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A presidente Cármen Lúcia em dez pontos

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Capítulo 1

Cármen Lúcia Antunes Rocha

Quem é a ministra Cármen Lúcia? O que pensa? Como decide? O que os ministros esperam dela? Como será a gestão no Supremo Tribunal Federal e no Conselho Nacional de Justiça? Como chegou ao Supremo?

Perguntas para as quais só há resposta no passado, porque a ministra, mineira que é e desconfiada como é, só falará – e se falar – depois do dia 12 de setembro, quando assumir formalmente o cargo.

Fomos ao passado para projetar a próxima gestão. Ouvimos advogados, ministros, ex-ministros, servidores. Com base nesses depoimentos, nos votos proferidos pela ministra, nas entrevistas que concedeu, descrevemos abaixo o que se pode esperar da gestão da ministra Cármen Lúcia.

A indicação

A candidatura de Cármen Lúcia Antunes Rocha ao Supremo Tribunal Federal (STF) foi apadrinhada pelo ministro Sepúlveda Pertence, próximo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Na disputa pela vaga aberta pela aposentadoria do ministro Nelson Jobim estava também a colega de Cármen Lúcia na procuradoria do estado de Minas Gerais, Misabel Derci. De acordo com integrantes do governo e do Senado que acompanharam o processo de indicação, Misabel Derzi sofria resistência de integrantes da oposição.

Soma-se a isso o apoio decisivo de Pertence para que Lula indicasse Cármen Lúcia no dia 10 de maio de 2006. Na semana seguinte, Cármen Lúcia foi sabatinada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

O relator da indicação de Cármen Lúcia na CCJ foi o então senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG). Quando o Supremo julgou o recebimento da denúncia contra Azeredo, envolvido com o mensalão tucano, Cármen Lúcia se declarou impedida por ter trabalhado com ele no governo do estado.

Cármen Lúcia nasceu em Montes Claros (MG) no dia 19 de abril de 1954. Morava em Espinosa. E foi lá que iniciou os estudos. Formou-se em Direito pela PUC de Minas Gerais, em 1977, e é mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais.

No Senado, Cármen Lúcia não enfrentou uma sabatina propriamente dita. Foram 2 horas e 10 minutos apenas de muitos elogios e espaço para que a candidata a ministra contasse detalhes de sua vida. Relatou uma das lições que recebeu do pai: “Não matar, não roubar, não mentir e não ter preguiça”. E mostrou no Senado uma das suas principais capacidades. Cármen Lúcia é uma exímia frasista. “Quando me encontrarem, nem morta, ninguém vai me ver de braços cruzados, diante do que tem sido a minha luta para que a gente tenha um Brasil justo”, disse na sabatina.

Foi aprovada por unanimidade. No dia 21 de junho de 2006, foi empossada ministra do Supremo Tribunal Federal. A segunda mulher a ocupar uma vaga no tribunal.

Capítulo 2

A coisa pública

Os gestos

Alguns dos pequenos gestos da ministra Cármen Lúcia indicam como ela lida – ou busca lidar – com a “coisa pública”.

Cármen Lúcia usa seu carro particular para trabalhar. E ela mesmo o dirige. Dispensa carro oficial e motorista. Recusa-se a receber diárias se viajar em compromissos oficiais. A página da transparência do Supremo mostra alguns exemplos disso. No dia 26 de março de 2015, devolveu R$ 10.439,68 referentes às diárias que teria direito por uma viagem a Bruxelas (Bélgica).

Recentemente, Cármen Lúcia adotou a prática de fazer audiências com os advogados e com as partes dos processos que relata via internet. Uma das vantagens das audiências virtuais, de acordo com ela, é reduzir os custos dos processos para as partes.

