhe quem ganhar.

Mas a moderação do Supremo ao ser chamado a interceder na crise política não foi a mesma no julgamento dos casos mais relevantes deste ano. Não faltam exemplos: possibilidade de iniciar a execução da pena antes do trânsito em julgado de ação penal condenatória, afastamento de Eduardo Cunha do cargo de presidente da Câmara e do mandato parlamentar, manifestação da maioria do tribunal de que réus não podem ocupar cargos na linha sucessória da Presidência da República, corte imediato do salário dos servidores públicos que decidirem fazer greve, inconstitucionalidade de lei que regulamenta a prática da vaquejada (considerada cruel pela maioria dos ministros), proibição da chamada pílula do câncer.

Noutra frente, o Supremo prosseguiu na tarefa que se impôs de promover melhorias no sistema carcerário. Em 2015, o tribunal julgou um pacote de processos em que se discutiu superlotação em presídios, a falta de vagas e a violação do direito à progressão de regime, indenização a presos mantidos em situação degradante, contingenciamento de recursos orçamentários destinados à melhoria do sistema carcerário, possibilidade de o Judiciário determinar aos governos a realização de reformas nas cadeias e, por fim, a obrigatoriedade de apresentação imediata dos presos em flagrante aos juízes.

O tribunal deixou para 2016 outros processos igualmente relevantes para conformar o sistema carcerário: decidiu que o crime de tráfico privilegiado de drogas não tem natureza hedionda, ao contrário do previsto na Lei de Drogas, atribuiu ao Estado a responsabilidade por mortes dentro dos presídios e firmou a tese de que um preso não pode ser submetido a regime de cumprimento de pena mais gravoso daquele imposto na condenação.

Contudo, o fato mais marcante de 2016 no Supremo foi a troca de comando na Corte e a rápida percepção de que a presidência da ministra Cármen Lúcia será sensivelmente distinta da gestão do ministro Ricardo Lewandowski.

Desgastado por suas posições no julgamento do mensalão, pela proximidade com o PT e com os governos Lula e Dilma Rousseff e criticado por sua pauta corporativista, Lewandowski desfechou sua presidência com o fatiamento das penas impostas à presidente da República pelo cometimento do crime de responsabilidade. Dilma foi condenada, perdeu o mandato, mas manteve o direito de ocupar cargos públicos. A decisão causou – e ainda causa – constrangimento ao Supremo.

A imagem pública de Cármen Lúcia  foi construída paralelamente à sua amizade pessoal com Dilma e passou ao largo, por exemplo, de seus votos a favor de José Dirceu nos embargos infringentes do Mensalão. Desde que assumiu o comando da Corte buscou imprimir mais previsibilidade à pauta de julgamentos. Passou a divulgar a lista de processos que serão julgados ao longo do mês. No passado, sabia-se apenas na sexta-feira o que seria julgado nas sessões de quarta e quinta da semana seguinte. Pautou processos polêmicos, mas de grande interesse da opinião pública. E não se escondeu sob a toga quando o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), criticou o juiz que autorizou a operação da Polícia Federal dentro do Congresso para investigar a Polícia Legislativa. A ministra saiu em defesa da magistratura, dizendo que uma crítica a um juiz é também uma crítica a ela.

Todavia, os primeiros quatro meses da presidência Cármen Lúcia são insuficientes para dimensionar sua gestão. Até agora, houve mudanças positivas, mas são visíveis alguns sinais ambíguos em suas decisões. Apesar de reagir a Renan Calheiros na crítica à magistratura, participou das articulações internas para manter Renan Calheiros no cargo, a despeito da liminar do ministro Marco Aurélio Mello e da resistência do senador em cumprir uma decisão do STF.

A ministra também demonstra, por um lado, que pautará todos os processos importantes que estão na fila do Supremo, mas deixou de lado o caso de maior repercussão hoje no STF. As ações contra a correção das cadernetas de poupança pós planos econômicos terão impacto em mais de um milhão de processos em tramitação pelo País.

Mais: a ministra fez visitas surpresa a presídios, mas ainda sem qualquer efeito prático; critica o pagamento a juízes que extrapolam o teto constitucional, mas nada faz como presidente do CNJ e convive, em seu gabinete, com juízes auxiliares que ganham acima do limite. Assumiu como uma de suas bandeiras a melhoria do sistema carcerário, mas manteve-se silente diante de anulação das condenações a policiais condenados pelo massacre do Carandiru.

Nestes quesitos, nestas ambiguidades, talvez, a ministra esteja cumprindo à risca o que Riobaldo, que ela tanta aprecia citar, disse – e que consta de seu discurso: “natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”.

A ministra terá, em 2017, desafios institucionais graves.

A crise fiscal desafia os governos estaduais e cria instabilidade e protestos em várias partes do País, a começar pelo Rio de Janeiro. O governo Michel Temer sofreu baixas relevantes em 2016, com a saída, por exemplo, do articulador político Geddel Vieira Lima, e pode enfrentar dificuldades maiores no Tribunal Superior Eleitoral com o julgamento do pedido de cassação da chapa Dilma-Temer.

As investigações da Lava Jato criarão fatos novos, atingirão parlamentares, integrantes do governo e da oposição e governadores de estado. A delação da empreiteira Odebrecht, cujas primeiras informações já vieram a público, poderá ser um influxo no sistema político brasileiro. Haverá resistências no meio político, no meio econômico e, quem sabe, dentro do próprio tribunal.

Mais uma vez, parafraseando a ministra Cármen Lúcia: “Os conflitos multiplicam-se e não há soluções fáceis ou conhecidas para serem aproveitadas. Vivemos momentos tormentosos. Há que se fazer a travessia para tempos pacificados. Travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta.”

Capítulo 2

Congresso cassa a presidente Dilma Rousseff

Impeachment

A decisão do Supremo – em dezembro de 2015 – impondo ao impeachment da presidente Dilma Rousseff o mesmo rito definido para o julgamento de Fernando Collor foi acompanhada de um recado discreto, mas perceptível nas conversas com qualquer um dos ministros. A partir daquele momento, a Corte não interferiria mais no processo.

A maior prova da disposição do Supremo de manter-se como observador do processo político – agindo apenas em casos teratológicos – foi dada pelo ministro Teori Zavascki. No dia 16 dezembro de 2015, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu ao Supremo que afastasse liminarmente o presidente da Câmara, Eduardo Cunha.

“O Eduardo Cunha tem adotado, há muito, posicionamentos absolutamente incompatíveis com o devido processo legal, valendo-se de sua prerrogativa de presidente da Câmara dos Deputados unicamente com o propósito de autoproteção mediante ações espúrias para evitar a apuração de sua conduta, tanto na esfera penal como na esfera política”, argumentou Janot na petição.

A petição, protocolada a dois dias antes do recesso do Judiciário, provocou incômodos ao STF. A colegas de tribunal, o ministro Teori Zavacki teria reclamado do pedido feito de afogadilho, tendo a Corte apenas duas sessões para apreciar uma causa grave e inédita na história do País.

