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Pelo roteiro da Mãos Limpas, Lava Jato enfrenta agora suas maiores ameaças

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Capítulo 1

OS CICLOS

A Operação Mãos Limpas foi para a Itália no início dos anos 90 o que a Operação Lava Jato representa atualmente para o Brasil: uma hecatombe política e um bastião de esperança. As duas investigações, dedicadas a desvendar complexos mecanismos de corrupção que assaltaram os cofres públicos, seguem ciclos impressionantemente iguais. A investida italiana, num primeiro momento, deslegitimou o sistema político do país. Anos depois, com uma campanha de comunicação estruturada contra a operação e o declínio do apoio popular ao trabalho da força tarefa do caso, a investigação perdeu força e a classe política conseguiu se reorganizar e aprovar leis que dificultaram o enfrentamento do crime. No Brasil, vive-se o primeiro momento, ao longo dos últimos dois anos, em que a opinião pública questiona a conduta do juiz federal Sérgio Moro, responsável pelos processos decorrentes da Lava Jato. Se o desfecho e o legado das operações será igual, só o futuro dirá.

Capítulo 2

O INÍCIO

Escuta ambiental

Em 17 de fevereiro de 1992, o empresário Luca Magni, dono de um pequeno negócio em Monza, cidade ao norte de Milão, na Itália, entrou no escritório do político Mario Chiesa, presidente do asilo Pio Albergo Trivuzio, para lhe entregar 14 milhões de liras italianas. A quantia representava os 10% de “contrapartida” devida por Magni a Chiesa, do Partido Socialista Italiano (PSI), para manter um contrato de prestação de serviços de limpeza do asilo no valor de 140 milhões de liras.

Munido de uma caneta equipada com um gravador, escondida no bolso do paletó, e de uma pequena câmera na mão, disfarçada pela alça da pasta que carregava consigo, Magni documentou o flagrante da corrupção, seguido de uma quase confissão de culpa de Chiesa. Quando os policiais entraram para levar o político, ele pediu para ir ao banheiro e, lá, despejou no vaso sanitário a propina que havia recolhido de outro empresário momentos antes do flagrante – e que ainda permanecia em seus bolsos. O dinheiro entupiu o vaso.

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O caso chegou ao Ministério Público italiano como uma denúncia trivial de corrupção: um pequeno empresário queria entregar um político do baixo clero que o extorquia. O procurador Antonio Di Pietro encarregou-se de investigá-la. Levantou dados sobre o alvo e preparou o flagrante.

Dias depois, segundo pesquisadores da operação, o advogado de Chiesa chegou à prisão levando a ele um recado de Di Pietro. “Diga ao seu cliente que a água mineral acabou”, afirmou o procurador. O político entendeu a mensagem: haviam descoberto suas duas contas bancárias secretas na Suíça, Levissima e Fiuggi.

Quando o escândalo ganhou as páginas dos jornais, o secretário do PSI, Bettino Craxi, ex-primeiro ministro da Itália (1983 e 1987), saiu em defesa do partido e declarou à imprensa que Chiesa era apenas um “ladrãozinho”, um caso isolado.

Confrontado com o trabalho diligente do procurador e com o que considerou um abandono infame do partido, Chiesa tomou uma decisão que transformou a Itália para sempre. Poucas semanas depois de ser preso, ele fechou um acordo de delação premiada com as autoridades e revelou, citando nomes, um extenso esquema de subornos no país, que envolvia praticamente todos os partidos e contratos públicos.

O que se seguiu foi a maior investigação de corrupção da história da Itália e uma das mais famosas do mundo – a Mani Pulite ou, em português, a Operação Mãos Limpas.

 

A Lava Jato

A Operação Lava Jato também começou a partir da investigação de um caso aparentemente de menor importância. A investigação teve origem em 2004, com a apuração de um esquema de lavagem de dinheiro envolvendo o ex-deputado federal José Janene, duas empresas com sede no Paraná (CSA Project Financeira e Dunel Indústria e Comércio), o doleiro Carlos Habib Chater e pessoas físicas e jurídicas a ele vinculadas. A partir de Chater, os investigadores chegaram a outros doleiros, como Alberto Youssef, delator condenado na década de 90 por envolvimento com o envio ilegal de recursos ao exterior por meio das contas CC5 do Banco Estadual do Paraná, o Banestado.

A partir de Youssef, os investigadores chegaram ao ex-diretor de abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa. Presos  em março de 2014, eles revelaram às autoridades a existência de um megaesquema de corrupção no governo federal, em especial na Petrobras, que incluía crimes contra a administração pública e de formação de cartel em licitações envolvendo as maiores empreiteiras do país.

 

Capítulo 3

A ESTRATÉGIA

Delação premiada

O avanço das investigações foi mantido em sigilo antes e durante as eleições gerais na Itália, marcadas para abril de 1992. Mas o escândalo envolvendo Chiesa já provocava certo impacto na política: houve um aumento nas abstenções (o voto não é obrigatório lá) e, com algumas exceções, todos os partidos perderam votos.

Logo após as eleições, o tamanho da Mani Pulite começou a aparecer. As investigações antes restritas a Milão (foto) – que passou a ser chamada de Tangentopolis, algo como Propinolândia numa tradução livre para o português – expandiram-se para muitas outras cidades da Itália e diversos empresários e políticos foram presos preventivamente.