O cuidado com a coisa pública foi expresso, por exemplo, no seu voto sobre a legalidade da resolução do CNJ que proibiu o nepotismo nos tribunais: “O traçado histórico brasileiro expõe a utilização dos espaços públicos pelos interesses privados, do que decorre, em grande parte – e que já haveria de ter sido extirpada há muito – a manutenção de atuações nepotistas no País.” Acrescentou: “A República veio reforçar todas as formas de ingresso no serviço público sem que o critério único do mérito atestado em concurso público – no qual se garante a efetividade do direito à igualdade – fosse regra incontrastável. Entretanto, parece que não há compreensão de que não há República sem repúblicos, nem há igualdade onde o personalismo prospera”.

Isso cria um desafio adicional para a ministra. Quando assumir o cargo, Cármen Lúcia vai se deparar com um orçamento curto, impactado pelos cortes necessários para sanear as contas públicas. Restrições que fizeram o Supremo diminuir drasticamente o número de terceirizados e a reduzir, inclusive, o aparato de segurança à disposição do Supremo.

Cármen Lúcia não tem perfil corporativista, característica que marcou a gestão de Ricardo Lewandowski. E dificilmente trabalhará, em tempos de crise econômica e fiscal, por reajuste salarial de servidores e de juízes. Pelo contrário. Em sessão administrativa, a ministra se manifestou contra o pagamento de auxílio-moradia para os juízes, algo que Lewandowski e o ministro Luiz Fux defenderam no Supremo.

Outro pequeno sinal de como pensa a ministra Cármen Lúcia. Ela não gosta de usar a palavra “Corte” para se referir ao tribunal. O verbete dá ideia de algo nobilístico, soberano. Também faz certas ressalvas ao uso do termo “excelência” com quem são tratados por advogados. De tanto serem chamados desta forma, diz a ministra, há quem acredite que seja realmente uma excelência.

Capítulo 3

As palavras

Frasista

A ministra Cármen Lúcia se notabilizou também por frases proferidas em seus votos. São mais do que argumentos jurídicos; são palavras que ganharam as páginas dos jornais por sintetizarem o que estava em julgamento.

“Cala boca já morreu. Quem disse foi a Constituição”. Assim a ministra marcou o julgamento da ação que questionava a necessidade de autorização prévia para a publicação de biografias. Processo julgado por unanimidade três anos depois de protocolado.

Quando o Supremo decretou a prisão preventiva do senador Delcídio do Amaral, a ministra Cármen Lúcia resumiu num parágrafo o histórico do governo do PT e dos escândalos de corrupção que atingiram as administrações Lula e Dilma.

“Na história recente de nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós brasileiros acreditou no mote de que a esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a ação penal 470 (mensalão) e descobrimos que o cinismo venceu a esperança. E agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. Quero avisar que o crime não vencerá a Justiça. A decepção não pode vencer a vontade de acertar no espaço público. Não se confunde imunidade com impunidade. A Constituição não permite a impunidade a quem quer que seja”, disse a ministra.

Em 2015, em meio às crises econômica e política, a ministra afirmou que reclamações não levavam a lugar nenhum. “Nós, brasileiros, precisamos assumir a ousadia que os canalhas têm”, afirmou a ministra durante uma palestra, conclamando os brasileiros a trabalharem para tirar o Brasil da crise.

Mulher

Primeira mulher a presidir um processo eleitoral no País (quando esteve no comando do TSE) e segunda mulher a integrar o Supremo, a ministra Cármen Lúcia se diz vítima do preconceito machista.

“Temos uma sociedade machista e há um preconceito enorme contra mulheres”, disse neste ano. “Podem não falar, mas o preconceito passa pelo olhar, pelo gesto, pela brincadeira, pela desmoralização, pela piada”, acrescentou.

As mulheres, diz a ministra Cármen Lúcia, precisam trabalhar mais que os homens para chegar ao mesmo patamar na carreira. Isso, afirma, aprendeu quando era criança.

