Dartiu Xavier da Silveira

Francisco Inácio Bastos

Juntos, somamos talvez mais de meio século de experiência médico-científica com usos e abusos do álcool e outras substâncias, trabalhando no dia a dia com dependentes tanto de substâncias lícitas quanto ilícitas, e pesquisando fatores e características que estariam associados a esta condição, e tratamentos humanos e eficientes que os ajudem a retomar plenamente suas vidas no contexto de suas famílias, redes sociais e comunidades. Nesse tempo, vimos, em primeira mão, o quão devastadora é não só a dependência, mas também a situação de marginalização social dos usuários de substâncias ilícitas que, criminalizados pela legislação brasileira, tem seu acesso a serviços de atenção básica de saúde sobremaneira dificultado e seus canais de comunicação com a sociedade constrangidos e limitados.
É um erro apostar na criminalização do uso de substâncias (sejam elas quais forem) como alternativa para coibir ou, supostamente, desestimular seu uso. Somos o último país do Cone Sul ainda a fazê-lo. Insistir em políticas ancoradas na criminalização e na pressão sobre a oferta é deixar de priorizar a atenção integral a quem mais dela necessita.
Tal regime de criminalização também impacta a agenda de pesquisa, pois dificulta simultaneamente o acesso de pesquisadores ao material (definido como ilícito) para pesquisa e aos usuários em larga escala, pois estes, ao relatarem suas vivências, estariam se auto-incriminando. É possível fazê-lo de forma ética e responsável, e nossas trajetórias não existiriam caso não fosse possível obter dados confiáveis em um contexto de proteção aos entrevistados. Mas isso se dá em meio a inúmeras dificuldades, restrições, veladas ou explícitas, por parte de colegas, instituições de fomento e regulação, quando não da sociedade em geral. Esta visão distorcida e preconceituosa acaba por limitar as possibilidades de compreensão em profundidade e resposta adequada a um conjunto de questões sabidamente complexas e merecedoras de todo o respeito e atenção.
Por isso, saudamos a discussão sobre descriminalização do porte para consumo de drogas no Brasil, avançada em julgamento do Supremo Tribunal Federal. Mas é preciso ir além para realmente proteger usuários e dependentes. Precisamos discutir a quantidade de drogas ilícitas consumidas por brasileiros, de forma a fornecer ao legislador e à sociedade parâmetros confiáveis, com base empírica e relevância clínica, para melhor distinguir usuários de traficantes.
Fato é que não temos resultados de pesquisas recentes sobre padrões de uso brasileiros com efetiva base populacional, salvo no caso do crack. Há alguns estudos em andamento, mas seus resultados não estarão disponíveis a tempo de somar ao debate. Tal lacuna não é casual, mas sim fruto do temor em perguntar às pessoas que fazem uso de substâncias determinadas questões, sem dúvida, sensíveis, mas essenciais a qualquer abordagem realista e à formulação e políticas públicas. Mas temos em nossos contextos de atendimento e pesquisa, que frequentemente são as próprias cenas abertas de uso, o ambiente perfeito para observar esses padrões e chegar a algumas conclusões.
A primeira delas é bem simples: há diversos tipos de usuários no Brasil. Há quem use drogas em grande quantidade e de maneira frequente, caracterizando um quadro de dependência, há quem apenas experimente uma vez por curiosidade e há aqueles usuários frequentes, mas que não desenvolvem problemas associados a esse uso. Uma discussão séria sobre proteção aos usuários e garantia do direito de acesso à saúde e a tratamento não pode focar apenas nos últimos, mas precisa levar em conta todo o continuum que vai da experimentação ao uso problemático e à dependência. Cada um desses segmentos tem suas especificidades, questões e necessidades a serem atendidas.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O trabalho seminal do epidemiologista inglês Geoffrey Rose (1926-1993) sobre o que ele denominou “o paradoxo da prevenção” documenta de forma inequívoca o erro em subalternizar nas atividades de prevenção e cuidados determinados segmentos da população, seja porque o próprio conceito de risco/proteção é mais sutil do que habitualmente se supõe, seja porque as dimensões individuais e coletivas de riscos e proteção não são sinônimas.
Diante desse quadro, diversos especialistas de diferentes áreas se reuniram para propor e debater, baseando-se em considerações médico-científicas, das práticas penal e sociológica, uma tabela com diferentes cenários de quantidades de referência de uso de drogas, base para um <a href="http://www.igarape.org.br/pt-br/criterios-objetivos-de-distincao-entre-usuarios-e-traficantes-de-drogas-cenarios-para-o-brasil/">documento que avança uma proposta de critérios objetivos de distinção entre usuários e traficantes</a>. Seguimos nesse sentido, o <a href="https://en.wikipedia.org/wiki/Delphi_method">clássico método Delphi</a> de coleta e análise sistemática de informações de especialistas em um determinado tema, consagrado há décadas nos mais diversos campos do conhecimento.
