A administração penitenciária tem intenso relacionamento com juízes de Direito, promotores de Justiça, advogados e procuradores do Estado que atuam nas Varas de Execução Criminal. Relaciona-se também com as polícias militar e civil. Essas relações são extremamente complexas, porque as ações de uns têm direta consequência na área dos demais. A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984) procurou definir a competência e as responsabilidades das instituições que atuam na execução da pena, tanto nas penas privativas da liberdade, como nas demais.
Para facilitar o entendimento aos leigos, farei uma brevíssima explicação sobre como funcionam essas relações. A partir do momento em que uma pessoa comete um crime, a responsabilidade pela apuração da autoria é da polícia civil. Havendo prisão em flagrante, o autor do crime é recolhido imediatamente em uma cadeia pública ou em um centro de detenção provisória para [simple_tooltip content=’Se o crime não for grave, aguarda o julgamento solto.’]aguardar o julgamento[/simple_tooltip]. Não havendo flagrante, normalmente o réu fica solto, salvo se for decretada a prisão preventiva, o que acontece somente nos casos mais graves ou quando o acusado representa sério risco para a sociedade.
Portanto, desde o momento em que ocorre a prisão, em flagrante delito ou preventivamente, começa o trabalho da secretaria da Administração Penitenciária, que tem a responsabilidade de assegurar ao preso todos os direitos previstos na Lei. Começam também as atividades dos promotores de justiça, dos advogados e dos juízes criminais. Não tendo o preso condições de pagar advogado, o Estado, por meio dos procuradores, presta a chamada [simple_tooltip content=’Procurador do Estado é o advogado que representa o Estado.’]assistência judiciária[/simple_tooltip].
Esse processo que se instaura para o julgamento da pessoa acusada tramita nas varas criminais e tem o nome técnico de “processo de conhecimento”. Nele atuam o promotor na acusação, o advogado na defesa e o juiz, conduzindo o processo até a decisão. Proferida a decisão, as partes podem recorrer aos tribunais, que têm a função básica de verificar se a sentença de primeira instância está correta e se as formalidades legais foram observadas.
Depois de esgotados todos os recursos previstos na Lei, inicia-se o “processo de execução”. Nessa fase também atuam juízes, promotores e advogados. O processo, que antes estava em uma vara criminal, passa a tramitar em uma vara de execução criminal – VEC. Essa execução penal [simple_tooltip content=’Artigo 1º da Lei de Execução Penal.’]“tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou internado”[/simple_tooltip].
O preso que aguardava julgamento em uma cadeia ou em um centro de detenção provisória, vai para uma penitenciária ou para colônia (agrícola ou industrial) a fim de cumprir a condenação, ou seja, para “efetivação da sentença”.
No processo de execução cabe ao promotor fiscalizar a execução da pena e da medida de segurança (art. 67 da LEP). Aos juízes e tribunais a responsabilidade de decidir todas as questões da execução penal em conformidade com a Lei de Execução Penal e do Código de Processo Penal (art. 2º da LEP). A secretaria da Administração Penitenciária deve promover a execução penal no âmbito administrativo e proporcionar condições para a reinserção social do condenado e do [simple_tooltip content=’Internado é aquele que recebe medida de segurança, por ser inimputável – louco, para facilitar o entendimento.’]internado[/simple_tooltip].
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Por essas razões o relacionamento entre diretores de presídios, juízes, promotores e advogados é intenso. É sobre essa complexa relação que pretendo falar neste capítulo.
A secretaria da Administração Penitenciária, portanto, diferentemente das demais secretarias, não pode agir conforme a conveniência e oportunidade, seguindo apenas a política determinada pelo governador. Além de seguir as determinações do governador, é fiscalizada pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário; deve cumprir as decisões judiciais e está sujeita à corregedoria judicial, ou seja, [simple_tooltip content=’Artigo 66, VII da Lei de Execução Penal.’]os juízes podem corrigir, diretamente, o que entenderem inadequado nas unidades prisionais[/simple_tooltip].