A delação de Mario Chiesa revelou que, desde 1979 – portanto, mais de uma década antes da Mani Pulite –, o asilo Pio Albergo Trivulzio era usado para arrecadar dinheiro para o PSI. Revelou também fraudes durante a construção do metrô de Milão e superfaturamento nas obras de reforma dos estádios de futebol para a realização da Copa do Mundo de 1990, realizada na Itália. Ao citar nomes, Chiesa expôs um modelo de corrupção sistêmico e provocou um efeito dominó, levando outros envolvidos a também fechar acordos de delação premiada com os procuradores que investigavam o caso.

A estratégia levada a cabo pela força-tarefa da Mani Pulite teve como principal ferramenta de trabalho a delação premiada. De acordo com Antonio Di Pietro, a operação só foi possível porque conseguiu transpor o pacto de silêncio vigente entre corruptores e corrompidos – ou seja, entre os empresários e executivos que pagavam propinas para obter contratos públicos e os políticos e funcionários públicos que as recebiam.

Segundo o promotor, diante da possibilidade de serem processados por fraudes em balanços e corrupção – crimes cujas penas são de cinco anos de prisão cada um –,  muitos executivos preferiam relatar as razões que os levaram a pagar propinas e revelar os nomes de quem as recebia. “Os políticos, por sua vez, diante da possibilidade de serem acusados também de extorsão, cuja pena é de dez anos de prisão, muitas vezes preferiram admitir crimes de penalidade menor – como o financiamento ilegal de partidos políticos, punido com pena de até cinco anos de prisão”, disse Di Pietro em entrevista ao JOTA. “Desta forma conseguimos colocar um corrupto contra o outro.”

A delação premiada, baseada no modelo do “plea bargaining” americano, já era um instrumento presente na legislação italiana antes da Operação Mãos Limpas, e foi utilizada inclusive no combate à Cosa Nostra, a máfia siciliana. Em 1984, o mafioso Tommaso Buscetta, envolvido em inúmeros crimes durante as décadas anteriores, foi extraditado do Brasil, onde vivia foragido, de volta para a Itália. Depois de uma fracassada tentativa de suicídio no trajeto de avião, resolveu colaborar com os procuradores Vincenzo Geraci e Giovanni Falcone – este último assassinado pela Cosa Nostra quando a Mani Pulite ainda dava seus primeiros passos. “Mas, até a Mani Pulite, ainda não havia sido possível quebrar adequadamente o pacto de silêncio”, avalia Di Pietro.

Um elemento adicional para o sucesso da estratégia foi uma alteração no Código de Processo Penal italiano ocorrida em 1988. A reforma concentrou a coordenação das investigações criminais nas mãos dos procuradores e acabou com o sigilo após o suspeito ter conhecimento de que estava sendo investigado. De acordo com o procurador Piercamillo Davigo, que também integrou a força-tarefa da Mãos Limpas, até então os atos relativos a investigações por crimes de corrupção eram secretos até a sentença de instrução, quando o investigado passava a ser réu em uma ação penal. Com a lei, a quebra no sigilo das investigações passou a ser possível no momento em que o suspeito era informado sobre o caso.

Em artigo escrito em 2004, o juiz federal Sérgio Moro, responsável pelas investigações da Operação Lava Jato e um estudioso da operação italiana, afirma que na Itália os responsáveis pelas investigações fizeram largo uso da imprensa. “A investigação da Mani Pulite vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no ‘L’Expresso’, no ‘La Republica’ e em outros jornais e revistas simpatizantes”, afirmou o magistrado em seu texto. Segundo ele, o constante fluxo de informações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva. “A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações”, escreveu Moro.

Um terceiro instrumento utilizado pelas autoridades italianas foi a prisão preventiva, que gerou imensa polêmica na Itália e foi amplamente contestada pelos acusados, especialmente pela classe política. De um lado, procuradores argumentavam que as prisões preventivas não tinham o objetivo de pressionar os investigados a delatar, mas de cessar a prática do crime e evitar que houvesse destruição de provas. De outro, acusados sustentavam que se prendia preventivamente para forçar o investigado a fazer a delação.

“A estratégia de investigação adotada desde o início do inquérito submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão”, escreveu Moro em 2004. “Além do mais, havia a disseminação de informações sobre uma corrente de confissões ocorrendo atrás das portas fechadas dos gabinetes dos magistrados”, afirmou o juiz.

Apesar de estar inserida na estratégia da Mani Pulite, a prisão preventiva, segundo os procuradores que atuaram no caso, seguia estritamente as regras da lei. “De acordo com a lei italiana, a prisão cautelar pode ocorrer diante de grave indício de culpa, da possibilidade de destruição de provas ou de troca de informações entre os acusados, e ainda diante do risco de fuga ou da repetição dos crimes”, explica o procurador Piercamillo Davigo.

Davigo cita o caso do mafioso Tommaso Buscetta para exemplificar a necessidade de prisão preventiva. “Ninguém pode dizer que ele foi preso para delatar. Ele foi preso porque era um mafioso, e foi solto porque deixou de ser ao confessar”, argumenta. “É evidente que, se o suspeito revela seus crimes, não há mais necessidade de prisão cautelar”, sustenta.

A prisão preventiva era um incentivo à delação por dois motivos: porque, na prática, o preso trocava a colaboração pela liberdade e porque impedia a troca de informações sobre o que estava sendo delatado e quem mais estava abrindo o bico. Era quase uma competição: se um demorar a falar, outro pode abrir o jogo antes e o primeiro perde o benefício.

