O documentário Justiça tornou-se célebre entre aqueles que se interessam pela compreensão do sistema de justiça criminal. Trata-se de um filme que mostra claramente este processo de reificação do réu na produção em massa da justiça criminal.
Há uma cena muito marcante no documentário. Uma juíza está lendo um processo, sabemos que o réu está à sua frente, mas ele não aparece na tela. A juíza não tira o olho do processo:
– Aqui consta que o senhor saiu correndo, pulou o muro e tentou fugir. O senhor confirma isso?
Segue-se um silêncio constrangedor. A juíza, irritada, insiste:
– O senhor pulou o muro?
A câmera finalmente mostra o réu. Ele é cadeirante. A juíza só nesse momento se dá conta de que está julgando um cadeirante. E o público se dá conta de que a juíza nunca havia olhado para o réu sentado a poucos metros de distância.
Esse episódio é emblemático e ilustrativo do distanciamento que existe entre juízes e réus. E ele reforça a hipótese de que o contato visual entre os atores do sistema de justiça e o réu pode ser um elemento mínimo para se reduzir o impacto da tendência de coisificação do ser humano presente na justiça criminal.
A ideia de realizar a observação das audiências de custódia foi justamente a de tentar compreender se a presença física dos réus, a obrigatoriedade de que o juiz olhe para o acusado antes de decidir, pode ter algum impacto na decisão dos magistrados.
O dia que escolhi para a observação tinha algo de atípico, por ser logo após o carnaval. Nas palavras dos presentes, os presos haviam se “acumulado” durante o feriado. Funcionários do judiciário e da defensoria andavam com pilhas de papel e processos na mão tentando entender quantos presos estavam ali. O número variava entre 91 e 127.
Há uma mecânica quase industrial no tratamento dos presos. Eles ficam esperando no térreo, são chamados para uma primeira entrevista com os defensores públicos ou com seus advogados e, depois disso, estão prontos para serem chamados para a audiência. Os juízes estavam visivelmente irritados com a demora na “liberação dos presos. Os funcionários da defensoria argumentavam que, além da entrevista, eles demoravam porque o elevador era lento.
Começamos então por esse, que é mais fácil.
Nesse clima de pessoas aflitas com processos na mão, tentando lidar com um dia confuso no trabalho, um juiz sai da sala de audiências e fala no corredor para alguns funcionários:
– Tem um monte de peruano aí preso que não fala português. Manda chamar o consulado!
O funcionário responde:
– E o colombiano.
– Ah, o consulado do Peru vai ter que traduzir para todo mundo – retruca o magistrado.
São quatro salas de audiência. Juiz e promotor ficam sempre juntos, sentados lado a lado em uma mesa mais alta. Os defensores ficam mudando de sala o tempo todo. Os réus entram e saem à medida que são liberados do processo de entrevistas e do elevador.
Consigo sentar numa das salas de audiências. O defensor está falando:
– Excelência, o próprio depoimento da polícia indica que ele estava no banco do carona, não há nenhum indício de que o réu estivesse na posse da arma. A arma estava guardada no carro. O réu é primário, tem residência fixa, trabalha em atividade lícita.
O caso é sobre porte ilegal de arma. A juíza se impressiona com o argumento, troca olhares com a promotora, que parece um pouco constrangida, e decide soltar o réu.
Na sala, além da juíza e da promotora, a filha adolescente da magistrada e seus colegas de colégio. Eles estão assistindo ao julgamento. Assim que o réu e o defensor saem da sala, a juíza fala:
– Vocês entenderam? Ele estava apenas no banco do carona. Não estava com a arma. Não dá para saber de quem é a arma. Então, achei melhor soltar.
Entra outro réu na sala.
Vanderson, calçando havaianas, negro, algemado. Ele não será defendido por um defensor. Está com um advogado. O advogado veste um terno velho, tem uma pasta bastante desgastada e os sapatos estão excessivamente bem lustrados.
O réu se senta, a juíza folheia o processo e começa a falar:
– Vou lhe fazer algumas perguntas. Você não é obrigado a responder. Quando você nasceu?
– 5 de janeiro de 1998.
Eu faço as contas na minha cabeça e me dou conta de que ele completou 18 anos há pouco mais de um mês. Se ele tivesse sido pego 40 dias antes, não poderia ter sido preso pela justiça comum.
– Qual o seu endereço?
– A rua onde moro?
– Sim.