Havia algo mais grave do que apenas o aperto no calendário. Uma decisão pelo afastamento de Cunha teria o condão de interferir diretamente no processo de impeachment de Dilma Rousseff. O presidente da Câmara era personagem central na disputa política. Se o Supremo o sacasse do cargo, o rumo do processo poderia ser outro. E o tribunal poderia ser acusado de direcionar suas ações para blindar a presidente.

O ministro Teori Zavacki segurou o pedido de liminar por cinco meses. Nesse meio tempo, em março, a Corte aceitou a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República contra Eduardo Cunha – dentre os fatos investigados, o possível pagamento de US$ 5 milhões ao deputado no esquema de corrupção investigado na Operação Lava Jato. Cunha passou a ser réu no Supremo.

No mês seguinte, no dia 17 de abril, a Câmara dos Deputados, sob o comando de Eduardo Cunha, autorizou a instauração do processo de impeachment de Dilma Rousseff por 367 votos a favor e 137 contra.

Semanas depois, já em maio, a Rede protocolou uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 402) para que o Supremo analisasse se poderia ocupar um cargo na linha sucessória da Presidência da República um agente público que responde a ação penal do STF. A ação foi distribuída para o ministro Marco Aurélio Mello, que logo liberou-a para julgamento em plenário.

Diante do risco de Cunha ser afastado em outra ação, protocolada muito mais tardiamente, o ministro Teori Zavascki deferiu a liminar pedida por Janot quase seis meses antes e levou sua decisão para que fosse referendada à unanimidade pelo plenário.

A demora do ministro Teori Zavascki evitou que a decisão do Supremo afetasse o processo de impeachment. O afastamento de Cunha – uma decisão grave e extraordinária, como enfatizou o ministro do Supremo – não interferiu de nenhuma forma no impedimento de Dilma Rousseff. Para os defensores da presidente, repita-se, a cautela do Supremo é motivo para acusar o tribunal de partícipe do “golpe”. Para um dos defensores da presidente, o fato de o futuro do governo estar nas mãos de um pedido desesperado só evidenciava que estava tudo perdido.

“Um presidente do Supremo não deveria participar de manobras ou de conciliados”. Ministro Gilmar Mendes.

Quando o processo foi instaurado no Senado, o presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, assumiu o comando do julgamento, como determina a Constituição. Seriam os atos finais de uma gestão que enfrentou uma tempestade perfeita.

A despeito da simpatia pela presidente Dilma Rousseff, Lewandowski presidiu todo o processo com imparcialidade e sobriedade. O desfecho do processo, porém, levantou novos e fortes questionamentos sobre sua presidência.

O Senado decidiu afastar Dilma Rousseff do cargo, mas de forma inédita não aplicou a pena de inabilitação para ocupar função pública. Dois precedentes do Supremo foram solapados. E o ministro Lewandowski assumiu para si a responsabilidade de levar adiante uma articulação que envolveu defensores de Dilma Rousseff e o presidente do Senado, Renan Calheiros. A presidente foi condenada por crime de responsabilidade, mas manteve-se habilitada para ocupar cargos públicos.

Foi assim que Lewandowski, que classificou o impeachment como um “tropeço da democracia”, encerrou seu mandato, reforçando no seu último e mais importante ato as suspeitas que impregnaram sua biografia desde o julgamento do mensalão.

O fatiamento do julgamento de Dilma Rousseff provocou reações entre os ministros do Supremo. A mais enfática, claro, partiu do ministro Gilmar Mendes, que considerou a decisão “constrangedora” e “verdadeiramente vergonhosa”. “Um presidente do Supremo (então, Lewandowski) não deveria participar de manobras ou de conciliados. Portanto não é uma decisão dele. Cada um faz com sua biografia o que quiser, mas não deveria envolver o Supremo nesse tipo de prática”, afirmou ainda no calor dos acontecimentos.

“Vossa Excelência me esqueça!”. Ministro Ricardo Lewandowski.

Meses depois, em novembro, Mendes e Lewandowski bateriam boca no plenário. O impeachment seria um dos motivos da troca de acusações. O plenário julgava uma questão previdenciária. Mendes, que já havia votado, pede vista e impede que o julgamento seja concluído. Lewandowski pediu a palavra e questionou:

– Vossa excelência está abrindo mão do voto proferido? Data vênia, é um pouco inusitado.

Mendes disse que o julgamento estava em aberto e que nada impedia que ele pedisse vista. E rebateu:

– Vossa excelência é quem faz as escolhas mais heterodoxas aqui.

Lewandowksi rebateu:

– Graças a Deus, não sigo o exame de vossa excelência em matéria de heterodoxia. Faço disso ponto de honra. Faço disso ponto de honra.

Gilmar Mendes lembrou então o desembramento do julgamento de Dilma Rousseff:

– Basta ver o que vossa excelência fez no Senado.

– No Senado? Basta ver o que vossa excelência faz diariamente nos jornais. É uma atitude absolutamente, ao meu ver, incompatível – retrucou Lewandowski.

– Faço inclusive [falar aos jornais] para reparar os absurdos que vossa excelência faz – disse Mendes

– Absurdos, não! Retire o que disse. Não existe. Vossa excelência está faltando com decoro. Não é de hoje.

Diante da recusa de Gilmar Mendes de retirar as críticas ao colega, Lewandowski disse, exasperado.

– Vossa Excelência me esqueça!

Parlamentares e legendas impetraram mandados de segurança no Supremo, buscando anular o fatiamento e aplicando à presidente Dilma Rousseff também a pena de inabilitação para funções públicas ( MS 34.378 – Partido Social Liberal; 34.379 – senador Álvaro Dias, do PV; 34.384 – senador José Medeiros, do PSD; 34.385 e 34.386 – deputado federal Expedito Netto, do SD; 34.394 – PSDB, DEM, PPS, PMDB e Solidariedade). A relatora dos pedidos, ministro Rosa Weber, negou as liminares, mas ainda precisa analisar o mérito dos pedidos.

O ministro Gilmar Mendes, principal defensor da mudança de jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a abertura da ação de impugnação do mandato de Dilma Rousseff, foi também responsável por anular a última tentativa de sobrevivência do governo petista. O ministro suspendeu, monocraticamente, a nomeação do ex-presidente Lula para a chefia da Casa Civil. Dilma Rousseff buscava reerguer sua articulação política com a presença de Lula no Palácio do Planalto.

O ex-presidente foi empossado no dia 17 de março. No dia seguinte, Gilmar Mendes deferiu a liminar, argumentando que a nomeação de Lula tinha o objetivo de impedir que ele fosse investigado pelo juiz federal Sérgio Moro, responsável pelos processos relativos à Operação Lava Jato na primeira instância.

O ministro baseou-se para chegar a esta conclusão nas conversas telefônicas gravadas entre a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula e divulgadas pelo juiz Sérgio Moro que suscitaram dúvidas sobre o real objetivo da nomeação do ex-presidente.

“Pairava cenário que indicava que, nos próximos desdobramentos, o ex-Presidente poderia ser implicado em ulteriores investigações, preso preventivamente e processado criminalmente. A assunção de cargo de Ministro de Estado seria uma forma concreta de obstar essas consequências. As conversas interceptadas com autorização da 13ª Vara Federal de Curitiba apontam no sentido de que foi esse o propósito da nomeação”, argumentou o ministro na sua liminar.