Acontece, porém, que juízes e promotores, por força da natureza das relevantes funções que exercem, são independentes na sua atuação. No Estado de São Paulo [simple_tooltip content=’São cerca de 33 Varas de Execução Criminal.’]existem várias varas de execução criminal, cada uma com pelo menos um juiz e um promotor[/simple_tooltip]. Como o Direito não é uma ciência exata e as Leis comportam interpretações, os juízes de uma comarca costumam decidir de forma diferente dos juízes de outras. Às vezes isso ocorre na mesma vara onde trabalham mais de um juiz. Para que o leitor entenda a complexidade dessa situação, basta dizer que no Supremo Tribunal Federal, onde existem 11 ministros, em recente interpretação da Lei dos Crimes Hediondos, cinco votaram em um sentido e seis em outro. Muitos juízes de São Paulo estão seguindo a orientação vencedora, ao passo que outros seguem a corrente vencida.
Tudo isso é normal e permitido pelo Direito. Porém, no dia-a-dia das penitenciárias, essa situação, que para a ciência jurídica é normal, acaba gerando questões de difícil compreensão, especialmente para os presos, em sua grande maioria com pouca cultura. Imaginemos que duas pessoas foram condenadas por tráfico de entorpecentes ao cumprimento da pena de três anos de reclusão. Se o processo de execução estiver sob a direção de juízes diferentes, pode acontecer do condenado “A” ficar dois anos preso e o condenado “B” apenas um. Isto ocorre porque um dos magistrados segue a orientação vencedora no Supremo Tribunal Federal, ao passo que o outro, a corrente vencida.
Sob o ponto de vista jurídico não haverá injustiça, porque o sistema funciona assim e é normal que seja assim. Será razoável, no entanto, esperar que o preso “B” compreenda essa situação e aceite cumprir o dobro da pena de seu colega, condenado pelo mesmo crime?
Essas situações acontecem todos os dias nas penitenciárias e geram muita revolta. Revolta tímida de alguns e violenta de outros. Muitas rebeliões surgem por conta disso. Os diretores não conseguem explicar aos presos o porquê de funcionarem assim as coisas.
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Para tentar encontrar uma forma razoavelmente uniforme de se executar a pena e para explicar aos juízes, promotores e procuradores as dificuldades que os diretores enfrentam, decidi promover um encontro convidando todos esses personagens, para ampla discussão sobre o tema e para conhecimento mútuo das dificuldades. Demos ao evento o nome de “Encontro de Execução Penal e Administração Penitenciária”.
A preocupação da minha assessoria era enorme. Diziam, brincando, que seria quase igual misturar presos de facções inimigas num mesmo local. Certamente aconteceriam fortes discussões e, talvez, até brigas.
Resolvi correr o risco.
Conseguimos uma verba junto ao Ministério da Justiça que custearia praticamente todas as despesas do evento para cerca de 130 pessoas. O local teria que ser muito bem escolhido. Entrei em contato com Chieko Aoki, presidente do Grupo Blue Tree, que possui uma rede fantástica de hotéis. Ela fez um preço especial para um dos seus hotéis cinco estrelas, na cidade de Mogi das Cruzes.
Havia verba e local. Os diretores penitenciários e advogados da [simple_tooltip content=’Fundação de Amparo ao Preso, cujo nome correto é “Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel”.’]Funap[/simple_tooltip] compareceriam, bastaria convocá-los. Será que os juízes, promotores e procuradores iriam, com simples convite? Como saber? Fui falar com o Presidente do Tribunal de Justiça, com o Procurador Geral de Justiça e com o Procurador Geral do Estado. Após expor os motivos da iniciativa, perguntei se estariam dispostos a convocar seus membros para o evento. Os três acharam ótima a ideia e se dispuseram a fazer a convocação. A presença das 130 pessoas estava, pois, garantida.
A organização de um encontro como esse é muito complexa. Começava pela questão da distribuição dos participantes nos apartamentos. Muitos não aceitam dividir os cômodos com estranhos. Isso aumentava as despesas. Havia ainda o problema da locomoção até o local do evento, pois alguns viriam de distantes comarcas, com mais de 500 quilômetros. Não era razoável marcar para um final de semana, porque haveria reclamação. Além dessas questões havia ainda a escolha dos palestrantes, dos temas, das reuniões em grupo, das conclusões do encontro.