<table width="444">
<tbody>
<tr>
<td colspan="4" width="444">Quantidades de porte de drogas para consumo próprio – Cenários de Referência (consumo per capita)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a></td>
</tr>
<tr>
<td width="116">Substâncias</td>
<td width="110">Cenário 1</td>
<td width="110">Cenário 2</td>
<td width="110">Cenário 3</td>
</tr>
<tr>
<td width="116">Maconha (gramas)</td>
<td width="110">25g</td>
<td width="110">40g</td>
<td width="110">100g</td>
</tr>
<tr>
<td width="116">Maconha (pés fêmeas florindo)</td>
<td width="110">6 pés</td>
<td width="110">10 pés</td>
<td width="110">20 pés</td>
</tr>
<tr>
<td width="116">Cocaína/Crack<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> (gramas)<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a></td>
<td width="110">10g</td>
<td width="110">12g</td>
<td width="110">15g</td>
</tr>
</tbody>
</table>
&nbsp;
Nela, vemos três cenários. O mais conservador<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> remete, no quesito maconha (gramas), à experiência portuguesa de descriminalização e à quantidade de pés da legislação uruguaia. Já o mais progressista faz referência ao modelo espanhol na quantidade de maconha e ao austríaco na quantidade de cocaína. Por fim, o cenário intermediário é baseado na quantidade de maconha em gramas apontadas pela legislação uruguaia.
Sendo bastante francos, a adoção de qualquer um desses cenários, respeitadas as devidas salvaguardas contidas na Nota Técnica que os propõe, já será um avanço com relação à prática atual de apenação de usuários com base em critérios largamente subjetivos. A experiência clínica e as pesquisas nos mostram, porém, que apenas o cenário três protegerá de modo satisfatório os usuários frequentes e os dependentes mais vulneráveis.
Nós, mais do que ninguém, salvo talvez apenas os próprios dependentes, sabemos o quão custosa em termos da saúde das pessoas é a atual prática de criminalização das drogas no Brasil. Sabemos também que esta não é uma discussão fácil, ou tampouco evidente, mas acreditamos que está na hora de apostar na proteção daqueles para os quais até hoje fechamos a porta.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O trabalho seminal do epidemiologista inglês Geoffrey Rose (1926-1993) sobre o que ele denominou “o paradoxo da prevenção” documenta de forma inequívoca o erro em subalternizar nas atividades de prevenção e cuidados determinados segmentos da população, seja porque o próprio conceito de risco/proteção é mais sutil do que habitualmente se supõe, seja porque as dimensões individuais e coletivas de riscos e proteção não são sinônimas.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> As quantidades propostas são baseadas em pesquisas sobre padrões de uso no Brasil, opinião de psiquiatras, pesquisadores, neurocientistas e usuários de drogas. Além disso, encontram amparo em legislações internacionais de países como Áustria, Espanha, Portugal e Uruguai.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A experiência dos EUA em definir tratamentos penais diferentes uma mesma quantidade de crack e cocaína tem sido denunciada como discriminatória e desproporcional. Trata-se da mesma substância ilícita (cocaína), consumida de formas diferentes. A adoção de penas mais graves para o consumo de crack atinge desproporcionalmente a população mais pobre, em comparação com a população mais rica, que tem acesso à cocaína em pó. Para mais informações sobre o debate nos EUA, ver The Sentencing Project, Federal Crack Cocaine Sentencing, s.d. Disponível em: &lt;<a href="http://sentencingproject.org/doc/publications/dp_CrackBriefingSheet.pdf">http://sentencingproject.org/doc/publications/dp_CrackBriefingSheet.pdf</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Apesar da notação corrente de quantidade de crack ser a de “pedras,” as mesmas não possuem um peso padrão e tampouco os usuários utilizam uma quantidade fixa por dias. Baseamos esse apontamento em levantamentos de peso médio de pedras apreendidas (0,3 gramas em média). Também serviu de fonte o acórdão do Desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto sobre o HC 0065051-65.2014.8.19.0000 da Sétima Câmara Criminal do Rio de Janeiro, que reconheceu como porte para consumo a quantidade de 45 “pedras” de crack, o equivalente à quantidade apontada no Cenário 3.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ainda que exista algum grau (inevitável) de superposição, entre a acepção estatística e sociopolítica do termo “conservador”, a acepção primária aqui é a estatística, presente em todo livro texto sobre elaboração de cenários (ver definição em inglês de “estimativa conservadora” em: http://www.conservapedia.com/Conservative_estimate).

Los-10-mitos-del-Cannabis-sativa-4

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JOTA

Por um debate honesto sobre critérios objetivos e quantidades de referência de consumo de drogas no Brasil

Drogas: Nenhuma lei deve impedir o acesso à saúde

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