Posteriormente, a conversa entre Dilma Rousseff e Lula foi anulada por decisão do ministro Teori Zavascki. E a divulgação das conversas por Moro foi considerada um erro pelo Supremo. “Foi também precoce e, pelo menos parcialmente, equivocada a decisão que adiantou juízo de validade das interceptações, colhidas, em parte importante, sem abrigo judicial, quando já havia determinação de interrupção das escutas”, escreveu o ministro Teori Zavascki na sua decisão.

Já era tarde. Lula não assumiria mais o cargo, não teria chances de reconstruir as pontes do Planalto com a base aliada. A liminar de Gilmar Mendes, com a queda do governo, produziu efeitos definitivos. E o juiz Sérgio Moro apenas pediu desculpa pela divulgação dos áudios. “Jamais foi a intenção desse julgador, ao proferir a aludida decisão de 16/03, provocar tais efeitos e, por eles, solicito desde logo respeitosas escusas a este Egrégio Supremo Tribunal Federal”, disse o juiz em ofício enviado ao STF. Ficou o dito pelo não dito.

O capítulo final do processo de impeachment – absolutamente previsível – ocorrerá quando do julgamento do último recurso da defesa de Dilma Rousseff. O advogado da ex-presidente, José Eduardo Cardozo, protocolou um mandado de segurança, com pedido de liminar, em que contesta o mérito da acusação por crime de responsabilidade e pede que o STF anule a condenação pelo Senado da ex-presidente à perda do cargo.

No pedido, Cardozo argumentou que os fatos imputados à Dilma Rousseff não configuram crimes de responsabilidade. E acrescentou que o então vice-presidente Michel Temer articulou a condenação de Dilma.

“A negociação foi comandada diretamente pelo sr. vice-presidente da República, Michel Temer, desde o processamento do impeachment na Câmara dos Deputados. Não foram articulações mascaradas ou cautelosas. Foram abertas e despudoradas”, enfatizou.

O Supremo não anulará o processo de impeachment, e isso fica claro na conversa com qualquer dos integrantes da Corte. A própria defesa da ex-presidente está ciente disso, mas não poderia fugir ao questionamento do mérito do impeachment no Supremo.

“O encerramento deste ano impactante é muito bem vindo”. Ministro Marco Aurélio.

Em outro episódio, também relacionado ao impeachment, somam-se dois fatores que marcaram 2016 no STF. Monocraticamente, o ministro Marco Aurélio determinou que a Câmara dos Deputados instalasse a comissão especial destinada a avaliar o pedido de impedimento do vice-presidente Michel Temer.

O então presidente da Casa, Eduardo Cunha, solicitou aos líderes partidários que indicassem os integrantes do colegiado. As lideranças não escolheram os nomes e a comissão não foi instalada. A liminar concedida em abril pelo ministro do STF está, portanto, sendo descumprida.

E, como ocorreu em outros episódios ao longo do ano, a decisão do ministro foi criticada pelo colega Gilmar Mendes. “Eu também não conhecia impeachment de vice-presidente. É tudo novo para mim. Mas o ministro Marco Aurélio está sempre nos ensinando”, disse Mendes, ironicamente.

A liminar do ministro Marco Aurélio ainda não foi submetida ao plenário do Supremo (apesar de o ministro ter liberado o caso em maio para julgamento colegiado). Dificilmente será referendada, conforme integrantes do STF.

Capítulo 3

Nova redação

Execução provisória

A decisão mais contestada do Supremo em 2016 foi aquela em que a maioria do tribunal, mudando sua própria jurisprudência e a despeito do que previsto na Constituição e na legislação infraconstitucional, entendeu que é possível a execução da pena para quem for condenado em duas instâncias, independentemente do cabimento de recursos ao Superior Tribunal de Justiça e ao STF.

O tribunal emitiu numerosos sinais de que mudaria a jurisprudência de 2009, quando o STF decidiu que a execução da pena só poderia ocorrer após o trânsito em julgado de ação penal condenatória.

O relator do processo, o habeas corpus 126.292, foi justamente o relator das investigações da Operação Lava Jato no Supremo. A escolha desse leading case não foi mera coincidência. Ao contrário, foi uma articulação feita por parte dos ministros da Corte.

No dia 17 de fevereiro, ao levar o caso a julgamento, os ministros entenderam- por 7 votos contra 4 – que o início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência.

A alteração da jurisprudência se consolidou no ambiente de denúncias e condenações de envolvidos no esquema de corrupção da Petrobras na primeira instância da Justiça Federal do Paraná. A mudança foi um recado explícito do tribunal para agentes políticos e grandes empresários que apostavam na reversão de condenações no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo.

O ministro Luís Roberto Barroso, um dos principais defensores da tese, afirmou que a impossibilidade de executar a pena antes do trânsito em julgado criou três consequências muito negativas para o sistema de justiça criminal:

– Em primeiro lugar, funcionou como um poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios. Tais impugnações movimentam a máquina do Poder Judiciário, com considerável gasto de tempo e de recursos escassos, sem real proveito para a efetivação da justiça ou para o respeito às garantias processuais penais dos réus.

– Em segundo lugar, reforçou a seletividade do sistema penal. A ampla (e quase irrestrita) possibilidade de recorrer em liberdade aproveita sobretudo aos réus abastados, com condições de contratar os melhores advogados para defendê-los em sucessivos recursos.

– Em terceiro lugar, o novo entendimento contribuiu significativamente para agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade. A necessidade de aguardar o trânsito em julgado do REsp e do RE para iniciar a execução da pena tem conduzido massivamente à prescrição da pretensão punitiva ou ao enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição definitiva. Em ambos os casos, produz-se deletéria sensação de impunidade, o que compromete, ainda, os objetivos da pena, de prevenção especial e geral. Um sistema de justiça desmoralizado não serve ao Judiciário, à sociedade, aos réus e tampouco aos advogados.

O voto do ministro foi um recado explícito de que o foco da decisão do Supremo era combater o clima de impunidade dos crimes de colarinho branco. E a consequência seria o fortalecimento da Operação Lava Jato, inclusive como estímulo extra para réus dispostos a negociar acordos de delação premiada.

Os ministros que votaram em sentido oposto – e que ficaram vencidos – argumentaram que a Constituição e a lei eram expressas: a prisão para execução da pena depende do transito em julgado de ação penal condenatória. E os textos devem ser interpretados, disse o ministro Marco Aurélio, independentemente da percepção de que o clima no País era de corrupção generalizada.

“Reconheço que a época é de crise. Crise maior. Mas justamente, em quadra de crise maior, é que devem ser guardados parâmetros, princípios e valores, não se gerando instabilidade, porque a sociedade não pode viver aos sobressaltos, sendo surpreendida”, ponderou o ministro Marco Aurélio Mello.

Acrescentou: “Ontem [2009], o Supremo disse que não poderia haver a execução provisória, quando em jogo a liberdade de ir e vir. Considerado o mesmo texto constitucional, hoje, conclui de forma diametralmente oposta, por uma maioria que, presumo, virá a ser de sete votos a quatro”.