O xadrez da Mani Pulite provocou uma enorme instabilidade no sistema de corrupção mantido entre empresários e políticos e no pacto de silêncio que imperava até então. O temor dos corruptos era tanto que, em determinado momento, um político, ao receber dois policiais em casa, confessou imediatamente seus crimes, sem saber que eles haviam batido à sua porta apenas para notificar uma multa. “As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação Mani Pulite”, concluiu Sérgio Moro em seu estudo.

Por fim, a cooperação jurídica internacional foi um quarto instrumento indispensável para os procuradores da Mãos Limpas. Uma convenção europeia de combate à lavagem de dinheiro havia entrado em vigor pouco antes do início das investigações, facilitando a troca de informações entre os países, especialmente referentes a contas bancárias mantidas por investigados no exterior.

O pesquisador Alberto Vannucci, professor de ciência política da Universidade de Pisa, que estuda os impactos da operação desde 1994 e já escreveu diversos livros e trabalhos acadêmicos sobre o assunto, afirma que não houve nenhuma grande inovação em relação às técnicas utilizadas pelos procuradores nas investigações. “A principal inovação da Mani Pulite foi a habilidade de conseguir colocar na cadeia políticos e empresários acusados de crimes do colarinho branco”, diz. “Isso já havia ocorrido antes, mas as prisões duravam apenas poucos dias.”

Segundo Vannucci, o que a Mani Pulite soube fazer muito bem foi explorar o momento político e econômico pelo qual passava a Itália, com uma forte crise econômica que levou a população a perceber o custo da corrupção, que não poderia mais ser tolerada. “Os procuradores simplesmente usaram, com muita habilidade, os instrumentos que já existiam”, afirma.

O pesquisador afirma que o momento político e econômico da Itália foi essencial para que a Mãos Limpas avançasse. Há, segundo ele, uma forte correlação entre crises econômicas e escândalos de corrupção: quando há uma crise, os custos da corrupção passam a se tornar importantes, pois há uma restrição de recursos. E quando os procuradores receberam apoio da opinião pública, tornou-se mais fácil conseguir informações e avançar nas investigações. “Os políticos pegos não puderam contar com o apoio de seus partidos, pois havia uma pressão da opinião pública em torno da Mani Pulite”, diz.

 

A Lava Jato

Assim como na Itália, a Operação Lava Jato faz uso constante de mecanismos como a delação premiada, a prisão preventiva e a cooperação internacional. Em dois anos, foram firmados 49 acordos de colaboração, sendo cinco com pessoas jurídicas (acordos de leniência) e 44 com pessoas físicas. Cerca de dois terços dos colaboradores estavam soltos quando fecharam acordo, informa a força-tarefa da Lava Jato. As prisões preventivas, da mesma forma como na Itália, foram e ainda são amplamente contestadas pelos advogados dos investigados, que argumentam que elas ocorrem apenas para pressioná-los a colaborar.

A Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850), de 2013, impulsionou as investigações ao prever regras para a delação premiada, que, embora já existente no ordenamento jurídico brasileiro, ainda gerava insegurança jurídica pela ausência de regras claras. 

No Brasil, a publicidade dos atos da Lava Jato tem sido essencial para que o assunto continue a despertar o interesse da opinião pública. Desde o início da operação, a força-tarefa do Ministério Público Federal e a Justiça do Paraná divulgam sistematicamente os resultados da operação e todas as decisões relacionadas a ela, inclusive os conteúdos das delações feitas pelos investigados.

A crise econômica completa a semelhança nos cenários brasileiro e italiano durante as duas investigações.

Capítulo 4

AS INVESTIGAÇÕES

Financiamento eleitoral

Ao longo das investigações, que se estenderam por toda a Itália, parecia claro que nenhum setor da política local ou nacional ficaria imune ao trabalho da força tarefa (na foto acima, da esquerda para a direita, estão Piercamillo Davigo, Gherardo Colombo, Gerardo D’Ambrosio e Antonio Di Pietro). As apurações avançaram por diversas frentes e envolviam a direção dos partidos mais importantes da Itália na época, além dos políticos locais, como vereadores e secretários municipais e regionais.

Bettino Craxi, o ex-primeiro ministro que havia chamado Mario Chiesa de “ladrãozinho”, tornou-se um dos principais alvos da Mani Pulite. Após ter sido delatado por Chiesa, Craxi foi traído por um de seus principais aliados, o então ministro da Justiça Claudio Martelli, que, ainda em 1992, apenas oito meses após o início das investigações, sugeriu a ele que abandonasse o poder. Mais tarde, o próprio Martelli foi delatado e renunciou ao cargo.

Craxi também foi delatado pelo empreiteiro Salvatore Ligresti, que à época detinha quase 70% das áreas edificáveis de Milão e era sócio de empresas como a Pirelli, a Ferruzzi e a Olivetti. Ligresti foi preso preventivamente e, após ter negado um recurso em que pedia para responder em liberdade, fechou um acordo de delação premiada e passou a cumprir prisão domiciliar, após 126 dias na cadeia. Entre outras acusações, o empreiteiro afirmou ter repassado o equivalente a US$ 500 mil em dinheiro a Craxi. Segundo ele, as relações ilícitas entre suas empresas e o PSI ocorriam desde 1987.

