A constituição não deu qualquer poder decisório a ministros individualmente, apenas ao tribunal. Quem deveria exercer o poder de “guarda da constituição” é o conjunto dos ministros reunidos em sessão. A prática, porém, tem sido outra. No geral, as decisões judiciais mais importantes de 2016 não vieram do plenário. Poucas foram de fato colegiadas. Na ausência do plenário, as intervenções judiciais na vida nacional brotaram de ministros isolados.
Mas o que causa a ausência do plenário? De um lado, a fragmentação não é novidade. Os dados do projeto Supremo em Números revelaram há anos que, em termos quantitativos, decisões colegiadas são a exceção no funcionamento do tribunal. Em 2015, observamos vários sintomas dessa fragmentação. Por exemplo, em uma tendência de decisões liminares monocráticas em controle abstrato de constitucionalidade. Ou na incapacidade de o Presidente do tribunal fazer valer o regimento interno contra pedidos de vista excessivos. Ou, ainda, na falta de consensos institucionais mínimos que limitem o comportamento público dos ministros, no trato com a imprensa e em encontros com autoridades.
Em 2016, fica mais clara uma nova dimensão do fenômeno. Em geral entendia-se que a fragmentação decorria do acúmulo de processos. Era uma adaptação ou estratégia administrativa, ainda que patológica. Mas, agora, sua verdadeira natureza vem à luz. Além de equivocado remendo administrativo, ela é deliberadamente utilizada pelos ministros.
Até aqui, as decisões monocráticas talvez pudessem ser vistas, ainda, como delegação – precária, provisória, revogável – de poder do plenário. Afinal, esperávamos que, dentre a massa de casos, as questões mais sérias invariavelmente seriam atraídas pelo colegiado, por pressão combinada da opinião pública, das partes, dos outros ministros e de outros atores.
Não foi o que ocorreu em 2016.
A fragmentação se revelou como estratégia política, empregada em disputas internas de poder entre os diferentes ministros – algumas das quais se cruzam com ideias, grupos, alianças formais e informais fora do tribunal e dentro da política. Um Supremo fragmentado abre as portas para o comportamento político estratégico individual.
Em vez de levar suas teses para disputa com o voto de seus colegas, no confronto democraticamente controlado do colegiado, o ministro ganha pelo controle individual do destino dos autos. Apropriação individual de um poder institucional.
Em 2016, vimos isso ocorrer de ao menos três maneiras diferentes.
a. Evitar o Plenário
Antes que o plenário possa se manifestar sobre um tema, sua participação pode ser adiada, por ações do relator, por longos períodos de tempo. Às vezes, é possível manter o plenário silente até a questão perder o objeto, ao mesmo tempo em que o relator dá uma decisão para o caso. Com isso, a manifestação colegiada pode ser efetivamente evitada.
Foi o caso da decisão judicial de maior impacto do ano: a suspensão da nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil do governo de Dilma Rousseff, tomada solitariamente pelo ministro Gilmar Mendes. Mendes decidiu em uma sexta-feira, véspera de uma semana com feriado prolongado na qual viajaria ao exterior para compromisso acadêmico. No mínimo, levariam duas semanas para que o plenário pudesse se manifestar – se o ministro Mendes tivesse solicitado a inclusão imediata do processo em pauta. Não foi o caso.
No período em que ficou fora da apreciação do plenário, a decisão manteve Lula sob a jurisdição de Sérgio Moro. Manteve Dilma sem os benefícios do que poderia ser um grande articulador em um momento critico do seu processo de impeachment. Legitimou a liberação dos áudios, por Sérgio Moro, de conversas entre Lula e Dilma, mesmo após Moro ter perdido para o Supremo a autoridade sobre essas provas, diante da nomeação de Lula como ministro.
Ao longo do tempo, e com a confirmação da saída de Dilma. Tudo que indica que jamais saberemos a posição do plenário quanto à constitucionalidade da indicação de Lula. A liminar de Mendes possibilitou um vácuo completo de manifestação institucional.
b. Emparedar o plenário
Mesmo quando o ministro-agente leva a questão ao plenário, ele pode fazer isso de forma a emparedar a decisão de seus colegas. Cria fatos consumados que tornam muito mais custoso discordar da decisão individual. A decisão individual pode mudar completamente o tabuleiro e, com isso, os parâmetros de sua própria apreciação pelo plenário.