Mais enfático na defesa da tese vencida foi o ministro Celso de Mello, decano da Corte. “Lamento, senhores ministros, registrar-se, em tema tão caro e sensível às liberdades fundamentais dos cidadãos da República, essa preocupante inflexão hermenêutica, de perfil nitidamente conservador e regressista, revelada em julgamento que perigosamente parece desconsiderar que a majestade da Constituição jamais poderá subordinar-se à potestade do Estado”, ressaltou.

A decisão do tribunal provocou reações imediatas. E, em maio, o Partido Ecológico Nacional (PEN), representado pelo advogado Antônio Carlos de Almeida Castro (advogado de réus da Lava Jato), e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizaram duas ações declaratórias de constitucionalidade: ADCs 43 e 44.

A tentativa era de reverter o entendimento do Supremo sobre execução provisória da pena. Nas ações, PEN e OAB pediam ao Supremo a confirmação da presunção de constitucionalidade do artigo 283, do Código de Processo Penal: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou preventiva”.

Mas o Supremo, em outubro, manteve seu entendimento e firmou a tese de que o artigo 283 não veda a execução da pena antes do trânsito em julgado da ação penal.

Capítulo 4

Precedente

Aborto

Num habeas corpus (HC 124.306) julgado na Primeira Turma, o Supremo abriu um precedente importante e controverso: por unanimidade, os ministros concederam a liberdade a médicos e enfermeiros presos em flagrante quando submetiam uma paciente à interrupção da gravidez.

Os médicos e enfermeiros foram enquadrados nos artigos 124 e 126 do Código Penal:

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena – detenção, de um a três anos.

Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

Três dos ministros anteciparam-se a uma discussão que o Supremo nunca enfrentou. A ministra Rosa Weber e os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin disseram que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não configura crime.

“É preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade”, disse o ministro Barroso em seu voto.

“A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”, acrescentou.

Por que não afetar o plenário do Supremo? Por que decidir questão tão relevante na Turma, entre cinco ministros e não entre os 11? Por que discutir o aborto sem a transmissão da sessão pela TV Justiça? Por que em habeas corpus? Por que adentrar neste assunto se todos concordavam em libertar os pacientes pela razão mais prosaica: não estarem presentes os requisitos formais para a prisão cautelar?

A resposta é objetiva é: se o tema fosse submetido ao plenário, o precedente não seria aberto. Simples. Barroso, quando ainda era advogado, tentou emplacar essa discussão no Supremo.

Ele defendia a autorização da interrupção da gravidez em casos em que comprovada a anencefalia do feto. Na sustentação oral que fez, em 2012, o então advogado Luís Roberto Barroso defendeu que a Corte avançasse e julgasse a constitucionalidade da criminalização do aborto.

Barroso venceu o julgamento. O tribunal julgou não ser crime a interrupção da gravidez no caso de anencefalia, mas não avançou. Agora, como ministro, Barroso conseguiu imprimir a velocidade que gostaria de ter dado a este tema e amealhou o apoio declarado de dois de seus colegas.

A medida, no entanto, enfrentou resistências no tribunal. A presidente do STF, Cármen  Lúcia, chegou a minimizar o impacto da decisão. “Abrir precedente, toda decisão pode abrir. […] Isso é uma questão de turma, primeiro, não é de plenário, e no caso especifico. E a repercussão enorme que teve, acho, foi até um pouco inesperada.”

Capítulo 5

STF e o Congresso

Poderes

No primeiro semestre de 2016, o Supremo afastou Eduardo Cunha da presidência da Câmara numa decisão inédita. Em momento normal, era de se esperar reação do Congresso. Afinal, não havia precedentes para a grave intervenção do Judiciário no Legislativo. Cunha foi afastado do cargo e do exercício do mandato. Mas a Câmara não reagiu. Ao contrário, a determinação do Supremo foi recebida com certo alívio e sob críticas de que teria tardado.

No segundo semestre, o tribunal levou à pauta de julgamentos dois processos que poderiam levar, desta vez, ao afastamento do presidente do Senado e do Congresso Nacional, Renan Calheiros (PMDB-AL). Primeiro o STF julgaria uma ADPF em que a Rede Sustentabilidade defende a impossibilidade de réus em ações penais no Supremo ocuparem cargos na linha sucessória da Presidência da República. Depois, o tribunal julgaria o recebimento de uma antiga denúncia contra Renan Calheiros, abrindo a ação penal e determinando, por consequência, seu afastamento do cargo.

Toda essa articulação de julgados – fruto de discussões e conversas entre parte dos ministros da Corte – ocorrera em meio a um princípio de ruídos entre o presidente do Senado e o Judiciário, tendo como mote uma operação da Polícia Federal dentro do Congresso, autorizada por um juiz de primeira instância.

Em outubro de 2016, a Polícia Federal deflagrou a Operação Métis e prendeu quatro policiais legislativos sob a suspeita de tentarem obstruir as investigações da Lava Jato. Em suma, os policiais eram suspeitos de usar equipamentos do Senado para procurar nos gabinetes e na casa de senadores e ex-senadores escutas telefônicas.

Renan Calheiros reagiu à operação. Chamou de “chefete de polícia” o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e de “juizeco de primeira instância” o juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara da Justiça Federal, no Distrito Federal, que autorizou as prisões e apreensão de equipamentos no Senado.

No dia seguinte, a ministra Cármen Lúcia, falando como presidente do Conselho Nacional de Justiça, rebateu as críticas feitas ao magistrado.

“Todas as vezes que um juiz é agredido, eu e cada um de nós juízes é agredido. E não há a menor necessidade de, numa convivência democrática, livre e harmônica, haver qualquer tipo de questionamento que não seja nos estreitos limites da constitucionalidade e da legalidade”, afirmou a presidente do Supremo. “O que não é admissível aqui, fora dos autos, é que qualquer juiz seja diminuído ou desmoralizado. Porque, como eu disse, onde um juiz for destratado, eu também sou. Qualquer um de nós, juízes, é.”

A contraposição entre Renan Calheiros e Cármen Lúcia não gerou consequências. Dias depois, antes de uma reunião dos presidentes dos três poderes Renan Calheiros telefonou para Cármen Lúcia e depois da reunião manifestou-se publicamente sobre a presidente do STF.

”Aproveitei a oportunidade [da reunião] para dizer que tenho muito orgulho, é um orgulho que vou levar para a minha vida, de ser presidente do Congresso Nacional no exato momento em que Cármen Lúcia é presidente do Supremo Tribunal Federal”, disse o senador.

Antes deste entrevero, a ministra já havia incluído na pauta do STF o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 402, protocolada pela Rede Sustentabilidade. Nesta ação, protocolada quando ainda era presidente da Câmara o deputado Eduardo Cunha e tendo ele como alvo, a Rede defende a tese de que “é incompatível com Constituição a assunção e o exercício dos cargos que estão na linha de substituição do Presidente da República por pessoas que sejam réus em ações penais perante o Supremo Tribunal Federal, admitidas pela própria Corte Suprema”.