Ao fim de 1992, diante de tantas delações, a Mani Pulite precisava investigar o ex-primeiro ministro. Mas o trabalho só seria possível  autorização da Câmara dos Deputados, que negou o pedido em abril de 1993 . No mesmo dia, Craxi admitiu o recebimento de recursos ilícitos em um discurso público, justificando que aquilo era “apenas” caixa dois eleitoral. Após um escândalo na década de 70, pelo qual se descobriu que a estatal de petróleo italiana financiava os partidos ilegalmente, desviando recursos públicos, a Itália vetou o financiamento privado de campanhas eleitorais e estabeleceu o financiamento público dos partidos políticos. Craxi, em seu discurso, culpou a mudança legislativa pelo caixa dois descoberto pela Mani Pulite e acusou de hipócritas os políticos e partidos que defendiam as investigações, mas utilizavam os mesmos recursos ilícitos para se eleger.

O veto dos parlamentares à investigação de Craxi foi dado por meio de uma votação secreta, levantando a suspeita de que mesmo os partidos que se colocavam em oposição ao PSI e em defesa da Mani Pulite haviam votado a favor do ex-primeiro-ministro. A reação da opinião pública foi imediata: estudantes foram às ruas e sedes do PSI foram atacadas. Partidos de menor porte da esquerda organizaram manifestações exigindo a dissolução do Parlamento italiano.

A força tarefa da Mãos Limpas recorreu ao tribunal constitucional da Itália com o argumento de que a Câmara dos Deputados havia praticado o que chamavam de interferência entre os poderes. Em agosto, o tribunal autorizou que os procuradores investigassem Craxi, que na época já havia renunciado ao cargo de secretário do PSI. O político, no entanto, nunca chegou a ser punido. Ele fugiu para a Tunísia e lá viveu exilado até sua morte, em 2000.

Embora Craxi tenha sido um dos principais alvos da Mani Pulite, esteve longe de ser o único. Na medida em que as investigações avançavam, mais políticos e empresas eram envolvidos. Em setembro de 1992, dezoito políticos e empresários foram presos apenas em uma região da Itália, a Calábria. No mesmo mês, em Abruzzo, em um único dia foram presos o governador e todos os secretários de governo.

A Mãos Limpas também revelou aos italianos histórias escabrosas como a do sangue contaminado. Em 1993 os procuradores se depararam com um caso de corrupção envolvendo profissionais de saúde de diversos níveis de governo pelo qual recebiam subornos de gigantes multinacionais do setor farmacêutico para permitir que elas comercializassem produtos sanguíneos infectados com HIV e hepatite. Centenas de pessoas que receberam transfusões de sangue foram contaminadas, episódio que revelava à sociedade o impacto direto da corrupção sobre a vida da população italiana.

A operação chegou também na ENI, a Ente Nazionale Idrocarburi, a estatal petroquímica italiana que teve seu ex-presidente, Gabriele Cagliari, preso em 1993. Cagliari se suicidou na prisão, deixando uma carta na qual acusou os procuradores de Milão de o manter na cadeia para conseguir sua confissão. O suicídio de Cagliari não foi um caso isolado. Entre 1992 e 1994, houve um total de 31 suicídios de investigados: onze em 1992, dez em 1993 e dez em 1994. O início das mortes aumentou a reação da classe política e empresarial contra a Mani Pulite, que já vinha ocorrendo, mas com menor repercussão.

 

A Lava Jato

O avanço das investigações e o efeito dominó provocado pelas delações premiadas feitas na Lava Jato fez com que a operação atingisse em cheio o PT, partido que governa o país há dez anos, partidos da base aliada e mesmo da oposição, além das maiores empreiteiras do país, como Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, UTC, entre muitas outras. 

A essência do esquema descoberta pela força-tarefa consiste no financiamento ilegal de partidos políticos e campanhas eleitorais por parte de empresas privadas, que, em troca, fecham contratos superfaturados e sem que haja competição entre os interessados, numa prática de formação de cartel. Com o passar dos meses, a Lava Jato passou a investigar suspeitas de favorecimento pessoal de empreiteiras ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se tornou um dos principais alvos dos procuradores da força tarefa formada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal no Paraná.

Capítulo 5

AS CONTESTAÇÕES

Marketing político

O primeiro ataque contundente à Mani Pulite veio de Bettino Craxi, que passou a divulgar ter um dossiê contra os procuradores. Com as notícias dos suicídios, políticos passaram a acusar os procuradores de assassinos e a opinião pública ficou chocada. Na esfera jurídica, o procurador Antonio Di Pietro foi acusado de injúria durante interrogatórios, de abuso de autoridade e de ter obtido confissões de pessoas algemadas. Di Pietro também foi acusado de estar em conluio com empresários e de receber propinas para deixá-los de fora das investigações.

Di Pietro passou a ser ameaçado de morte pela Falange Armata, uma organização terrorista ligada à máfia – na Itália, a corrupção foi frequentemente associada à máfia e as investigações da Mãos Limpas tangenciaram essas ligações em diversos momentos. Em 1993, a escolta do procurador sofreu um acidente de carro que, à época, foi considerado suspeito. No fim do mesmo ano, divulgou-se um boato de que Di Pietro estaria interrogando um membro da Cosa Nostra no âmbito da Mani Pulite, numa tentativa de endereçar à máfia uma reação contra o procurador. Ela, de fato, ocorreu: em uma declaração pública, o chefe da máfia siciliana afirmou que se Di Pietro pusesse os pés na Sicília, teria sua cabeça a prêmio.