– Rua Luiz Gonzaga.
– Qual o número?
– Não sei.
– Trabalha?
– Faço biscate.
– Quanto ganha?
– 150 reais.
– Estuda?
– Nono ano.
– Com quem você mora?
– Com a minha vó, meu vô e minha tia.
– Foi agredido no momento da prisão?
Importante notar que essa pergunta sempre é feita. E que há sempre dois policiais ao lado do réu durante toda a audiência.
– Não.
A Juíza olha um documento que tinha sido apresentado pelo advogado (depois entendi que se tratava de um comprovante de endereço do pai).
– Seu pai não mora com você?
– Não, moro com minha vó desde criança.
Terminadas as perguntas, a promotora se levanta, vai até a escrivã – que se senta do outro lado da juíza -, e começa a sussurrar algo ininteligível. Termina dizendo, ainda bem baixo, dirigindo-se apenas à escrivã:
– …o custodiado não comprovou vínculo empregatício lícito, não sabendo declinar o endereço completo de sua residência. Apresentou comprovante de residência do pai, com quem ele espontaneamente declarou não residir.
A promotora volta para sua cadeira e passa a mexer em alguns papeis. Em nenhum momento ela olhou para o réu ou para seu advogado enquanto declinava as razões pelas quais sustentava que o réu deveria permanecer preso.
A juíza diz:
– Manifestação do MP pela prisão. O que diz a defesa?
O advogado claramente tem dificuldade em articular um raciocínio. Tem mais de sessenta anos, está bastante acima do peso e fala de forma ofegante:
– O réu deve ficar em liberdade, ele é inocente. Aproveito para requerer as câmeras do local, que poderão solucionar o caso.
A juíza interrompe o advogado.
– Isso que o doutor está argumentando diz respeito ao mérito, aqui analisamos apenas a prisão. Esse pedido tem que ser requerido ao juiz do caso. O senhor tem algo mais a dizer que diga respeito à prisão?
Há um evidente constrangimento. O advogado evidentemente não está acostumado com a audiência de custódia, o réu evidentemente não entende por que a juíza não deixou seu advogado dizer que ele era inocente. O advogado tenta articular uma resposta à juíza, mas não consegue. Ela começa a ditar a decisão:
– Custodiado foi preso em flagrante por roubo qualificado. Não foi agredido. No que diz respeito à prisão preventiva, essa juíza entende que esta é proporcional, entendendo-se que o delito é de natureza grave, foi cometido com violência e em concurso, tendo sido o custodiado reconhecido pelas vítimas. Razão pela qual impõe-se a manutenção de sua segregação, não só como forma de garantir a ordem pública, mas também a instrução criminal já que, caso em liberdade, as vítimas poderão sentir constrangimento para prestar depoimento em juízo.
É interessante perceber que o principal argumento para a manutenção da prisão foi o de que o advogado havia entregado comprovante de residência do pai do acusado e este dito que morava com a avó, além de ele não ter se lembrado do número da casa em que morava. Esse argumento é importante porque, se ele não tiver endereço fixo, isso dá menos segurança à Justiça de que ele não irá fugir. Mas a incompreensão do advogado sobre o que estava acontecendo fez com que ele fornecesse mais elementos de confusão do que tentasse esclarecer a situação do réu, trazendo, por exemplo, alguma prova de residência com a avó ou de que ele realmente frequentava a escola.
O réu ainda está na sala quando entra uma funcionária para emprestar o carregador de celular para a promotora. A funcionária tem um forte sotaque da Paraíba, e imediatamente a juíza e a promotora começam a imitá-la. A funcionária fica um pouco constrangida, a promotora e a juíza riem muito, assim como a filha da juíza e seus amigos. Todos agem como se o réu não estivesse mais na sala. Mas ele está.
O réu é levado pelos policiais.
A Juíza vira-se para a filha e explica:
– Ele foi preso em arrastão de ônibus.
– O rolezinho? – pergunta a filha.
– Isso! Agora, você viu a diferença entre o advogado e o defensor?
– Nossa! O defensor é bem melhor.
Promotora:
– Se um dia eu precisasse, eu ia pra defensoria sem pensar. Esse defensor foi meu professor. Ele me deixa constrangida. Ele é muito inteligente. Eu sempre fui MP (ministério público) na veia, mas fui na FESUDEPERJ (Escola da Defensoria) só pra ver o curso dele.