“A permanência do presidente da Câmara dos Deputados em situação incompatível com a ordem constitucional caracteriza inequívoca violação aos referidos preceitos fundamentais. E ainda existe o risco real e concreto de que o mesmo fenômeno venha a ocorrer com o presidente do Senado Federal, caso o STF admita denúncia já formulada ou que venha a ser formulada nos inquéritos em tramitação contra S. Exa., e não haja o seu imediato afastamento da função ocupada. É fundamental, portanto, que essa egrégia Corte analise a procedência das teses constitucionais enunciadas na presente ação”, afirmaram os advogados que subscreveram a ação – Daniel Sarmento, Eduardo Mendonça, Rafael Barroso Fontelles, Camila Gomes, Felipe Monnerat e Thiago Magalhães Pires.

O partido pediu ao Supremo então que fixasse a tese de que a pendência de ação penal aberta no Supremo é incompatível com o exercício dos cargos que figurem na linha sucessória da Presidência da República e determinasse o afastamento de Eduardo Cunha do comando da Câmara.

A ação começou a ser julgada em novembro. Com a cassação do mandato de Eduardo Cunha por quebra de decoro parlamentar, o alvo imediato da ação passou a ser Renan Calheiros.

Apesar da controvérsia envolvendo a tese, das graves repercussões do julgamento sobre outros poderes, sobre a vontade do eleitor e dos parlamentares e a despeito de dúvidas sobre a amplitude da tese, o Supremo alcançou maioria em favor da ADPF em apenas 45 minutos de sessão sem nenhum debate entre os ministros.

Apenas como base de comparação: o julgamento seguinte, em que se discutiu a inclusão as certidões de dívida ativa no rol dos títulos sujeitos a protesto, arrastou-se por duas sessões em 2 horas e 17 minutos de discussões.

A rapidez no julgamento da ADPF só evidenciou o movimento que os ministros fizeram reservadamente, fora do plenário. O julgamento do caso, chegando-se à maioria naquele dia 3 de novembro, serviu de resposta a Renan Calheiros. Uma resposta político-institucional sem consequência prática, conforme avaliação da maioria dos ministros.

O ministro Dias Toffoli pediu vista do processo, adiando para 2017 a conclusão do julgamento. Qual as razões do pedido de vista pelo ministro? Não estava preparado para votar? Os argumentos dos colegas geraram dúvidas que precisaria dirimir? Queria obstruir o julgamento? Ou seu cálculo foi político e considerou mais adequado não colocar o Supremo em colisão com o Senado a três meses do fim do mandato de Renan Calheiros na Presidência da Casa?

Independentemente da resposta à questão, atribuir ao ministro Dias Toffoli a responsabilidade exclusiva pela manutenção de Renan Calheiros na presidente do Senado seria, no mínimo, desconhecer a soma de fatores que levaram o Supremo a retardar, por exemplo, o julgamento criminal do senador.

Por quê? Para que o julgamento da ADPF tivesse impacto sobre Renan Calheiros, o Supremo precisava julgar a denúncia oferecida contra o senador em janeiro de 2013 em inquérito que tramitava no Supremo desde agosto de 2007 para investigar suspeitas de que Calheiros teve contas pessoais pagas pela empreiteira Mendes Júnior.

Computando as datas: a Procuradoria-Geral da República levou seis anos para oferecer a denúncia. O ministro Lewandowski, que relatava o inquérito, nunca liberou o processo para julgamento. Depois que processo mudou de mãos, foi redistribuído para o ministro Edson Fachin, que herdou o acervo de processos de Lewandowski, foram mais 16 meses até que estivesse pronto para ser julgado. E demorou mais dois meses até ser colocado em julgamento pela presidente do Supremo.

Um detalhe adicional: recebida a denúncia contra Renan Calheiros, serão necessários alguns meses até que a decisão do Supremo transite em julgado e o senador se torne, de fato, réu com a instauração da ação penal. E isso só ocorrerá quando na cadeira de Renan Calheiros já houver outro para presidir o Senado.

Renan Calheiros ainda terá vasta conta para acertar com a Justiça Criminal e o Supremo Tribunal Federal. O senador é investigado em 12 inquéritos, sendo oito deles abertos em razão das investigações da Operação Lava Jato.

Capítulo 6

Pacote carcerário

O Supremo faz, desde 2015, uma espécie de esforço concentrado para dar alguma racionalidade ao sistema carcerário brasileiro. Naquele ano, foi julgado um pacote de processos para discutir superlotação em presídios, a falta de vagas e a violação do direito à progressão de regime, indenização a presos mantidos em situação degradante, contingenciamento de recursos orçamentários destinados à melhoria do sistema carcerário, possibilidade de o Judiciário determinar aos governos a realização de reformas nas cadeias e, por fim, a obrigatoriedade de apresentação imediata dos presos em flagrante aos juízes

Em 2016, novas decisões nesta direção saíram do STF. Em junho, a Corte decidiu – no Habeas Corpus 118.533, impetrado em 2013 – que o chamado tráfico privilegiado de entorpecentes não deve ser considerado crime de natureza hedionda.

O que caracteriza o tráfico privilegiado, conforme a lei 11.343/2006 (art. 33, §§ 1º e 4º), seria o fato de o réu ser primário, apresentar bons antecedentes e não se dedicar a atividades criminosas nem integrar organização criminosa. Nestes casos, as penas poderiam ser reduzidas de um sexto a dois terços. Porém, se o crime fosse enquadrado como hediondo, os benefícios não poderiam ser concedidos.

Relatora do processo, a ministra Cármen Lúcia afirmou que o tratamento penal dirigido ao delito “apresenta contornos mais benignos, menos gravosos”. “A própria etiologia do crime privilegiado é incompatível com a natureza hedionda, pois não se pode ter por repulsivo, ignóbil, pavoroso, sórdido e provocador de uma grande indignação moral um delito derivado, brando e menor, cujo cuidado penal visa beneficiar o réu e atender à política pública sobre drogas vigente”, afirmou ela em seu voto.

No mesmo sentido votou o ministro Lewandowski, que apresentou dados que reforçam a importância do caso. “Entre as já 622.202 pessoas em situação de privação de liberdade, homens e mulheres, 28%, mais precisamente 174.216 presos, ali estão por força de condenações decorrentes da aplicação da Lei de Drogas”, afirmou.

“Portanto os números impressionam: 30% dos presos, dos mais de 600.000 presos estão lá no sistema penitenciário porque praticaram algum delito ligado ao tráfico de drogas, e 45% desse contingente, na sua maioria mulheres, ou seja, 80.000 pessoas tiveram na sentença o reconhecimento do privilégio. A situação é dramática. É uma questão de política criminal. Eu acho que, aqui, além da questão propriamente de interpretação, de hermenêutica jurídica, há um fato que o Supremo Tribunal Federal deve considerar que é esse”, acrescentou.

Ficaram vencidos neste julgamento os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli e Marco Aurélio Mello. O ministro Fux, por exemplo, argumentou que o legislador foi expresso ao tratar o tráfico, em qualquer nível, como crime hediondo.

“Aqui houve uma opção objetiva legislativa no sentido de que tráfico é tráfico e deve ser tratado igualmente, salvante a peculiaridade de se conferir uma causa de redução da pena para o traficante esporádico, primário, de bons antecendentes, coisas que ainda não conseguimos enxergar ainda nesses anos de justiça penal na Primeira Turma”, defendeu.