O principal ataque à Mani Pulite, no entanto, ocorreu na era Berlusconi. Segundo o pesquisador Vannucci, assim que foi eleito primeiro ministro da Itália, em 1994, Silvio Berlusconi iniciou uma verdadeira cruzada contra a operação. Com uma robusta estratégia de mídia sustentada por seus veículos de comunicação, lançou suspeita contra os procuradores: “Estariam eles agindo a partir de uma orientação política? Seriam comunistas?” Essa desconfiança não existia em relação à operação até a ascenção de Berlusconi, especialmente porque todos os partidos políticos estavam envolvidos. Mas, para Berlusconi, lançar essa suspeita foi uma forma de se proteger do avanço da Mãos Limpas para cima dele mesmo.

“Fomos deslegitimados profissional e pessoalmente, com a cumplicidade de alguns jornais e redes de televisão, numa campanha implacável de desinformação”, conta Di Pietro (na foto acima). “Em particular, eu, pessoalmente, fui objeto de uma série de acusações infundadas e fui forçado a renunciar ao cargo de procurador para me defender”, disse ao JOTA. Entre as acusações estavam a determinação de prisões ilegais, de provocar o suicídio de pessoas presas, de destruição do sistema político, de envolvimento em atividades ilegais e até mesmo de ser um agente secreto da CIA, a agência de inteligência americana.

As acusações contra Di Pietro geraram investigações que apenas no fim de 1996 tiveram desfecho. O procurador e os demais membros da força-tarefa da Mani Pulite foram inocentados de todas as condutas atribuídas a eles. Em 1996, Di Pietro entrou para a política, mas foi eleito pela primeira apenas dez anos depois.

 

A Lava Jato

No Brasil, provavelmente em razão do pouco conhecimento da população em relação ao papel do Ministério Público, a figura central da Lava Jato, mais conhecida nas ruas, é o juiz Sérgio Moro – e não os procuradores da República Deltan Dallagnol, Carlos Fernando Lima, Diogo Castor, que integram a força tarefa da operação com mais alguns colegas de MPF.

Desde o início da operação, são frequentes as críticas feitas pela defesa dos investigados em relação ao uso das prisões preventivas como forma de forçá-los a delatar corruptos. Essas críticas, no entanto, não chegaram a ganhar fôlego, diante do apoio da maior parte da opinião pública às investigações. 

No começo deste ano, no entanto, duas medidas determinadas de Moro tornaram-se alvo de severas críticas. A primeira delas ocorreu no episódio de condução coercitiva do ex-presidente Lula para prestar depoimento à Polícia Federal no aeroporto de Congonhas, que gerou manifestações de rua contrárias e a favor da medida e gerou um debate sobre o uso do mecanismo. 

A segunda, também envolvendo Lula, ocorreu recentemente, quando Moro abriu o sigilo de um diálogo travado por telefone entre ele e a presidente Dilma Rousseff, interceptado pela Polícia Federal. O caso tornou-se polêmico por levantar suspeitas sobre a nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil em um momento em que circulavam boatos sobre uma possível decretação de prisão preventiva do ex-presidente. Moro foi criticado por levantar o sigilo de uma interceptação telefônica que gravou uma conversa da presidente, que tem foro privilegiado. O caso está sendo debatido no Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu a nomeação de Lula.

Além disso, alguns pedidos para que a conduta profissional de Moro seja alvo de uma investigação disciplinar já chegaram ao STF e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Segundo a revista Veja, uma empresa que monitora redes sociais entregou à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) pesquisa mostrando queda de 90% para 60% de aprovação às ações do juiz federal. Segundo o instituto Datafolha, subiu de 11% para 13% o percentual daqueles que reprovam o trabalho do magistrado. Também oscilou negativamente de 65% para 64% a aprovação ao desempenho do juiz.

Capítulo 6

OS RESULTADOS

Ao fim de dois anos, a Mani Pulite somava números impressionantes. Foram 2.993 mandados de prisão expedidos pela Justiça italiana e 6.059 pessoas investigadas: 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares – quatro deles já haviam ocupado o cargo de primeiro-ministro da Itália.

No balanço final, 4.520 pessoas tiveram seus casos avaliados pela Justiça, sendo que 1.320 foram transferidos para outros procuradores de fora da força tarefa da Mani Pulite. Ao todo, 3.200 pessoas foram levadas a julgamento, conforme o estudo “Accounting and the fight against corruption in Italian govenment procurement: a longitudial critical analysis (1992-2014)”, dos pesquisadores Massimo Sargiacomo, Luca Ianni, Antonio D’Andreamatteo e Stefania Servalli.

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Bettino Craxi presta depoimento

De acordo com Rodrigo Chemim, promotor do Ministério Público paranaense, professor e doutor em direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), um cálculo feito pelos pesquisadores italianos Antonella Beccaria e Gigi Marcucci indica que 1.254 pessoas foram condenadas definitivamente – ou seja, menos de 30% do total. Outras 430 pessoas foram absolvidas no mérito e 422 beneficiadas com a prescrição, com o restante não sendo processado. Segundo o estudo, o cálculo do pesquisador Gerardo Colombo, também integrante da força tarefa italiana, “é mais dramático, explicando que, se no início da investigação os processos resultavam numa média de 4% de absolvição, sem que, na prática, se viesse verificar a prescrição, ao final de todos os processos, os resultados apresentaram cerca de 20% de absolvições e 40% de prescrição”.