“Quando eu era menina, questionava minha mãe porque estudava muito mais e meu irmão sempre recebia mais medalhas. Ela dizia: não reclama porque você é mulher e ainda é de uma geração que vai ter que trabalhar duas vezes pra chegar ao mesmo lugar. Estou com 60 anos e tenho que trabalhar duas vezes pra chegar ao mesmo lugar dos homens. Mas eu não reclamo porque eu quero que, quem vier depois de mim, tenha certeza de que trabalhei sim e com muito gosto porque sou de um país em que posso escolher a minha profissão, e tive a oportunidade de ser juíza constitucional porque trabalho com todo gosto”, argumentou.

Em mais de uma ocasião, o ministro Lewandowski pulou a ministra Cármen Lúcia na ordem de votação nos julgamentos do Supremo. Em quase todos estes casos, a ministra teve de chamar a atenção do presidente.

Numa das vezes, Lewandowski disse que a ministra era tão discreta que às vezes não a percebia. Publicamente, Cármen Lúcia não demonstrava o incômodo que revelava depois nos bastidores com os esquecimentos de Lewandowski. A ministra não acreditava em mero descuido. Via na atitude do colega algo deliberado.

Capítulo 4

Causos

Críticos

Em dez anos de Supremo, a ministra Cármen Lúcia também recebeu críticas e restrições, seja por seus colegas (da composição atual e das anteriores), seja por advogados. Alguns desses críticos a descrevem como uma pessoa sinuosa e insegura.

A ministra Cármen Lúcia é notória pelos causos que conta, ou em suas palestras, ou nas sessões do Supremo, ou nas conversas privadas. E são igualmente numerosos os casos – ou causos – contados por ministros e advogados sobre Cármen Lúcia.

Todos eles, com mais ou menos detalhes, mais ou menos ácidos, revelam um certo pé atrás em relação à ministra, uma interrogação sobre o comportamento dela no comando do Supremo e sobre a segurança que precisará ter para cumprir a missão de presidir o tribunal e levar adiante reformas que ela mesma sabe ser necessárias.

Questionamentos que só poderão ser respondidos ao final dos dois anos de mandato, críticas que poderão ser anuladas ou minoradas quando em 2018 ela for substituída na Presidência do Supremo pelo ministro Dias Toffoli.

A nova presidente do Supremo terá disposição para enfrentar temas polêmicos? Aceitará, quando preciso, indispor-se com a opinião pública? Conseguirá debelar este certo clima de desconfiança interno? Terá determinação para recompor o CNJ, mesmo que isso desagrade boa parte da magistratura?

Dois processos relatados pela ministra Cármen Lúcia indicam por que alguns ministros e advogados nutrem dúvidas sobre como será a postura da nova presidente do Supremo:

a) Este primeiro caso aconteceu em plenário. Em outubro de 2010, a ministra Cármen Lúcia levou a plenário o julgamento da Ação Penal 396 em que foi condenado a mais de 13 anos de reclusão o deputado Natan Donadon. A condenação teve grande destaque pois seria a primeira vez que um parlamentar seria preso sob a vigência da Constituição de 1988. A decisão era vista como uma inflexão na cultura brasileira da impunidade, especialmente quando em julgamento o desvio  de recursos públicos.

A data exata da condenação: 28 de outubro de 2010. O acórdão da decisão só foi publicado seis meses depois do julgamento. Enquanto isso, Natan Donadon permanecia solto. Em maio de 2011, a defesa embargou a condenação. A ministra Cármen Lúcia só liberou o recurso para julgamento um ano depois da condenação. Mas em seguida percebeu um erro e pediu a retirada do processo. Donadon permanecia solto.

Publicamente, a ministra deixou consignado que solicitou à Presidência do Supremo que desse prioridade ao julgamento. No entanto, em reservado, a realidade era outra. E diante de tantos pedidos seguidos para que o processo fosse retirado da pauta, o então presidente do Supremo, ministro Carlos Ayres Britto, exigiu que a ministra Cármen Lúcia dissesse isso em plenário, publicamente e diante da TV Justiça. Foi o que ocorreu.