Em outro julgamento ocorrido em março de 2016 – Recurso Extraordinário 841.52 julgado com repercussão geral – o tribunal assentou que o Estado é responsável – e por isso pode ser condenado civilmente – pela morte de detento em estabelecimento penitenciário quando ficar comprovado que falhou no seu dever de proteger o preso.

Por unanimidade, os ministros negaram provimento ao recurso do estado do Rio Grande do Sul contra acórdão do Tribunal de Justiça local (TJ-RS) que determinou o pagamento de indenização à família de um presidiário morto por enforcamento.

Relator do processo, o ministro Luiz Fux afirmou que mesmo nos casos de suicídio de presos o Estado pode ser responsabilizado.

“Se o Estado tem o dever de custódia, tem também o dever de zelar pela integridade física do preso. Tanto no homicídio quanto no suicídio há responsabilidade civil do Estado”, afirmou em seu voto.

A tese fixada ao final do julgamento – e que seria aplicada para 108 casos sobrestados å espera do pronunciamento do STF – a tese fixada foi: “Em caso de inobservância de seu dever específico de proteção previsto no artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte de detento.”

Por fim, o tribunal concluiu em maio o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 641320, também com repercussão geral reconhecida. Neste processo, o Supremo enfrentou a superlotação dos presídios.

A falta de investimentos do setor público para a abertura de novas vagas no sistema carcerário gerou a demanda ao Supremo: o que fazer quando um réu é condenado a cumprir pena no regime semiaberto mas só há vaga para ele no regime fechado?

O Supremo respondeu: a falta de estabelecimento penal compatível com a sentença não autoriza o Estado a manter a pessoa condenada no regime prisional mais gravoso. Assim, alguém condenado a cumprir pena em regime aberto não poderia ser inserido no semiaberto ou no fechado.

O acórdão, redigido pelo ministro Gilmar Mendes, criou uma sistemática para o enfrentamento deste problema. Por essa fórmula, os juízes de execução penal devem antecipar a progressão de regime de um preso para permitir o ingresso de outro recém condenado. Assim, se a Justiça condenar alguém a cumprir pena no regime semiaberto e houver falta de vagas, uma pessoa que já estava no semiaberto progredirá para o aberto, abrindo espaço para o novo detento.

Neste mesmo julgado, o tribunal determinou ainda ao Conselho Nacional de Justiça que apresentasse: “(i) projeto de estruturação do Cadastro Nacional de Presos, com etapas e prazos de implementação, devendo o banco de dados conter informações suficientes para identificar os mais próximos da progressão ou extinção da pena; (ii) relatório sobre a implantação das centrais de monitoração e penas alternativas, acompanhado, se for o caso, de projeto de medidas ulteriores para desenvolvimento dessas estruturas; (iii) projeto para reduzir ou eliminar o tempo de análise de progressões de regime ou outros benefícios que possam levar à liberdade; (iv) relatório deverá avaliar (a) a adoção de estabelecimentos penais alternativos; (b) o fomento à oferta de trabalho e o estudo para os sentenciados; (c) a facilitação da tarefa das unidades da Federação na obtenção e acompanhamento dos financiamentos com recursos do FUNPEN; (d) a adoção de melhorias da administração judiciária ligada à execução penal.”

Capítulo 7

Desaposentação, direito de greve e a vaquejada

Processos

Reação do Congresso

A polêmica e tradicional prática, especialmente no Nordeste, na qual um boi é solto em uma pista e dois vaqueiros montados a cavalo tentam derrubá-lo pela cauda, colocou o Supremo e o Congresso na disputa pela última palavra.

No dia 6 de outubro, por seis votos a cinco, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 4.983 e declarou inconstitucional a lei do Ceará que regulamentava a vaquejada como prática esportiva e cultural.

O principal argumento dos ministros do STF é que a vaquejada é uma prática cruel para os animais e, portanto, fere princípios constitucionais de preservação do meio ambiente.

No STF, o governo do Ceará argumentou que a vaquejada faz parte da cultura regional e que se trata de uma atividade econômica importante e movimenta cerca de R$ 14 milhões por ano.

A decisão sobre o caso do Ceará servirá de referência para todo o país. Com isso, eventuais praticantes e organizadores poderão ser punidos por crime ambiental de maus tratos a animais.

“Ante os dados empíricos evidenciados pelas pesquisas, tem-se como indiscutível o tratamento cruel dispensado às espécies animais envolvidas. Inexiste a mínima possibilidade de um boi não sofrer violência física e mental quando submetido a esse tratamento”, afirmou o ministro Marco Aurélio, relator do caso.

Votaram contra a vaquejada o relator da ação, ministro Marco Aurélio, e os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski. A favor da manutenção prática votaram Edson Fachin, Gilmar Mendes, Teori Zavascki, Luiz Fux e Dias Toffoli.

A decisão provocou reações imediatas. Protestos foram convocados para Brasília. O Senado reagiu e passou a analisar quatro propostas para regulamentar a prática.

Três projetos (PLS 377/2016, PLS 378/2016 e PLC 24/2016) classificam a atividade como patrimônio cultural brasileiro e uma proposta de emenda à Constituição (PEC 50/2016) assegura sua continuidade, desde que regulamentada em lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. No final de novembro, após aprovação pelo Congresso, o presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.364 que tornou a vaquejada e o rodeio manifestações culturais. O assunto deve retornar ao Supremo.

 

Desaposentação

Uma discussão que se arrastava desde 2010 e com impacto potencial bilionário para os cofres da Previdência chegou ao fim no Supremo no dia 26 de outubro. Por 7 votos a 4, os ministros rejeitaram a possibilidade de uma pessoa aposentada que continua a trabalhar receber pensões maiores com base nas novas contribuições à previdência pública, a chamada “desaposentação” (Recursos Extraordinários 661.256, 381.367 e 827.833).

A medida trouxe alívio para o governo Michel Temer em meio a crise econômica e fiscal. A Advocacia-Geral da União estimava que, se o recálculo das aposentarias fosse aprovado no Supremo, as despesas com os benefícios subiriam R$ 7,7 bilhões por ano.

Atualmente, o cálculo da aposentadoria é feito de acordo com a média da contribuição. O valor é multiplicado pelo fator previdenciário, cálculo que leva em conta o tempo e valor da contribuição, a idade e expectativa de vida.

A maioria do STF entendeu que o sistema previdenciário público no Brasil é baseado no princípio da solidariedade e não há previsão na lei para o acréscimo. Uma mudança do modelo, portanto, só poderia ser estabelecida pelo Congresso e não pelo Judiciário.

“Não concebo a desaposentação. A aposentadoria consiste num ato jurídico perfeito e acabado. O fator permite que o beneficiário goze da aposentadoria antes da idade mínima, podendo escolher o momento de se aposentar. Admitir a desaposentação seria subverter o fator previdenciário, gerando ônus”, disse o ministro Dias Toffoli, um dos relatores.

Os ministros Dias Toffoli, Edson Fachin, Teori Zavascki, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia votaram contra desaposentação.

Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski ficaram vencidos.