A nossa experiência nesse tipo de evento se limitava a alguns seminários com pessoas da própria secretaria, o que simplificava sobremaneira os problemas. Nestes seminários os participantes, todos subordinados ao secretário, não teriam a ousadia de reclamar, ainda que ficassem insatisfeitos. Agora não. Viriam pessoas de outras instituições, na qualidade de convidadas. Pessoas sofisticadas, diria até que algumas eram sofisticadíssimas. Era preciso todo cuidado nos mínimos detalhes.
O ideal era contratar alguma empresa especializada na organização, mas para poupar despesas achei melhor usar o nosso pessoal mesmo. Convoquei o professor Francisco de Assis Santana, diretor da Escola de Administração Penitenciária, Rosangela Sanches, da assessoria de imprensa e Fabiane, chefe da Assessoria Técnica do Gabinete para que se incumbissem da organização. Fizeram várias reuniões e não se esqueceram de nada. A organização foi primorosa e o hotel ajudou: era um cinco estrelas para ninguém botar defeito.
Da minha parte participei apenas da escolha dos temas a serem abordados. Procuramos escolher assuntos práticos que trouxessem imediatas consequências benéficas no dia-a-dia de todos. Pedi para contratar um palestrante de fora da área jurídica, que tivesse habilidade para “quebrar o gelo” inicial. O escolhido foi Alfredo Rocha, um especialista em motivação empresarial, respeitado e admirado.
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Marcamos a recepção para o início do Encontro em uma quarta-feira, dia 12 de novembro de 2003, a partir das 18 horas, com um coquetel regiamente servido, para que todos realmente começassem a “quebrar o gelo”. Os trabalhos seriam oficialmente instalados na quinta-feira pela manhã e terminariam ao meio dia de sexta-feira, quando todos seriam liberados após o almoço. Para a noite da quinta-feira programamos música alegre e ambiente descontraído. A Polícia Militar montou forte aparato de segurança, inclusive com uso de helicópteros. Afinal, juízes e promotores responsáveis pelos processos dos presos mais perigosos do Estado estariam ali reunidos e não convinha facilitar.
Os cuidados com a segurança foram tão providenciais que uma juíza só saiu do Encontro após fortemente escoltada por várias viaturas e com o helicóptero sobrevoando seu itinerário.
Durante a recepção coloquei uma bermuda e camiseta e fiquei ali na entrada junto com o Neto, meu secretário adjunto, com os coordenadores e assessores dando as boas-vindas aos convidados. Uma coisa simples como essa acaba trazendo um resultado muito positivo. Uma juíza amiga me contou depois que o fato de eu estar ali no meio de todos, conversando informalmente, causou surpresa aos presentes, pois imaginavam que o secretário só fosse aparecer na abertura solene do evento, como acontece com frequência. Minha postura, segundo essa amiga, serviu para “amolecer” os que estavam duros, intransigentes e, alguns, até mal humorados.
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No dia da abertura, faltando cerca de 15 minutos do horário marcado, telefonei para minha casa para saber das novidades e descobri que o Arthur, meu filho do meio, havia batido o carro em um muro, machucara-se levemente e ainda estava no hospital. Essa notícia deixou-me seriamente abalado. Queria estar em Bragança para acompanhá-lo no hospital e também para lhe dar umas broncas. Bater em um muro… Só podia ter sido imprudência, excesso de velocidade ou bebedeira. Fui injusto. O acidente ocorreu por culpa de outro motorista.
Normalmente fazia meus discursos de improviso, porque dava mais naturalidade e transmitia mais sinceridade. Nesse dia, felizmente havia levado um pequeno rascunho do que deveria falar. Diante da notícia do acidente não conseguia concentrar meu raciocínio e tive que ler as minhas anotações. Acho que foi um péssimo discurso: frio, formal, distante. Não sei se alguém percebeu, mas como era apenas uma manifestação na abertura solene, deve ter passado sem chamar muito a atenção. Representando o Poder Judiciário falou o juiz Paulo Sorci; pelo Ministério Público discursou Rodrigo Pinho, na época chefe de gabinete do Procurador Geral. A procuradora Maria Rita representou a Procuradoria Geral do Estado e a diretora executiva da Funap, Berenice Gianella, falou em nome da fundação, todos realçando a importância da iniciativa.