A polícia já traz outro réu algemado. Também negro. Também de sandálias havaianas.
Também é defendido por advogado particular
A juíza começa dizendo:
– Vamos só discutir a prisão e não o mérito de você ter sido pego com essa quantidade de entorpecente.
Ela dá uma certa ênfase ao ‘essa’.
Advogado:
– Doutora, não pude conversar com ele antes. Posso me entrevistar com o réu?
Juíza parece incomodada, mas deixa. Advogado e réu saem da sala.
Falando para a filha:
– Esse foi pego com mais de um quilo de droga. É usuário, sabe? – brinca com o funcionário.
O réu volta. Trabalha na Fundição Progresso como vendedor. A juíza não entende. Ele diz que monta um bar na frente da “parada” da Lapa.
– O senhor é dono de um bar?
– A gente monta o bar lá.
– O bar é seu?
– É meu, a gente monta ele lá.
A juíza faz uma careta e aparentemente desiste de entender. Ele diz que ganha 450 reais por semana com o bar. Mora com a companheira.
– Telefone de contato?
– Tenho sim.
– Número?
– Não lembro de cabeça.
– Faz uso de entorpecente?
– Não, senhora.
– Foi agredido?
– Não, senhora.
Promotora falando alto. Em que pese a primariedade, considerando os dois quilos de erva seca, 71 sacolés e um radiocomunicador, o Ministério Público pede a prisão.
Defesa: a prisão foi arbitrária, policiais falam que o material foi apreendido próximo ao custodiado e não com o mesmo. A prisão não se justifica.
Juíza: regularidade do flagrante. Grande quantidade, circunstâncias da prisão. No momento oportuno, o mérito será apreciado. Advogado dá o final de seu copo de plástico de água para o Leonardo. Que toma com dificuldade por causa das algemas.
Não posso negar o fato de que observo essas situações a partir da minha formação jurídica. E é por isso que noto que há uma contradição central na maneira como os juízes conduzem o processo. O tempo todo eles lembram aos réus e aos advogados que este não é um processo para avaliar o mérito, não vão decidir se a pessoa é ou não culpada, mas sim se ela deve ou não permanecer presa. Esse argumento, que tem algum sentido jurídico, parece evidentemente absurdo para os réus. O réu, sobretudo aquele que tem a certeza de que está preso injustamente, não concebe a ideia de que ele está diante de um juiz que vai decidir só se ele fica ou não preso. Não é possível compreender que não importa, naquele momento, se ele cometeu ou não o crime.
Este poderia ser apenas um caso no qual a impermeabilidade do argumento jurídico para quem não tem formação legal aprofundasse a desconstrução do sujeito e a incapacidade do réu de assumir algum protagonismo sobre seu futuro e sua eventual violação de direitos. Mas é muito mais do que isso. Afinal, os juízes usam argumentos de mérito e os descartam conforme lhes convém, sobretudo para manter o réu preso.
O pelotão de fuzilamento que a gente queria fazer não dá pra fazer
O exemplo do tráfico de drogas é eloquente. A juíza não aceita o argumento de que o réu não era o dono da droga, pois estava distante do local onde a droga foi encontrada, mas inclui na justificativa da manutenção da prisão a quantidade de drogas apreendida – que é um argumento de mérito.
Ainda na mesma sala, após a audiência do tráfico, a promotora diz para a juíza:
– Tenho aqui Marcos e Albert. Já fiz a manifestação nos dois.
– Qual chamamos primeiro? – pergunta a juíza.
– O Albert é para manter preso – responde a promotora.
– Começamos então por esse, que é mais fácil -conclui a juíza com uma piscadela de cumplicidade para a promotora.
Entra Albert, negro, camisa do Flamengo e havaianas. Será defendido pela Defensoria.
A juíza começa a fazer as perguntas, antes de a defesa chegar:
– Qual a sua data de nascimento?
– Não sei, só sei meu aniversário.
– E o ano?
– Não sei.
– Eu vou te fazer algumas perguntas que têm a ver com a manutenção da sua prisão e não com o que você fez.
A juíza se vira para um funcionário e diz:
– Ei, manda chamar um defensor logo, pode ser qualquer um.
– É casado? – pergunta a juíza
– Solteiro.
Entra uma defensora e se senta à mesa.
– Trabalha?
– Trabalhava como engraxate.
– Estuda?
– Estudei até a quinta série.
– Quanto você ganha?