 

Greve

Em meio às ameaças generalizadas de greve no setor público, uma decisão do Supremo praticamente asfixiou qualquer movimento neste sentido. E a intenção do STF neste sentido foi expressa.

No dia 27 de outubro, por 6 votos a 4, os ministros disseram que a administração pública deve cortar o ponto de servidores grevistas, independentemente de julgamento sobre a legalidade ou ilegalidade da greve (RE 693.456). A administração pode também descontar o pagamento pelos dias parados.

De acordo com a tese firmada pelo STF, não haverá o desconto nos casos em que a greve for provocada por conduta ilegal do poder público, como, por exemplo, o atraso no pagamento dos salários ou resistência em negociar com a categoria. A decisão do STF, no entanto, não impede a possibilidade de acordo que permita a compensação ao invés do desconto salarial.

Para a maioria dos integrantes do tribunal, a medida representa um desestímulo às paralisações e não fere o direito à greve garantido pela Constituição. Na avaliação dos representantes dos servidores, a decisão do Supremo esvazia os movimentos grevistas.

No julgamento, os ministros levaram em consideração ainda o risco de greve generalizada que ameaça o governo Temer e os governadores em meio à crise financeira.

“O que ocorre, numa visão realista, é que nós estamos num momento muito difícil e que se avizinha deflagrações de greve e é preciso estabelecer critérios para que nós não permitamos que se possa parar o Brasil”, disse  o ministro Luiz Fux.

Os ministros Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Gilmar Mendes, Luiz Fux e a presidente Cármen Lúcia admitiram o corte.

Os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello defenderam que  apenas ordem judicial pode determinar o corte no pagamento.

 

Pílula do câncer

Em meio a muitas incertezas sobre os efeitos da fosfoetanolamina, composto que ficou conhecido popularmente como “pílula do câncer”, o Supremo decidiu conceder uma liminar para suspender os efeitos da lei aprovada pelo Congresso e sancionada pela presidente Dilma Rousseff e que permitia a distribuição e a comercialização do fármaco.

Os ministros discutiram uma ação proposta pela Associação Médica Brasileira (AMB) para interromper lei, aprovada no Congresso e sancionada em abril pela presidente afastada Dilma Rousseff, que autorizou pacientes com câncer a fazer uso da pílula.

No julgamento, os ministros entenderam que a lei deveria ser suspensa por dois argumentos centrais. O primeiro é que não há testes científicos suficientes que comprovem que o composto seja seguro e eficaz sem colocar em risco a saúde dos pacientes.

O outro defende que a norma editada pelo Congresso invadiu competência da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Votaram a favor de suspender a lei os ministros Marco Aurélio, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.

Outro grupo de ministros, minoritário e, que ficou vencido, defendeu a liberação da  substância somente para pacientes terminais: Edson Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

Para a maioria dos ministros, a ausência de testes, como exige a Anvisa para que novos medicamentos sejam comercializados no país, coloca em risco a vida dos pacientes.

“A solução nunca deverá ser a liberação para o consumo, mas o incentivo à realização de uso [em teste] científico com protocolos. Trata-se de decorrência básica do princípio da precaução”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso.

O Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) anunciou que a fase de testes clínicos da fosfoetanolamina tem avançado. As avaliações iniciais sobre a toxicidade do produto, concluíram que não há riscos de efeitos adversos graves associados ao uso da substância. Outras etapas de exames ainda estão sendo desenvolvidas.

 

Direito à saúde

O ministro Barroso classificou este como um dos mais difíceis processos submetidos ao Supremo. O assunto é controverso e qualquer escolha, disse ele, seria grave. “Há escolhas trágicas a serem feitas, trágicas, mas inexoráveis. Nessa matéria, como em tudo o mais, o populismo não é solução, mas parte do problema”, disse o ministro.

Deve o Estado fornecer medicamentos de alto custo que não estejam na lista do Sistema Único de Saúde (SUS)?  O julgamento foi iniciado em setembro, mas foi interrompido por pedido de vista do ministro Teori Zavascki após três votos distintos do ponto de vista prático.

Ao pedir mais prazo para proferir seu voto, o ministro afirmou haver certo consenso com relação ao direito à saúde, mas dissenso sobre os limites práticos a serem observados.

Primeiro a votar, o relator do caso, ministro Marco Aurélio, entendeu que é dever do Estado fornecer medicamentos não previstos na política de assistência do SUS. Ainda ponderou que as famílias dos pacientes sejam solidárias ao Estado quando tiverem condições financeiras para comprar os medicamentos.

Marco Aurélio também defendeu que mesmo os medicamentos sem registro na Anvisa devem ser fornecidos pelo Estado para os pacientes, desde que estejam registrados fora do País.

O ministro Luís Roberto Barroso negou o fornecimento de medicamentos não previstos no SUS e também os não registrado pela Anvisa. Além disso, defendeu que, nos casos de medicamentos experimentais em fase de pesquisas e testes, não há nenhuma hipótese que obrigue o Estado a fornecê-los. Barroso quer abriu exceção para os medicamentos de segurança comprovada e testes conclusivos ainda sem registro na Anvisa, isso é, nos casos em que houver “irrazoável” mora da Anvisa para apreciar o pedido – mais de 365 dias – o Estado deverá liberá-los.

Nesses casos, é preciso que haja prova de cumprimento de três requisitos: existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, existência de registo no exterior e inexistência de substituto terapêutico listado na Anvisa.

 

Perdão

O Supremo – e mais especificamente o ministro Luís Roberto Barroso – enfrentou neste ano o desgaste de confirmar o perdão para condenados por envolvimento no esquema do mensalão, quatro anos apenas depois de concluir o maior julgamento da história da Corte.

Dos 24 condenados, 11 deles tiveram perdoadas as penas por participação no esquema de corrupção que desviou dinheiro público para a compra de apoio político no Congresso, no início do governo Lula (2003 -2010).

Foram beneficiados principalmente os integrantes do chamado núcleo político e personagens polêmicos do esquema: Roberto Jefferson, Pedro Henry,  Romeu Queiroz, Carlos Alberto Rodrigues Pinto, Rogério Tolentino, Vinícius Samarane, Valdemar Costa Neto, Jacinto Lamas, João Paulo Cunha, Delubio Soares e José Dirceu.

Condenados em 2012 e presos no 15 de novembro de 2013, eles foram beneficiados pelo indulto natalino, previsto na Constituição e concedido pelo presidente da República conforme critérios que estabelece.

O benefício leva em consideração parâmetros que são preestabelecidos pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, ligado ao Ministério da Justiça. Entre os critérios para o perdão estão o cumprimento da pena em regime aberto, condenações menores que oito anos e condenados não reincidentes –se forem reincidentes, se tiverem cumprido um quarto da pena.

Numa tentativa de reduzir o peso da decisão, inicialmente, o ministro Luís Roberto Barroso submeteu o caso do ex-deputado João Paulo Cunha ao plenário, sendo que teve aval dos colegas. Na sequência, o ministro estendeu o entendimento a outros condenados que também requisitaram o indulto.

O mais polêmico, no entanto, foi o benefício para o ex-ministro José Dirceu, atualmente preso na Lava Jato. Inicialmente, o indulto foi negado ao petista, mas a defesa recorreu.