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Após breve intervalo entrou no palco Alfredo Rocha. Fez jus à fama que tinha. Sua palestra foi magnífica. Com seu jeito caipira cativou todos os presentes. Em meio a muitas piadas engraçadas transmitiu a importância do trabalho em grupo, do entendimento que deve haver entre pessoas que trabalham visando o mesmo objetivo. Levou a platéia às gargalhadas dizendo coisas como: “na minha terrinha, Limeira, ao invés de brainstorming, preferimos toró de parpites”. Terminou sua palestra exibindo cenas lindíssimas do filme “Resgate do soldado Ryan”, mostrando a importância da vida, ainda que em época de guerra.
Com o espírito de todos aberto para o diálogo e para a busca de soluções comuns, passamos às demais palestras técnicas, voltadas para a finalidade do encontro. Na parte da tarde os participantes foram divididos em grupos onde se travaram intensos debates. No dia seguinte colocamos os temas em votação no plenário e conseguimos obter consenso em alguns itens, dali extraindo a “Carta de Mogi das Cruzes”, com 10 conclusões que seguem abaixo:
ENUNCIADO 1: Os processos de execução e as guias de recolhimento poderão ser transportados por funcionários da Secretaria da Administração penitenciária, previamente credenciados, mediante alteração das normas da Corregedoria Geral de Justiça.
ENUNCIADO 2: As contas de liquidação de penas podem ser feitas pelas unidades prisionais, segundo orientação da Vara de Execuções Criminais. Será feita proposta ao Conselho Superior da Magistratura, para edição de provimento de uniformização dos cálculos.
ENUNCIADO 3: As unidades prisionais encaminharão certidões e demais documentos à Vara de Execuções Criminais.
ENUNCIADO 4: O requerimento de direitos independe de período de prova.
ENUNCIADO 5: É possível a remição de pena pelo estudo, com comprovado aproveitamento, à razão de 18 horas/aula por dia remido (maioria de votos).
ENUNCIADO 6: O visto do juiz corregedor não é necessário nos alvarás de soltura e nas transferências do preso para regime semi-aberto (maioria de votos).
ENUNCIADO 7: A oitiva do sentenciado, a que se refere o art. 118 da Lei de Execuções Penais, pode ser feita por escrito ou realizada pelo diretor da unidade prisional, na presença de advogado.
ENUNCIADO 8: Recomenda-se que o processamento dos pedidos de remição da pena seja feito uma vez ao ano, desde que não haja prejuízo ao sentenciado.
ENUNCIADO 9: a)- A visita que tentar entrar na unidade prisional com qualquer aparelho de comunicação será excluída do rol pelo prazo de um ano; b) Recomenda-se a instalação de aparelho de bloqueio de qualquer artefato de comunicação em unidades do regime fechado; c) A posse de aparelhos de comunicação nos presídios constitui falta grave (maioria de votos); d) Os diretores deverão comunicar o fato ao juízo da execução; e) Será encaminhada ao Congresso Nacional proposta para tipificação deste fato como crime.
ENUNCIADO 10: O Estado deve garantir a segurança de todos os operadores vinculados à área de execução penal.