Somente em junho de 2013, quase três anos depois da condenação, o processo que estava sob os cuidados da ministra Cármen Lúcia chegou ao fim e a pena foi finalmente cumprida.

b) Exemplo semelhante ocorre neste ano no julgamento do senador Ivo Cassol, processo também relatado pela ministra Cármen Lúcia. Condenado em agosto de 2013 a 4 anos de detenção, Cassol permanece solto e no pleno exercício do mandato de senador. A razão é a demora no julgamento dos recurso.

O acórdão do julgamento foi publicado nove meses depois da condenação. Só então a defesa recorreu da decisão – em maio. Menos de quatro meses depois, estes primeiros embargos de declaração foram julgados e rejeitados. A defesa opôs novos embargos ainda em dezembro de 2014.

Em várias oportunidades, no ano de 2015, jornalistas perguntaram à ministra quando ela levaria a julgamento os últimos recursos do senador. Sem a apreciação destes recursos, não seria possível iniciar a execução da pena. Cármen Lúcia os deixava sem resposta.

Somente em abril deste ano os recursos foram levados a plenário. O julgamento, porem, foi interrompido por pedido de vista. Cassol, condenado por fraudar licitações, permanence livre e no exercício pleno do mandato.

Capítulo 5

Troca de mensagens

Mensalão

Quando chegou ao tribunal, a ministra Cármen Lúcia compôs com os ministros Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski um pequeno grupo, unido por afinidade e, acima de tudo, pelo que encontraram no tribunal. A aproximação era uma reação ao grupo no Supremo, integrado, por exemplo, pelos ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluso.

Foi um diálogo com o ministro Lewandowski que marcou negativamente o julgamento da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra os políticos e agentes envolvidos no esquema do mensalão. A conversa sobre detalhes do processo e sobre a avaliações que faziam dos colegas foi captada pelo jornal O Globo e divulgada em meio ao julgamento.

Os diálogos mostram, antes de mais nada, que os dois vinham discutindo em reservado os votos que iam proferir. Por mais que isso tenha sido visto com ressalvas pela imprensa e pela opinião pública, conversas deste tipo são naturais no Supremo e em todos os tribunais.

Foram os trechos em que falam dos colegas que geraram mais forte incômodo na Corte. Levantam dúvidas sobre a real motivação do voto do ministro Eros Grau (tratado como Cupido) e afirmam que Joaquim Barbosa daria um salto social depois do julgamento.

Assim como Lewandowski, Cármen Lúcia ressaltava que a Procuradoria-Geral da República descrevia os fatos e buscava amarrar as situações para suprir as lacunas que a investigação deixou.

A troca de mensagens, admitiu posteriormente o ministro Joaquim Barbosa, gerou efeitos sobre o julgamento, facilitando o recebimento da denúncia. Ninguém queria se expor.

Os diálogos geraram também consequências para a imprensa. O Supremo restringiu o acesso de fotógrafos ao plenário. Os profissionais não poderiam tirar fotos de ângulos em que seria possível retratar a tela dos computadores dos ministros. E, atualmente, os fotógrafos não passam mais que dez minutos dentro do plenário. Em seguida, são levados para fora do plenário pela segurança.

Capítulo 6

Presidente ou presidenta?

Dilma Rousseff

A frase proferida pela ministra Cármen Lúcia logo depois de eleita presidente do Supremo pode levar a conclusões imprecisas sobre a realidade.

Diante da pergunta sobre se seria chamada de presidente ou de presidenta, Cármen Lúcia afirmou: “Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa. Eu acho que o cargo é de presidente, não é não?”.

Alguns quiseram ver a declaração irônica da ministra do Supremo como uma crítica velada à presidente afastada Dilma Rousseff. Desconhecem, porém, que Dilma Rousseff e Cármen Lúcia mantiveram relação próxima nos últimos anos.

No ano passado, a ministra teve duas audiências com a presidente da República em meio à crise política. Encontros que constam da agenda oficial do Planalto.

Em fevereiro do ano passado, a presidente da República convidou a ministra do Supremo para viajar com ela no avião presidencial numa visita a Mato Grosso do Sul para inaugurar a Casa da Mulher Brasileira.