 

A Lava Jato

A Operação Lava Jato completou dois anos no dia 17 de março e ainda está em andamento – sua 27ª fase foi deflagrada neste mês. Segundo a força tarefa, até agora, já foram instaurados 1.114 procedimentos e executados 484 mandados de busca e apreensão, 117 de condução coercitiva e 134 de prisão, sendo 64 preventivas e 70 temporárias. Dos 179 acusados por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, 8% estão presos preventivamente. Foram 85 condenações em primeira instância por crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e outros aplicadas a 67 diferentes réus.

Capítulo 7

O CONTRA-ATAQUE

Ofensiva no Legislativo

A classe política não reagiu à Mani Pulite apenas com ataques à força tarefa feitos a partir de uma bem arquitetada estratégia de comunicação e com sua própria reorganização. Reagiu também editando leis para aliviar penas, diminuir as possibilidades de punição de investigados na operação e dificultar o sucesso de outras investigações deste porte no futuro.

De acordo com o estudo do promotor Rodrigo Chemim, trata-se de um processo que teve início ainda em 1993 – portanto na metade da Mani Pulite –, com a Lei Conso, e avançou até 2014. A Lei Conso, de autoria do então ministro da Justiça Giovanni Conso, previa a descriminalização do financiamento ilegal de partidos políticos e reintroduzia o sigilo das investigações que havia sido eliminado em 1988 com o novo Código de Processo Penal italiano. De tão escancarada intenção, o decreto foi vetado pela Presidência e retirado pelo autor.

Outra iniciativa apontada por Chemim em seu estudo, denominado Déjà vu: diálogos possíveis entre a Operação Mãos Limpas italiana e a realidade brasileira”, foi o Decreto Biondi, aprovado no dia da semifinal da Copa do Mundo, em 1994, disputada entre Itália e Bulgária. O decreto, editado no momento em que funcionários públicos confessavam o recebimento de propinas de quatro empresas do grupo Fininvest, de Silvio Berlusconi, proibia a prisão preventiva em crimes contra a administração pública e o sistema financeiro. Neste momento, relata Chemim, havia 2.764 pessoas presas pelos mesmos crimes na Itália, 350 delas pela Mani Pulite. O Decreto Bondi foi carinhosamente apelidado de “Decreto Salvaladri” pelos italianos e, uma semana depois, foi rejeitado pelo Parlamento (na foto acima).

À medida em que os anos avançavam e a Mãos Limpas perdia o interesse dos italianos, novas leis propostas para dificultar investigações ou evitar punições foram sendo apresentadas e muitas delas ainda estão vigentes. A era Berlusconi – o mega empresário de mídia dono da Mediaset e do time de futebol A.C. Milan que, mesmo investigado pela Mani Pulite, elegeu-se primeiro-ministro da Itália em 1994 – foi farta em legislações neste sentido. Em 2001, o Parlamento aprovou a descriminalização da fraude contábil, diante da pressão dos empresários e do interesse do próprio Berlusconi, que à época respondia a cinco processos por este tipo de crime.

Em 2009, os partidos de centro-direita, entre os quais o do primeiro-ministro, apresentaram uma série de emendas à Constituição para reintroduzir a imunidade a todos os membros do Parlamento e limitar a duração dos julgamentos em seis anos, inclusive para os casos já em andamento. A estimativa do Conselho Superior da Magistratura, na época, era a de que a medida atingiria de 10% a 40% dos processos em andamento.

 

A reação da política italiana à Mani Pulite

Lei O que prevê Status atual
Decreto Conso/1993 Descriminaliza o financiamento ilícito de partidos políticos e restabelece o sigilo das investigações que havia sido eliminado pelo novo Código de Processo Penal italiano em 1988 Não assinado pelo presidente da Itália e retirado pelo autor, o ministro da Justiça Giovanni Conso
Decreto Biondi/1994 Proíbe a prisão preventiva nos casos de crimes contra a administração pública e o sistema financeiro, admitindo apenas a prisão domiciliar Rejeitado pelo Parlamento uma semana depois de editado
Lei nº 267/1997 Altera as regras de produção de provas e veta o uso, no processo penal, de declarações colhidas unilateralmente pelo Ministério Público durante as investigações Em vigor
Lei nº 234/1997 Atenua o alcance do crime de abuso de ofício (prevaricação), diminuindo a possibilidade de responsabilização Em vigor
Lei nº 367/2001 Restringe a admissibilidade de provas obtidas no exterior pela Justiça italiana e anula todos os atos transmitidos por juízes estrangeiros que não sejam originais ou estejam autenticados Parcialmente em vigor. A necessidade de autenticação e de documentos originais foi derrubada nos tribunais
Lei nº 61/2002 Descriminaliza o ato de fraudar balanços financeiros e contabilidade Em vigor
Lei nº 248/2002 Permite a transferência de um processo de uma corte para outra em casos de suspeita legítima de falta de imparcialidade do juiz Em vigor
Lei nº 140/2003 Dá imunidade a detentores de cinco cargos de mais alto escalão, incluindo o cargo de primeiro ministro da Itália; prevê a exigência de uma autorização parlamentar para a coleta de provas de membros do Parlamento e impõe medidas restritivas a promotores

 