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Pela leitura dos enunciados pode-se ver que vários problemas tinham solução muito simples. No primeiro Enunciado os funcionários da administração penitenciária foram autorizados a transportar processos e guias, porque, por incrível que possa parecer, a remessa de um processo de uma comarca para outra, em alguns casos, chegava a demorar de três a seis meses. O Enunciado 3 foi proposto porque funcionários da secretaria da Administração Penitenciária sequer podiam encaminhar documentos aos juízes, porque alguns entendiam que era prerrogativa exclusiva dos cartórios judiciais. Havia juízes e diretores de presídios que estabeleciam prazos para que os presos pudessem pedir o reconhecimento de direito. Daí a razão do Enunciado 4. O Enunciado 7 trouxe extraordinária economia para o Estado. No lugar de apresentar dezenas, centenas de presos ao juiz para um depoimento simples previsto no art. 118 da LEP, autorizou-se a tomada das declarações pelo diretor do estabelecimento penal. Muitas viaturas deixaram de ser empregadas e milhares de litros de combustível foram economizados. Com toda certeza só esta economia deu para pagar as despesas deste e de futuros encontros. Por força do Enunciado 9 encaminhamos ao Congresso Nacional proposta de tipificar como crime a posse de aparelho celular nos presídios. Enviada em novembro de 2003, até hoje os deputados nada deliberaram. Após a “Crise de Maio” (relatada em outro capítulo) voltaram a tocar no assunto, aprovando-se o projeto no Senado. Todavia, na Câmara Federal, ao que tudo indica, ainda está aguardando apreciação.
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Em suma, com menos de dois dias de debate e trabalho, com boa vontade dos participantes, milhares de presos foram beneficiados com essas medidas. Providências moralizadoras foram tomadas, como a de considerar falta grave a posse de telefone celular. Valorizou-se a formação cultural do preso, reconhecendo-se o direito à remição da pena pelo estudo. Todos saíram ganhando com as conclusões: os presos, a justiça, a administração penitenciária e a sociedade que passou a receber um serviço público de melhor qualidade e com mais economia.
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Na noite de quinta-feira aconteceram coisas muito interessantes. Com música suave tocando, todos descontraídos no ambiente informal, grupos heterogêneos foram se formando. Conversavam animadamente juízes, promotores, procuradores, advogados, diretores de presídios e membros da minha assessoria. Alguns dançavam, outros cantavam, riam alegremente e, como é normal sempre que se reúnem homens e mulheres, as “paqueras” também rolaram. Alguns apartamentos, contaram-me depois, ficaram vazios, enquanto outros tiveram mais de um ocupante…
O entendimento dos “personagens da execução penal” haveria de ser melhor dali para a frente.
Ao final do evento, que não tivemos a coragem de denominar “Primeiro Encontro”, porque não sabíamos se haveria o segundo, o sucesso era perceptível nos comentários gerais. No discurso de encerramento não tive dúvida em convidar a todos para o “Segundo Encontro de Execução Penal e Administração Penitenciária”, no próximo ano. Fui aplaudido de pé.
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E assim foi feito. Nos anos seguintes, em 2004 (23, 24 e 25 de junho) e 2005 (29/30 de junho e 1º de julho), realizamos mais dois desses eventos, ambos em um belíssimo hotel na cidade de São Roque. Em 2004 a palestra de abertura foi feita pelo campeão olímpico, Lars Grael, secretário da Juventude, Esporte e Lazer do governo de São Paulo. No seguinte contratamos uma orquestra regida pelo Maestro Lourenção.
Lars Grael, com seu extraordinário exemplo de vida e capacidade de vencer dificuldades, transmitiu de forma emocionante a luta para conservar a vida após sofrer grave acidente. Foi a estrela do evento. Juízes e juízas, promotores e promotoras, com aspecto sério e circunspecto, não tiveram vergonha de se enfileirar para tirar fotografias ao lado do ídolo.
No encontro de 2005 o Maestro Lourenção, durante a apresentação de sua excelente orquestra, convidou alguns dos presentes para ouvir a apresentação no palco sentados no meio dos músicos. Um diretor de presídio regeu a orquestra por alguns minutos. Eu também passei por isso em outra ocasião, embora não soubesse nem o lado de pegar a batuta. É uma experiência única e indescritível. Os privilegiados que se misturaram aos músicos falaram sobre o que sentiram. Uma advogada da Funap, parece que da região de São José do Rio Preto, deu um depoimento tão emocionante que levou muitos dos ouvintes às lágrimas.