“Queria dirigir um cumprimento todo especial à ministra vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia. A Cármen Lúcia está liderando um movimento, um mutirão fundamental na área da Justiça. E aí eu quero cumprimentar também todas as desembargadoras e juízas aqui presentes. O movimento Justiça [pela] Paz em Casa, que é liderado pela aqui pela nossa Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal, é um movimento que só traz garantia para as mulheres, que o Estado brasileiro está ao lado delas”, afirmou a presidente Dilma Rousseff na cerimônia em que sancionou a lei que tipificou o feminicídio.

Elogiar a ministra Cármen Lúcia pela suposta oposição à presidente da República é, acima de tudo, desconhecer os fatos.

Contraponto

De acordo com ministros do Supremo, a ministra Cármen Lúcia está disposta a fazer um contraponto à gestão do ministro Ricardo Lewandowski.

A ministra teria mais liberdade para desfazer a política corporativa de Lewandowski e consertar os erros por ele cometidos se o ministro se aposentasse ao deixar a Presidência? Possivelmente sim.

Certamente por isso, assessores de Lewandowski levantam suspeitas sobre a origem das notas publicadas na imprensa que informam que o ministro deixaria o Supremo para ocupar uma embaixada do Brasil no exterior.

Independentemente de suspeitas e questões menores, a ministra terá pela frente uma árdua missão: recompor o Conselho Nacional de Justiça.

Lewandowski sempre foi um crítico do CNJ. Fazia restrições a conselheiros que se valiam do órgão para promoção pessoal e sempre criticou aqueles que quiseram, na visão dele, transformar o Conselho numa “delegacia de polícia”, como se a função de punir magistrados fosse mais importante que a missão de pensar o planejamento dos tribunais. Afora essas críticas, o ministro enxergava o órgão de fiscalização da magistratura como “casa dos magistrados”.

Cármen Lúcia terá pela frente o desafio de recolocar o CNJ no “devido lugar”, conforme estabelece a Constituição. E terá de fazê-lo junto a uma composição articulada pelo ministro Ricardo Lewandowski.

A resolução de Cármen Lúcia é tamanha em se contrapor à política de Lewandowski que um dos seus colegas diz que mesmo as audiências de custódia não estão livres de alterações.

Capítulo 7

Uma incógnita

O que esperar?

A eleição do presidente do Supremo é absolutamente previsível. O ministro mais antigo da Corte que ainda não foi presidente será eleito com 10 votos. É sempre assim.

É verdade também que o voto do presidente vale tanto quanto o voto de cada um dos ministros. E que o Supremo deveria ter características mais parlamentaristas do que presidencialistas. Afinal, o presidente faz a representação do tribunal por delegação dos colegas.

É igualmente evidente que dois anos de mandato são um período curto. E que a troca de comando gera descontinuidade nas políticas do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça.

Mas por que não cobrar dos presidentes do Supremo uma espécie de programa de gestão? O que farão para acelerar os julgamentos e reduzir o enorme estoque de processos pendentes? É a favor do foro privilegiado? Vai trabalhar, como presidente do Supremo, para extingui-lo? O que farão para ampliar a transparência do Poder Judiciário? E o pagamento de penduricalhos para magistrados?

Os ministros do Supremo sabem exatamente quando serão eleitos e quando assumirão a Presidência do tribunal. Ninguém é pego de surpresa. Somente a sociedade descobre, em meio ao mandato, quem é, como pensa e o que fará o presidente do Supremo. É tarde demais para críticas e cobranças.

Hoje, com base no que já disse, nos seus pequenos, mas significativos gestos, nos votos que proferiu e no seu comportamento, é compreensível que boa parte da opinião pública e parcela da imprensa esteja otimista em relação à gestão da ministra Cármen Lúcia. Ainda mais quando a base de comparação são os dois anos do mandato de Ricardo Lewandowski.