Ao reavaliar o caso, Barroso determinou a extinção da punibilidade atendendo a parecer do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apontando que o petista se enquadra no chamado indulto natalino, e também a partir de informações prestadas pelo juiz Sergio Moro, responsável pela Lava Jato no Paraná.

Pelo esquema de corrupção da Petrobras, Dirceu foi punido com 23 anos e três meses de prisão pelos crimes de lavagem de dinheiro, corrupção ativa e organização criminosa pela participação no esquema de contratos superfaturados da construtora Engevix com a Petrobras.

Moro esclareceu ao STF, no entanto, que só ficou provado que o ex-ministro cometeu crime na Lava Jato e recebeu propina até o dia 13 de novembro de 2013 – dois dias antes de ser preso no mensalão.  Portanto, Dirceu se enquadra no indulto porque enquanto não ficou provado que cometeu crime na Lava Jato enquanto cumpria pena no mensalão.

Para a PGR, a lei prevê que a falta grave deve ter sido cometida em até um ano antes do decreto publicado com o indulto, para impedir a aplicação do benefício.

Em sua decisão, o ministro criticou o sistema de execução penal,  apontando um modelo facilitado de progressão de regime prisional, de liberdade condicional e de indulto, sendo que após o “cumprimento de parcela pouco relevante da sanção penal (algo em torno de 25% da pena), o condenado por  delitos não violentos já está habilitado para receber o perdão da pena.”

O STF ainda negou o benefício ao empresário Breno Fischberg porque ainda estava devendo a multa fixada na condenação.

Além dos indultos, o STF também concedeu regime aberto a José Roberto Salgado. Em setembro, concedeu o mesmo benefício a Simone Reis Vasconcelos, ex-diretora da agência de publicidade SPM&B, de Marcos Valério. Seguem em regime fechado o empresário Marcos Valério, considerado operador do esquema, seu ex-sócio Ramon Hollerbach e o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato.

Pacote estadual

A crise econômica, especialmente, expôs a fragilidade das contas públicas dos estados. E o Supremo foi chamado a arbitrar duas questões complexas e com forte impacto fiscal.

Na solução desses casos, a rediscussão sobre o pacto federativo permeou os julgamentos. Num deles, caso em que envolvia a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a crítica foi expressa. O ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o Brasil vive hoje um federalismo de mentira.

O ministro Dias Toffoli ressaltou que estados e municípios foram vitimados pela política de desonerações do governo federal, durante o governo Dilma Rousseff. Política feita de forma unilateral, ressaltou ele. Portanto, sem levar em consideração as contas estaduais e municipais.

“Se verificarmos a previsão fiscal do país hoje e a arrecadação do orçamento e olhamos que houve desoneração de R$ 580 bilhões, a conclusão é que houve abuso de poder de estabelecer essas isenções”, comentou.

A crise no pacto federativo, evidentemente, não poderia ser solucionada pelo Supremo Tribunal Federal. Este é um tema, ressaltou o ministro Barroso no julgamento do RE 705.423, semelhante à reforma política: o tribunal pode até apontar o caminho, mas não pode obrigar o Estado a segui-lo.

As questões levadas ao STF e que pediam um conserto na partilha de recursos, primordialmente, permitiram ao tribunal, portanto, apenas sinalizar o desconforto da Corte com o federalismo fiscal.

No primeiro dos julgamentos pelo Supremo, os governos estaduais impetraram mandados de segurança para questionar os juros aplicados à dívida repactuada com a União. Os estados defendem a incidência da taxa Selic sobre o estoque das suas dívidas de forma linear. A União argumentava, em seu favor, que os juros deveriam ser aplicados de forma composta (juros sobre juros), como prevista no Decreto 8.616/2015.

Liminarmente, os ministros atenderam aos pedidos dos estados e impediram que fossem aplicadas sanções em caso de inadimplência no pagamento da dívida com a União.

Relator dos primeiros pedidos, o ministro Edson Fachin reuniu governadores e o então ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, no Supremo. E ouviu deles as críticas à União. O governador de Santa Catarina, Raimundo Colombo, relatou que a dívida inicial do estado com a União era de R$ 4 bilhões. O estado já havia pago R$ 13 bilhões e ainda restava um saldo devedor de R$ 9 bilhões. “O Rio de Janeiro é o retrato, hoje, do que serão todos os estados”, afirmou o governador. Situação semelhante foi relatada por todos os governadores presentes.

Quando o assunto foi levado ao plenário, o Supremo abertamente deu um alívio, na expressão usada por um dos ministros, para as contas estaduais. O STF suspendeu por 60 dias o julgamento dos mandados de segurança e prorrogou pelo mesmo prazo as liminares concedidas aos governos estaduais. Com isso, a União ficou impedida de impor aos estados sanções por inadimplência. Nesse meio tempo, governo e estados negociariam uma possível repactuação.

Em outro caso, o que estava em jogo era a partilha dos recursos arrecadados pela União com base na Lei de Repatriação de Capitais (Lei 13.254/2016). A lei permitiu a repatriação de ativos não declarados e mantidos no exterior, condicionando a regularização dos recursos ao pagamento de uma alíquota de Imposto de Renda de 15% e, sobre este valor, uma multa de 100%.

Os governadores contestaram no Supremo o fato de a lei não prever que o valor referente ao pagamento da multa fosse destinado ao Fundo de Participação dos Estados. Em ações cíveis originárias, os estados defenderam a partilha de todo o montante arrecado – em torno de R$ 50 bilhões.

A ministra Rosa Weber concedeu a liminar para determinar à União que depositasse em conta judicial o valor correspondente do Fundo de Participação dos Estados (FPE) devido aos estados, incidente sobre a multa prevista na Lei 13.254/2016.

Diante da controvérsia, governadores dos estados e representantes do governo federal se reuniram para debater uma solução acordada. Uma espécie de acordo de conciliação. E funcionou.

A União concordou em transferir para os estados o valor relativo à possível participação na arrecadação da multa prevista na Lei de Repatriação em troca da desistência das ações. Em compensação, os governos estaduais se comprometeriam a estabelecer limites para as despesas públicas e enviarem às assembleias legislativas propostas para equilibrar as contas previdenciárias.

Os últimos capítulos da contenda entre estados e União foram encenados no Congresso e no Supremo no dia 20 de dezembro.

Na última sessão do ano da Câmara, os deputados aprovaram a renegociação das dívidas de estados com a União, mas excluíram quase todas as contrapartidas que haviam sido definidas pelo governo federal para equilibrar as contas estaduais. Por 296 votos contra 12, a Câmara aprovou a proposta que livra os estados, por 36 meses, de pagar as prestações do pagamento das dívidas com a União.

No Supremo, a Advocacia-Geral da União pediu o arquivamento das ações propostas por 23 estados e o Distrito Federal para que a União depositasse em juízo os valores correspondentes às multas previstas na Lei de Repatriação para a regularização de ativos financeiros no exterior.

De acordo com a petição da advogada-geral da União, Grace Mendonça, o bloco de ações cíveis originárias deve ter os processos extintos, sem resolução do mérito, em virtude da publicação da Medida Provisória 753, que tratou da partilha dos recursos arrecadados com estados e municípios.