– Eu ganhava 50 reais.
– Com quem você mora?
– Eu morava com a minha mãe, agora eu moro na rua. Sou usuário de drogas.
– Que droga?
– Crack.
– Você foi agredido?
– Sim, na delegacia.
– Você tem como reconhecer os agressores?
– Eles pediram pra assinar, eu não sabia o que era…
Ele não conclui a frase. Há, como sempre, um policial ao seu lado.
A promotora pede a manutenção da prisão, afirmando que roubo é um crime grave e pelo fato de o réu morar na rua e não comprovar vínculo empregatício.
A defensora folheia o processo por cerca de 30 segundos. De maneira bastante mais articulada do que os advogados que a antecederam, mas ainda de forma mecânica, pede para que se considere que o crime de roubo, no caso de réu primário, pode ensejar condenação em regime semiaberto, de forma que a prisão até o julgamento seria medida desproporcional.
Juíza:
– Gostaria de consignar que não foi alegada nenhuma agressão policial relevante.
Ninguém aponta que isso vai de encontro à declaração do réu.
– A prisão é mantida, pois o delito é grave e a vítima poderá sentir constrangimento caso o réu aguarde o julgamento solto.
O réu ainda na sala, e a juíza diz para a defensora:
– Meu marido é irmão da Sandra.
– É mesmo? Que bom, ela é ótima.
As duas riem. O réu sai.
Entra Marcos, negro, algemado. Ele se senta e fica em silêncio. Juíza, promotora e funcionários estão rindo muito de uma piada que foi contada enquanto Marcos entrava na sala. E continuam conversando como se ele não estivesse lá. Marcos fica sentado olhando para baixo.
A juíza começa as perguntas:
– Casado ou solteiro?
– Solteiro.
– Você nasceu onde?
O réu olha com estranheza e responde:
– Hospital Geral de Bom Sucesso.
– Rio de Janeiro. Onde mora?
– Comunidade Kelso.
Escrivã faz cara de incompreensão. A juíza e a promotora tentam adivinhar como se escreve. O réu soletra:
– K-E-L-S-O.
– E a rua?
– Kelso, quero dizer, rua 4.
– Sabe o número?
– Rua 4.
– Trabalha?
– Trabalho.
– Com o quê?
– Guardador de carro no mercado São Sebastião.
– Estudou até que série?
– Sexto ano.
– Quanto ganha?
– 50 a 70 reais por dia.
– Com quem você mora?
– Com a minha mãe, minha irmã, meus dois sobrinhos e meu padrasto.
– Usa alguma droga?
– Maconha, loló e cocaína.
– Foi agredido no momento da prisão?
– Tomei umas bicudas e o policial tirou foto com o celular.
Promotora:
– Pelo fato de o crime de furto ter sido com rompimento de obstáculo, de o réu não ter conseguido declinar seu endereço direito e não comprovar o vínculo empregatício, peço a manutenção da prisão.
A defensora pede o processo, olha por alguns segundos.
– Não houve grave ameaça à pessoa ou violência. O mesmo declara atividade empregatícia lícita informal. Os riscos não podem ser presumidos. Como o referido delito é passível de suspensão condicional do processo, não tem sentido a manutenção da prisão.
Juíza para, pensa. Olha para a defensora e promotora e fala:
– O que eu faço com ele?
Defensora:
– Cabe suspensão…
Promotora:
– Eu estou em estágio probatório e minha supervisora criminal, você sabe… Só por isso que eu não peço para soltar… mas só achei estranha a história do endereço.
O réu continua olhando para baixo sem parecer compreender que naquele momento está acontecendo um real debate sobre se ele deve ou não ficar preso.
Defensora:
– Mas ele parece morar lá.
Promotora (cochichando para a juíza):
– É… acho que deveria soltar.
Juíza, agora se dirigindo ao réu:
– Você tem que entender que você vai ser solto porque, se você for condenado, muito dificilmente você vai ficar preso, tem que fazer muito esforço.
Réu:
– Vou ter que assinar, né?
Juíza:
– É, vai ter que ir ao fórum assinar todo mês. Mas calma, você ainda vai responder ao processo. Tem que ter cuidado.
Promotora (ainda com o réu na sala) segurando outro processo :
– Esse é muito engraçado. Ele não é criminoso, é barraqueiro. Ele foi preso, mas parece que não tinha feito nada, aí ele deu um barraco, aí ele quebrou coisa na prisão, colocaram no dano. Aí ele ameaçou, colocaram na ameaça. Mas não tinha que estar preso.