Considere a liminar de Teori Zavascki afastando cautelarmente Eduardo Cunha da presidência da Câmara e de seu mandato de deputado. Em março de 2016, o Supremo aceitou denúncia contra Cunha, mas sem qualquer manifestação sobre o pedido de afastamento feito pelo PGR meses antes. Em maio, o ministro Marco Aurélio solicitou inclusão na pauta da ADPF da Rede na qual se argumentava que, pela constituição, réus não poderiam ocupar cargos na linha sucessória da presidência.
Poucos dias depois, o min. Teori Zavascki monocraticamente decidiu o pedido cautelar da PGR e afastou Cunha por tempo indeterminado. Mesmo tomada horas antes de plenário apreciar a questão, a decisão teve efeitos práticos profundos. Mesmo que por apenas algumas horas, Cunha já tinha sido afastado de seu cargo por uma decisão de um ministro do Supremo.
Ao apreciar a decisão individual já tomada, os outros 10 ministros não decidiriam se Cunha deveria ser afastado ou não, mas sim se Cunha deveria ser reconduzido de volta ou não. Reconduzir Cunha significaria desautorizar o poder individual de um ministro do tribunal, horas apos a imprensa já ter noticiado que “o Supremo” – na verdade, Zavascki – tinha afastado o deputado.
Quando o status quo já foi alterado por uma decisão individual, ministros que poderiam discordar da atuação monocrática (no caso, do afastamento de Cunha) agora têm razões adicionais para endossá-la. Queremos desautorizar um dos nossos – e no uso de um poder que, afinal, nós também usamos? Queremos aparecer perante a opinião pública como ativamente responsáveis pelo retorno ao status quo anterior – no caso, pela recondução de Cunha?
c. Contrariar o Plenário
Mesmo quando o plenário não foi evitado, nem emparedado, ainda houve espaço decisivo para ações individuais em sentido contrário. Quando o plenário decide e o ministro-agente discorda, usa o poder de decisão monocrática para ignorar ou contrariar a manifestação do plenário. Mesmo vencido no colegiado, o ministro continua a promover sua posição, agora jogando sozinho. Uma desinstitucionalização do Supremo como instituição colegiada, e um perigoso exemplo para as instâncias inferiores.
Foi o que ocorreu após a decisão em recurso extraordinário, em fevereiro, em que uma maioria de ministros considerou que a constituição permite a execução provisória da pena apos uma condenação em 2a instancia. Apesar das severas criticas ao tribunal por parte da academia e de instituições ligadas ao sistema de justiça, é inegável que o plenário se pronunciou. E precisava, de fato, ter se pronunciado.
No contexto da Operação Lava Jato, qualquer que seja a posição do tribunal sobre execução provisória da pena, esse é um problema a ser revolvido pelo conjunto dos ministros de maneira inequivocamente colegiada, firme e clara.
Contudo, a decisão de fevereiro logo começou a sofrer erosão.
Os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio e Lewandowski continuaram a conceder liminares monocráticas com o mesmo entendimento que havia sido derrotado. Não se trava de uma sofisticada discussão sobre aplicação de precedentes em cada caso concreto. Ao contrário, sua resistência se embasava em uma contestação pura e direta da autoridade da decisão tomada pelo plenário, que teria sido mera “sinalização de possível mudança de entendimento jurisprudencial, não possuindo qualquer eficácia vinculante”, nas palavras do min. Lewandowski.
O problema continuou mesmo após nova decisão do tribunal envolvendo o tema. Em que pese a mudança de posição do ministro Dias Toffoli, os vencidos de fevereiro continuaram vencidos. Mesmo assim, o relator Marco Aurélio vetou a sugestão da presidente Cármen Lúcia, feita ao fim da sessão, de converter o julgamento da liminar em julgamento de mérito. Considerou que o tema ainda não estaria maduro. Com isso, formalmente, poderá dizer ainda que não houve um julgamento definitivo. Ampliou o espaço para decisões individuais contra a manifestação colegiada.
Quantas decisões coletivas são necessárias para que todos os ministros reconheçam que, concordando ou não com a decisão, o tribunal decidiu?