Parcialmente em vigor. A imunidade dos cinco cargos de alto escalão foi julgada inconstitucional em 2004; o artigo da lei que previa a destruição de provas contra paramentares em casos de não autorização das investigações pelo Parlamento foi julgado inconstitucional em 2007
Lei nº 251/2005 Redução do prazo de prescrição de diversos crimes, incluindo corrupção Parcialmente em vigor. Partes da lei foram declaradas inconstitucionais em 2006 e 2007
Lei nº 26/2006 Prevê a impossibilidade de promotores recorrerem contra absolvições em casos de corrupção e correlatos Parcialmente em vigor. Partes da lei foram declaradas inconstitucionais em 2007, 2008 e 2009
Lei nº 241/2006 (Indulto Mastella) Reduz em 3 anos a pena por crimes de corrupção e outros crimes cometidos até 2 de maio de 2006 Em vigor
Lei nº 124/2008 Concede imunidade penal a detentores de quatro altos cargos da administração, incluindo o de primeiro ministro Julgada inconstitucional em 2009
Lei nº 51/2010 Dispensa réus detentores de altos cargos públicos de comparecer a atos processuais por “legítimo impedimento” Válida por 6 meses, prorrogáveis por 18 meses. Parte da lei foi considerada inconstitucional em 2011
Lei nº 67/2014 Descriminaliza fraudes fiscais, apresentação de faturas falsas e omissões na declaração do imposto IVA Em vigor

 

A Lava Jato

Na tentativa de fechar brechas que permitam uma reação da classe política ao alcance das investigações e alertar a opinião pública, o Ministério Público Federal, por iniciativa da força tarefa, elaborou uma série de propostas legislativas para facilitar o combate à corrupção e garantir a força das investigações. As 10 Medidas contra a Corrupção foram apresentadas ao Congresso Nacional e antecipam uma possível reação dos partidos às investigações, já esperada pelos procuradores. 

Ainda que não seja possível afirmar que já existe uma reação política em curso, algumas iniciativas isoladas indicam que isso pode ocorrer. Segundo o promotor Rodrigo Chemim, do Ministério Público do Paraná, a Lei nº 13.254, sancionada neste ano e que concede anistia fiscal ao crime de evasão de divisas a quem enviou dinheiro para fora do país ilegalmente, já se trata de uma reação. Segundo ele, pessoas que acreditam que podem ser alcançadas pela Lava Jato podem ingressar no programa de repatriação de ativos, que anistia de crimes quem declara os valores ao fisco, colocando obstáculos a eventuais punições.

Um projeto de lei apresentado pelo deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) neste ano também é apontado por procuradores como uma reação da classe política às investigações. O PL nº 4.372/2016, em estágio inicial de tramitação na Câmara dos Deputados, impede que acusados e indiciados possam fechar acordos de delação premiada enquanto estiverem presos. 

Já a Medida Provisória nº 703, que estabelece regras para os acordos de leniência entre empresas e a Controladoria-Geral da União (CGU), tem sido vista por procuradores como um fator que pode desestimular as delações premiadas e dificultar as investigações. A MP está em tramitação na Câmara e recebeu 150 emendas. 

Além disso, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, envolvido na Lava Jato e que já responde a processo no Supremo, desengavetou recentemente um projeto de reforma do Código de Processo Penal (CPP) em tramitação desde o fim da década passada e tem preocupado tanto investigadores quanto advogados criminalistas pelo temor do que pode ocorrer durante sua tramitação em um Congresso cheio de réus em ações penais. 

Capítulo 8

O LEGADO

Nova política

A Mani Pulite é considerada por alguns como o detonador de uma mudança política tão profunda que teria inaugurado a Segunda República italiana. A definição, no entanto, é controversa, já que, embora a operação tenha provocado um enorme impacto no sistema político italiano, não alterou a ordem constitucional vigente.

Do ponto de vista político, a Mãos Limpas foi um desastre. As investigações vitimaram praticamente todos os principais partidos políticos da Itália, que davam sustentação ao Parlamento. Muitos atribuem diretamente à operação o que sucedeu depois. O bilionário Silvio Berlusconi resolveu entrar para a política em 1994 e, eleito primeiro-ministro da Itália em 1994, permaneceu no cargo até 1995, voltando a ele nos períodos de 2001 a 2006 e de 2008 a 2011. Ao longo dos mandatos, acumulou diversos processos por delitos econômicos, mas apenas em 2011 foi condenado por fraude fiscal.

A Mani Pulite certamente desestruturou o sistema político italiano vigente desde o fim da era fascista. Mas a busca por espaços e oportunidades faz parte da essência da política. Berlusconi se elegeu pelo seu próprio partido, o Forza Italia, grito de guerra entoado em estádios de futebol. De acordo com o pesquisador Vannucci, assim como no início da Mani Pulite os procuradores se aproveitaram do momento político e econômico para conseguirem apoio da opinião pública para avançar nas investigações, Berlusconi também aproveitou o momento para se colocar como uma novidade em relação à política tradicional. “Quando não podia mais contar com o apoio dos partidos tradicionais, que estavam em colapso, ele teve a habilidade de fundar um novo partido, que já em 1994 tornou-se o principal nas eleições nacionais, apresentando-se como um novo expoente da classe política”, conta.

A crise política provocada pela Mani Pulite, segundo Vannucci, culminou em três consequências: na alternância de poder no Parlamento, numa influência política maior do primeiro-ministro e na emergência de novos atores políticos. Além da Forza Italia de Berlusconi, criada no campo da direita conservadora, surgiram partidos fascistas e xenófobos, que fazem coalisões conforme a oportunidade. “Quando ocorre um escândalo político, toda a classe política é delegitimada e não apenas os políticos envolvidos”, explica o pesquisador. “Nessas ocasiões, não se trata mais de dividir a política em esquerda e direita, mas entre o velho e o novo e, neste ponto, Berlusconi foi muito hábil ao conseguir um enorme apoio da mídia para se eleger”, relata.