Juíza:
– Isso tá um caos hoje. Cadê os réus?
Vira-se para a defensora:
– As entrevistas são lá embaixo e eles demoram pra subir, né? Mas não pode fazer as entrevistas aqui em cima?
Defensora:
– Temos ordem pra fazer lá embaixo.
Juíza:
– Mas se não fizer vista grossa, ninguém sai daqui hoje.
O réu vai embora.
Eu mudo de sala de audiência. Outro juiz e outra promotora. O réu, Diego, negro, de havaianas, já está sentado. Um defensor, saindo da sala, chama outra defensora. A defensora olha para o juiz e fala para o outro defensor:
– Com ele? Ele não solta ninguém.
O defensor responde que essa está fácil, que ela vai se surpreender. O juiz, que estava lendo, mas ouvindo a conversa, só confirma:
– Você vai se surpreender.
O réu é ambulante no Baixo Gávea, estudou até a quinta série e tem dificuldade em dizer quanto ganha. Claramente nunca pensou na sua receita diária como um salário mensal. O juiz chega à conclusão de que ele ganha dois mil reais por mês. Mora com as irmãs.
A promotora pede que seja solto, pois a pena para o caso não justifica a manutenção da prisão. O juiz concorda de forma lacônica e, antes que a defensora diga qualquer coisa no processo, ele se vira para ela e diz:
– Doutora, explica pra ele.
E o juiz se levanta para sair da sala.
A defensora explica para o réu que ele vai ser solto.
Eu pergunto ao juiz, que está saindo, qual o crime que ele havia cometido (é muito curioso notar como várias vezes o crime cometido não aparece nos diálogos. O crime consta dos processos, mas, do ponto de vista do observador, é impossível saber de qual tipo penal o réu está sendo acusado apenas ouvindo os debates). O juiz me diz:
– Furtou uma lata de cerveja.
Ele se vira para um outro defensor, que tinha brincado com sua fama de duro, e fala:
– Aí nem eu consigo manter preso.
Vou a outra sala de audiências. Outro juiz e outro promotor.
O réu, negro, de havaianas, será defendido por uma advogada. Uma senhora de mais de cinquenta anos.
Esse juiz não faz as perguntas básicas diretamente ao réu. A escrivã se aproxima do réu e faz as perguntas enquanto o juiz o promotor e o defensor conversam sobre outros assuntos.
O réu trabalha com o tio, ganha 200 reais por mês, mora com os pais, mas não se lembrava do endereço.
O juiz anuncia que o caso é sobre o artigo 33 (o artigo 33 da lei de drogas diz respeito ao tráfico, mas o juiz não menciona tráfico em momento algum, apenas o número do artigo).
Juiz:
– Doutora, o senhor Lucas tem mais algo a declarar? Lembrando que só vamos analisar apenas se mantemos ou não a prisão e não se ele cometeu o crime.
A advogada está visivelmente nervosa. Ela tenta responder que o réu é inocente e o juiz a interrompe de forma brusca, dizendo que não era isso que seria analisado e pede a manifestação do Ministério Público.
O promotor pede a manutenção da prisão.
A advogada insiste em discutir o mérito e pede para que, caso ele seja condenado, se aplique o parágrafo quarto da ‘lei 33’. (na verdade ela quis dizer ‘do artigo 33’ da lei de drogas. Trata-se do parágrafo que permite pena alternativa para casos de tráfico de menor gravidade).
O juiz, irritado, responde que não é o momento de discutir isso.
Ela pergunta quando sairá a decisão.
– Em 30 segundos.
E o juiz profere a decisão:
– O custodiado teria adquirido entorpecente com primo adolescente, buscando venda autônoma e independente na região da Lapa. A prisão do custodiado não foi realizada em área tida como de tráfico de entorpecentes gerida por facção criminosa. Não há elementos que amparem uma análise de possível reiteração delinquente. Bastante plausível que o custodiado tenha reconhecida a figura do tráfico privilegiado e consequentemente suporte pena diversa da privativa de liberdade.
O juiz se dirige mais claramente ao réu:
– Não estamos decidindo se o senhor vai ser condenado ou não, mas o senhor vai responder ao processo solto.
Advogada, visivelmente feliz:
– Doutor, pode ficar tranquilo que ele não vai mais sair de casa.