É de se esperar que a ministra trabalhe pela transparência da administração e dos gastos do judiciário. É de se esperar que coloque em prática o discurso que faz sobre a República, sobre o uso correto da coisa pública. É também previsível que Cármen Lúcia tente desviar a Corte de questões políticas e dos conflitos travados no Congresso. Certamente, terá como meta ampliar a produtividade do Supremo e reduzir o acervo de processos.

Buscará reconstruir e reinstitucionalizar o Conselho Nacional de Justiça. Terá preocupação especial com sistema carcerário, podendo retomar as inspeções do CNJ nos presídios – uma demanda que já foi feita ao Supremo pelo governo Michel Temer. E, sem dúvida, não trabalhará diretamente pela aprovação do novo Estatuto da Magistratura, que teve à frente o ministro Lewandowski.

Os desafios que têm pela frente a ministra Cármen Lúcia são grandes e já conhecidos. O que todos esperam, dentro e fora do tribunal, é que ela tenha com seus atos de gestão a mesma destreza que tem com as palavras.

Capítulo 8

10 grandes casos

Carmen Lúcia por seus votos

Como a ministra Cármen Lúcia se posicionou em dez casos importantes:

Biografias não-autorizadas (ADI 4.815) – a publicação de livros não depende da autorização prévia do biografado ou de seus familiares.

“Na ciranda de roda da minha infância, alguém ficava no centro gritando: ‘cala a boca já morreu, quem manda em minha boca sou eu’. O tempo ensinou-me que era uma musiquinha, não uma realidade. Tentar calar o outro é uma constante. Mas na vida aprendi que quem, por direito, não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de qualquer direito.”

Lei da Ficha Limpa (ADI 4.578) – a ministra votou pela constitucionalidade da lei.

“O objetivo da norma constitucional é assegurar a proteção ética do processo eleitoral, garantindo-se à sociedade o direito de votar em quem o sistema estabeleça ofereça as condições ético-jurídicas de exercer o mandato que lhe venha a ser conferido”.

Lei Maria da Penha (ADC 19)– o Ministério Público pode dar início a ações penais sem necessidade de representação da vítima, no âmbito da Lei Maria da Penha.

“Tenho absoluta convicção ou convencimento, pelo menos, de que um homem branco, médio, ocidental, jamais poderá escrever ou pensar a igualdade ou a desigualdade como uma de nós, porque o preconceito passa pelo e no olhar. Uma de nós, ainda que dispondo de um cargo, titularizando um cargo, que nos dá, às vezes, até a necessidade de uso de um carro oficial, vê o carro de quem está ao lado, um olhar diferenciado do que se ali estivesse sentado um homem. Porque, na cabeça daquele que passa, nós mulheres estamos usurpando a posição de um homem, e isso é a média, não de uma pessoa que não tenha tido a oportunidade de compreender o mundo em que vivemos…”

Mensalão (AP 470) – Votou contra a possibilidade de novo julgamento para condenados que tiveram quatro votos pela absolvição. Absolveu José Dirceu e outros acusados do crime de formação de quadrilha.

“Acho estranho e muito grave que alguém diga, com toda tranquilidade, que ‘ora, houve caixa dois’ na tribuna do Tribunal Supremo do País como se fosse algo banal, tranquilo, que se afirma com singeleza. Caixa dois é crime; caixa dois é uma agressão à sociedade brasileira; caixa dois compromete, mesmo que tivesse sido isso, ou só isso; e isso não é só; e isso não é pouco! E dizer isto da tribuna do Supremo Tribunal, ou perante qualquer juiz, parece-me, realmente, grave, porque fica parecendo que ilícito no Brasil pode ser praticado, confessado e tudo bem. E não é tudo bem, tudo bem é estar num País, num Estado de Direito, quando todo mundo cumpre a lei”.

Execução provisória da pena (HC 126.292) – votou pela possibilidade de executar a pena imposta a um condenado mesmo antes do trânsito em julgado da ação penal.