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Na noite anterior à abertura do Encontro de 2004 também aconteceram coisas muito interessantes. Um dos juízes, justamente aquele escalado para falar em nome do Poder Judiciário, se excedeu um pouco nos aperitivos e ficou madrugada adentro tentando levar alguma jovem para seu quarto. Dizem que tentou com todas, até terminar com conhecida procuradora de Justiça, famosa tanto pelas posições radicais na defesa da linha dura na execução penal, como pela aparência, digamos assim, não tão jovem e nem tão atraente. Mesmo com ela não obteve êxito e acabou indo embora durante a madrugada, não se sabe se de vergonha pela bebedeira, ou pela frustração de não conseguir seus objetivos. Outro teria tentado agarrar uma promotora na entrada de seu apartamento. Este atrevimento gerou séria briga depois com um dos meus auxiliares mais próximos, que era namorado da moça.
Outro juiz foi incumbido de falar na abertura solene. Pego de surpresa e não habituado a discursos, quase deu um vexame em sua curta fala. Ao invés de dizer que tinha certeza do sucesso do evento, disse que o Encontro certamente seria um insucesso. Corrigiu em seguida, mas ficou a impressão de que não estava mesmo preparado para falar.
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Um dos palestrantes foi Pedro Egydio, ouvidor da Pasta. Como sempre, falou com profundidade, desceu ao âmago das questões da execução penal. Sua posição era conhecida e defendeu com veemência a visão progressista do Direito, a humanização das prisões, a necessidade do respeito aos direitos humanos. Seu discurso irritou alguns dos presentes. Chegaram a faltar com a educação e o respeito à sua pessoa. No intervalo do almoço perguntavam “quem era aquele cara” que defendia posições absurdas. Outro dizia que Pedro Egydio tinha que ser preso por se mostrar tão defensor dos direitos humanos. Falaram até em cumplicidade com criminosos. Um absurdo inominável. Ainda bem que foi uma minoria que reagiu assim.
Os debates nos grupos foram acalorados. Mais que isso, chegaram em alguns grupos quase às vias de fato, tal era a veemência na defesa da tese que entendiam correta. A presença de pesos pesados da execução penal do País, como [simple_tooltip content=’Vice-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.’]Maurício Kuehne[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Secretário de Justiça do Amazonas e vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania.’]Carlos Lélio Lauria[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Diretor do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN.’]Clayton Alfredo Nunes[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Jurista e conselheira do CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.’]Ana Sofia Shimidt de Oliveira[/simple_tooltip], enriqueceu e valorizou o evento.
Ao final, com alguma dificuldade conseguimos fechar as conclusões nos dois Encontros, com os enunciados abaixo:
ENUNCIADO 11: O cálculo de liquidação de penas, elaborado nas unidades prisionais e constante do Boletim Informativo do preso, dispensa a remessa dos autos executórios ao Contador Judicial, se houver anuência das partes (maioria de votos).
ENUNCIADO 12: Nos termos do § 1º do art. 185 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, os interrogatórios dos acusados presos serão progressivamente realizados nos estabelecimentos penais onde se encontrarem, em sala própria, desde que o órgão competente do Estado garanta a segurança do lugar para a realização do ato processual, e a administração proveja o referido espaço dos equipamentos necessários a esse fim; recomenda-se que o Estado providencie a instalação de salas de vídeoconferência para a realização dos atos processuais (maioria de votos).
ENUNCIADO 13: É necessária a formulação de um anteprojeto de lei de execução penal paulista, criando-se para esse fim, na Administração Penitenciária, um grupo multidisciplinar, que receberá as sugestões da comunidade jurídica sobre o tema.
ENUNCIADO 14: As alterações introduzidas pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, no art. 112 e parágrafo único da Lei de Execução Penal, dispensaram o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação para fins de apreciação judicial de pedidos de benefícios (maioria de votos).
ENUNCIADO 15: As atividades jurisdicional e administrativa na execução da pena devem ser objeto de ampla discussão, em virtude da complexidade do tema, principalmente no que se refere à constitucionalidade de seus vários aspectos (maioria de votos).