Juiz:
– É difícil sair solto por tráfico.
Advogada, para o réu:
– Ouviu? Você vai ficar agora na casa da sua vó! E não vai sair de lá.
O mesmo juiz, agora com defensores. O clima é muito mais descontraído. Um dos defensores fica tentando sempre fazer alguma piada, o juiz às vezes mantém a pose de sério, às vezes ri. Os réus entram e saem e suas presenças claramente não afetam em nada os comentários do juiz, do promotor ou mesmo dos defensores.
O juiz reclama particularmente do fato de ser um dia com muitos presos. É o mesmo juiz do início deste relato, que havia reclamado de ficar ‘preso’ até as 22h30min. Num dado momento, na frente de um réu preso (negro, de havaianas e cabelos descoloridos), o juiz fala, referindo-se ao fato de ter que cumprir o procedimento com cada réu e não poder avançar os julgamentos rapidamente:
– O pelotão de fuzilamento que a gente queria fazer não dá pra fazer.
O defensor tenta descontrair com uma piada. O réu fica com um olhar distante e amedrontado.
– Agressão?
– Só na praia quando me seguraram.
– Quem?
– Populares. Agressão com barra de ferro.
O juiz decreta a prisão.
O defensor:
– Excelência, o senhor não acredita no ser humano?
– Claro que eu acredito no ser humano.
– Só não acredita em defensor, né?
Todos riem.
O próximo réu não está de havaianas. Está descalço. Arrastão. A defensora tenta, argumenta primariedade. Não emociona o juiz. Continua preso.
Uma funcionária entra na sala do juiz e fala:
– Doutor, tem um monte de processo aqui que ninguém sabe cadê o réu.
O juiz fica indignado. Isso não poderia acontecer. Ele se levanta e vai passando na sala de outros juízes pedindo para todos devolverem os processos cujos réus não se encontravam no fórum.
Entra na sala de uma juíza:
– Tem procedimento aí que o réu não tá?
Juíza:
– Tem.
Juiz:
– Dá aqui que não é culpa nossa… vamos devolver.
A juíza olha o processo e diz:
– Pior que era pra soltar.
– Acontece.
– Só se eu soltar aqui de oficio.
– É…
– Então, dá aqui.
E assina a soltura.
Volto à sala da juíza que estava com a filha (que já tinha ido embora).
A ré é uma mulher, branca, nascida em 1998, mas aparenta pelo menos 10 anos mais. É um caso de tentativa de furto. Ela está com feridas aparentes nos punhos. A parte próxima às algemas está em carne viva.
– Qual o nome do seu pai?
– Não tenho pai. Ele ‘tá vivo, mas eu não tenho pai.
– Qual seu endereço?
– Moro na Rocinha. Rua do Canal.
– Trabalha?
– Design de unha e artesanato.
Tem uma filha.
– Faz uso de droga?
– Não.
Quando ela diz isso, a juíza olha para a promotora buscando cumplicidade. A mulher parece estar, naquele momento, sob efeito de alguma substância.
– Foi agredida quando foi presa?
– Sim, pelo policial.
– É isso que está no seu braço?
– Não só isso. Bateu nas costas. Ele me enforcou e me deu uma ‘banda’ e eu caí no chão.
– Consegue identificar?
– Eu olhei a farda dele.
Promotora:
– Verifica-se a legalidade da prisão. Contudo, verificando-se a primariedade, e o crime…
A ré começa a chorar de dor. O defensor pede para tirar a algema. A juíza fica aflita porque ela não está bem e fala para a acusada ficar calma que ela vai ser solta. Ela não se acalma por causa da dor. A juíza e o defensor ficam pensando como soltá-la naquele estado. A juíza pergunta se alguém sabe se existe algum tipo se assistência para ela no próprio fórum. Não tem. Defensor pergunta se ela se sente em condições de ir ao hospital. Ela diz que sim.
– Já me deram uma vacina lá embaixo?
– Vacina? – pergunta a juíza.
– Devem ter dado um tranquilizante, deve ser por isso que ela está assim.
A juíza pergunta:
– Você vai daqui direto pro hospital?
A ré faz uma cara de dor e responde, entre irônica e desafiante:
– Yes.
A juíza fica chocada e fala para a promotora:
– Ela está fazendo de tudo para não ser solta.
Juíza decide pela soltura e pede que o exame de corpo delito seja enviado ao MP.