“Eu, senhor presidente, fiquei vencida nas outras ocasiões exatamente no sentido do que é o voto agora do ministro-relator, ou seja, considerei que a interpretação da Constituição no sentido de que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória haveria de ser lido e interpretado no sentido de que ninguém poderá ser considerado culpado e não condenado. Quer dizer, condenado ele está, mas o que a Constituição diz é que a defesa de culpa ou o carimbo da culpa, com consequências para além do Direito Penal, inclusive com base na sentença penal transitada, é uma coisa; quer dizer, algo é dizer que ninguém será considerado culpado, e esta é a presunção de inocência que foi discutida na Constituinte”.

Impeachment (ADPF 378) – votou pela aplicação do rito do caso Collor para o impeachment da presidente Dilma Rousseff, desconstituindo parte do processo iniciado pelo deputado Eduardo Cunha. Manifestou-se também pela tese de que o afastamento do presidente da República só ocorre depois de decisão do Senado.

“Sem responsabilidade não há democracia, sem democracia, não há Justiça, e sem Justiça, não há dignidade, menos ainda, cidadania. Quando se põe em pauta um julgamento como este, do impeachment de um Presidente, na estrita legalidade, tal como o Ministro Barroso enfatizou, parti dos três pilares da dinâmica democrática estatal, que são a responsabilidade, sem a qual regrediríamos a um período em que o rei não erra; a legalidade, sem a qual o Estado de Direito seria retórica, permitindo que qualquer pessoa pudesse mandar a seu bel prazer; e a segurança jurídica, sem a qual viver com o outro fica extremamente difícil, tornando-se uma experiência desconfortável de sustos permanentes”.

União homoafetiva (ADPF 132) – votou favoravelmente ao reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.

“Contra todas as formas de preconceito, contra quem quer que seja, há o direito constitucional. E este é um tribunal que tem a função precípua de defender e garantir os direitos constitucionais. E, reitere-se, todas as formas de preconceito merecem repúdio de todas as pessoas que se comprometam com a justiça, com a democracia, mais ainda os juízes do Estado Democrático de Direito”.

Aborto de fetos anencéfalos (ADPF 54) – a ministra votou no sentido de permitir que mulheres grávidas de fetos anencefálicos interrompam a gravidez.

“Quando o berço se transforma num pequeno esquife, a vida se entorta, porque a mulher que teria que estar carregando aquele pequeno berço, para preservar aquela vida com todo cuidado, se vê às voltas com algo com o qual ele tem que lidar de uma forma muito solitárias, às vezes, e sempre com o que era o imponderável da vida: a possibilidade de morte antes mesmo da vida. Talvez esse seja o dado que mais toca a dignidade do ser humano”.

Importação de pneus (ADPF 101) – relatora do processo, a ministra Cármen Lúcia convocou a primeira audiência pública da história do STF e votou a favor da constitucionalidade da lei que proibiu a importação de pneus usados.

“Os preceitos fundamentais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado são constitucionalmente protegidos e estão a ser descumpridos por decisões que, ao garantir a importação de pneus usados ou remoldados, afronta aqueles direitos fundamentais”.

Células tronco embrionárias (ADI 3.510) – a ministra julgou que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida.

“Aqui, a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião. Juiz, no foro, cultua o Direito. Como diria Pontes de Miranda, assim é porque o Direito assim quer e determina. O Estado é laico, a sociedade é plural, a ciência é neutra e o direito imparcial (…)A Constituição garante não apenas o direito à vida, mas assegura a liberdade para que o ser humano dela disponha; liberdade para se dar ao viver digno. Não se há falar apenas em dignidade da vida para a célula- tronco embrionária, substância humana que, no caso em foco, não será transformada em vida, sem igual resguardo e respeito àquele princípio aos que buscam, precisam e contam com novos saberes, legítimos saberes para a possibilidade de melhor viver ou até mesmo de apenas viver. Possibilitar que alguém tenha esperança e possa lutar para viver compõe a dignidade da vida daquele que se compromete com o princípio em sua largueza maior, com a existência digna para a espécie humana”.