ENUNCIADO 16: Recomenda-se que a Secretaria da Administração Penitenciária, o Ministério Público e demais órgãos responsáveis aproximem-se para somar esforços e informações no combate às facções criminosas. Seria benéfico, nesse sentido, que, entre outras entidades, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP, apresentasse ao Congresso Nacional, projeto de lei que atribua às empresas de telefonia celular a responsabilidade pelo bloqueio técnico em certas áreas de sua concessão, do respectivo sinal, sem prejuízo de gestões imediatas junto à ANATEL, para eventual solução desse problema.
ENUNCIADO 17: É recomendável, nos termos da decisão interlocutória do Supremo Tribunal Federal, que os juízes das Varas de Execução Criminal, processem e concedam cautelarmente os pedidos de progressão de regime carcerário, referentes a sentenciados por tráfico de entorpecentes e drogas afins e por crimes definidos como hediondos (maioria de votos, com abstenção dos participantes do Poder Judiciário e vencido o Ministério Público).
ENUNCIADO 18: Enquanto não se edita lei ordinária para disciplinar o inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição da República e com o intuito de preservar esse direito fundamental do sentenciado, o juiz, ultrapassado o prazo de 90 dias, contados da data do protocolo do requerimento em cartório, concederá cautelarmente o pedido de benefício do sentenciado, sem prejuízo de eventual e posterior revogação, com retorno à situação original (maioria, com abstenção dos participantes do Poder Judiciário, vencido o Ministério Público. Vencidos na quantificação do prazo os participantes da PGE e FUNAP).
ENUNCIADO 19: os documentos para instruir os requerimentos de benefícios são tão somente os seguintes: boletim informativo, atestado de conduta carcerária e folha de antecedentes criminais atualizada (maioria de votos, vencidos os participantes do Poder Judiciário e o Ministério Público).
ENUNCIADO 20: Recomendam-se os seguintes pontos em matéria de cumprimento de medida de segurança: a) que a Secretaria crie novas vagas em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico; b) que seja substituída por tratamento ambulatorial a internação, quando possível; c) sejam mais céleres os procedimentos de cessação da periculosidade; d) que sejam feitas gestões junto à Secretaria da Saúde e à sociedade civil para melhor equacionamento do problema da medida de segurança, com ênfase na questão de gênero.
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Novamente a leitura dos enunciados permite ao leitor sentir o grau de dificuldade para se encontrar consenso. Poucas foram as conclusões por unanimidade. Sempre que houve voto vencido, e como ninguém gosta de ficar vencido, os debates foram muito acalorados. Em alguns temas os membros do Judiciário e do Ministério Público se abstiveram de votar. Em outro, no de nº 18, os advogados da Funap e os procuradores da PGE ficaram vencidos somente no prazo.
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Em suma, apesar de todos os problemas que enfrentamos, da desconfiança de que pretendíamos “fazer lavagem cerebral” para soltar presos, a verdade é que os três eventos fizeram história no sistema penitenciário. Pela primeira vez autoridades de várias áreas sentaram-se ao redor da mesma mesa, apresentaram e discutiram vários problemas, sem preconceito, buscando o que interessa a todos, que é o aperfeiçoamento dos serviços públicos.
No lado dos coordenadores e diretores penitenciários, também houve excelente repercussão. Mais que isso. Estas pessoas sofrem preconceito de todos os lados, são incompreendidos e criticados pela imprensa e pela população; ficam com fama de corruptos e espancadores, quando a grande maioria é constituída de pessoas sofridas e decentes. Ficaram, desta vez, orgulhosos de poder debater com pessoas de outras áreas, no mesmo nível, sem sentimento de inferioridade.
Antonio Paulo Veronezi, coordenador da Região Noroeste, antigo servidor do sistema penitenciário, que iniciou a carreira como guarda de presídio, disse mais ou menos o seguinte:
— “Dr. Nagashi, pela primeira vez conseguimos ser ouvidos por juízes e promotores com respeito e atenção. Estou orgulhoso de poder participar do evento. Antigamente mal conseguíamos ser recebidos pelos juízes. Jamais imaginei que um dia pudesse debater com eles em pé de igualdade. O senhor nos faz sentir gente, de ter orgulho da profissão que exercemos”.