Vannucci afirma que, curiosamente, nos anos seguintes à Mani Pulite o tema corrupção saiu das pautas política e da imprensa e, consequentemente, deixou de despertar a atenção dos italianos. A preocupação com o tema também perdeu importância entre os eleitores ao longo do tempo. Enquanto em 1996 a corrupção era considerada um problema muito importante por 91,8% deles e 30,6% acreditavam que era o primeiro ou segundo maior problema do país, poucos anos depois, em 2001, o cenário já era outro. Embora 90% dos eleitores ainda considerassem a corrupção importante, apenas 5,5% a colocavam entre o primeiro e o segundo colocados no ranking de relevância.

Em um de seus estudos, Vannucci faz uma série histórica de reportagens publicadas em jornais envolvendo casos de corrupção, no qual demonstra uma queda brusca na presença de notícias na mídia – ao mesmo tempo em que a Mani Pulite ainda produzia resultados e o primeiro-ministro Silvio Berlusconi era investigado. E cita a frase de um pesquisador: “Depois de Tangentopolis, o país nunca foi tão virtuoso, pelo menos na aparência”.

Uma das explicações para a subsequente ausência do tema no debate público após a Mani Pulite foi o efeito de saturação, acompanhado do aumento da tolerância da sociedade em relação à corrupção. “No início, o medo de ser processado e exposto publicamente era um real desestímulo à corrupção, até mesmo mais forte do que o medo das punições, já que implicava em um julgamento público, tendo como possível consequência a destruição de reputações”, conta. “Mas, quando os casos se tornam tão frequentes, eles perdem o valor.” Como um remédio, compara, que se torna menos eficaz quando se toma durante muito tempo.

A diminuição da exposição do caso na imprensa foi fatal para a operação, avalia Piercamillo Davigo. Segundo ele, com a queda de apoio da população, a força tarefa começou a encontrar dificuldades para trabalhar e os políticos, mais facilidades para reagir e aprovar leis que prejudicaram o combate ao crime.

Estudos que medem a perpepção da corrupção pela população apontavam, após a Mani Pulite, um cenário perturbador. Em 2005, uma pesquisa mostrava que 50% dos cidadãos acreditavam que o nível de corrupção havia aumentado entre 2002 e 2005.

Ainda de acordo com Vannucci, a Mãos Limpas não desencadeou um debate efetivo sobre a eficácia do combate à corrupção. Até mesmo o envolvimento de Berlusconi em contundentes investigações desde sua eleição, em 1994, não resultou em nenhuma discussão significativa em relação a reformas do sistema de combate ao crime. “Pelo contrário, os problemas judiciais de Berlusconi exacerbaram um permanente estado de tensão entre os poderes político e judicial”, diz. “Graças às evidências trazidas pelas investigações, a Itália pode ser vista como um modelo do fracasso dos mecanismos institucionais de controle da corrupção em uma democracia avançada.”

Um dos procuradores da Mani Pulite, Gherardo Colombo, disse em 1996: “Nos últimos quatro anos nenhuma lei ou decreto foi aprovada para facilitar as investigações ou tornar a corrupção mais difícil; nenhuma medida para modificar os procedimentos de controle a fim de torná-los mais eficazes; nenhum dispositivo para expelir da administração pública aqueles que por décadas vinham vendendo seus serviços.”

Passados alguns anos da operação, o procurador Davigo comparou a repressão de crimes à lei da selva: os mais lentos são pegos, enquanto os mais rápidos ficam livres. A comparação resume, em poucas palavras, o cenário que se seguiu às investigações na Itália. Ao mesmo tempo em que os mais espertos sobreviveram, outros agentes da corrupção aprenderam as lições, adaptando suas operações ao aumento do risco e tornando mais difícil sua descoberta.

Uma dessas lições, conta Vannucci, é a adoção de sofisticados esquemas financeiros para o pagamento de propinas em paraísos fiscais e o uso de empresas de consultoria de fachada para simular operações legais.

No mundo corporativo, diz o pesquisador, também não houve evolução – pelo contrário. Segundo ele, pequenas empresas familiares e dominadas por partidos políticos surgiram para disputar os contratos públicos e arrecadar seu quinhão das propinas que continuavam sendo pagas. “A corrupção se tornou mais espalhada e menos arriscada.”

De acordo com Antonio Di Pietro, o Judiciário foi capaz de descobrir apenas uma parte dos crimes cometidos e de levar à Justiça apenas os casos mais flagrantes. “A Mani Pulite revelou na Itália a existência de uma doença grave da nossa democracia e da nossa economia de mercado, mas a doença ainda persiste porque faltaram medidas sólidas de prevenção e educação”, afirma o procurador.

Segundo ele, para evitar a reincidência é preciso uma vigilância eficaz e uma escolha adequada das pessoas em posições de poder. “Até esta data, lamento dizer que na Itália este objetivo ainda não foi alcançado.” Um exemplo recente deixa nítido o atual cenário italiano: em 2014, um grupo de políticos e empresários envolvidos na Expo Milão foi preso por suspeita de oferecer propinas para a obtenção de contratos. Entre os detidos, alguns haviam sido presos e até mesmo condenados na Mani Pulite.